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A SEGURANÇA DA BOCA

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 99-118)

O sistema de distribuição de responsabilidades regula também o regime de cautelas das armas da boca. Estes artigos podem estar entocados – escondidos – ou em uso. Grande parte do arsenal do tráfico encontra-se enterrada em locais que somente as pessoas responsáveis pela sua segurança conhecem. Tais paióis são o que os policiais mais procuram nas comunidades – muitas vezes com o objetivo de revender – e, para isso, contam com a colaboração dos delatores ou X-9s. Cada fuzil 7,62 mm, por exemplo, valia, à época, cerca de R$60.000,00 no mercado ilegal de armas.

Por mais que as armas de fogo empregadas na segurança das bocas de fumo pertençam normalmente ao dono do morro, outros bandidos podem investir na compra de armas e deixá-las acauteladas com o tráfico, de maneira a conquistar a consideração de seu patrão e assumir posições na hierárquia da firma. Em uma entrevista gravada e transcrita, que eu fiz para uma pesquisa comparativa sobre a violência em cidades latino-americanas52, uma moradora bem informada sobre o tráfico explicou-me como isso funcionava:

52 Projeto Cidades Violentas na América Latina, financiado pelo International Development Research Center (IRDC/Canadá) e coordenado no Brasil por Michel Misse. Reitero que gravar e transcrever entrevistas não foi o método de pesquisa empregado para o desenvolvimento da tese, mas em virtude da exigência desta pesquisa, tentei entrevistar algumas pessoas dessa maneira. Salvo por esta única ótima entrevista que obtive, tal método demonstrou-se ineficaz, devido à relutância dos meus interlocutores em cooperar deste modo, por isso abandonei a proposta de realizar entrevistas formais.

89 [Eu] – E as armas? Elas pertencem a quem? Ao dono do morro, ao responsável, ao gerente, aos bandidos?

[Moradora] – Não. Normalmente as armas pertencem ao dono do morro. Tem gerente que é sagaz, que é esperto, pega o dinheiro que ganha, ao invés de torrar a porra toda, bota arma no morro. Entendeu?

[Eu] – E a arma vai ser dele?

[Moradora] – É dele... é dele não: é da boca. Ele investe em armas. É dele, mas aquela arma a partir do momento que foi pro morro, é do morro. É da boca, e é uma forma dele se crescer, né? Dele ter uma posição. Por isso que tem muitos aí que você não entende, "Ah, fulano é dono mas fulano é respeitado, sicrano é respeitado". E sicrano tem cinco fuzil na boca, dez fuzil na boca. Entendeu? É isso. Já vi vários casos assim. É tipo um assaltante que eu conheci, o cara roubava pra caralho, só pegava a boa, entendeu? Quando ele rodou a mulher dele ficou sendo sustentada, e ele era assaltante, nunca tinha plantado na boca, mas ele tinha quatro fuzil na boca e tal, não sei quantas pistolas na boca e tal, entendeu? Tudo no mesmo morro, mas ele dava pra tal boca. Tanto, tanto, tanto.

As armas que se encontram disponíveis para o uso ficam acauteladas com os responsáveis das bocas que dividem esta responsabilidade com outros bandidos, deixando-as em sua posse. Eles devem portá-las o tempo todo ou guardá-las em local seguro, podendo inclusive usá-las para a prática de assaltos. No entanto, o bandido que perde uma arma tem a obrigação de comprá-la de volta, o que não o exime de uma grande humilhação. Segundo as palavras de um deles:

Como é que eu vou chegar no morro e explicar que eu perdi a pistola. No mínimo eu tenho que estar preso ou morto pra justificar isso. Eu não gosto de ter que abaixar a cabeça pra ninguém não. Esquento logo a cara.

Um ex-traficante contou-me sobre a ocasião em que ele estava descendo de um morro que não era o seu e foi parado em uma dura – blitz – da Polícia Militar, enquanto portava uma pistola da boca, segundo ele, “novinha e prateada”. Com a ajuda de seu pai, ele conseguiu desenrolar – negociar – a sua liberdade com a polícia, em troca de R$1.200,00, no entanto, perdeu a arma da boca e viu-se numa enrascada. Ele tomou um esculacho – foi repreendido e humilhado – e comprometeu-se a repor o prejuízo, sendo que, passada uma semana, a mesma pistola apareceu com um bandido de outro morro aliado, para quem os policiais a teriam vendido. O rapaz contou-me a solução que encontrou: “Peguei outra arma da boca, sem os outros nem ficarem sabendo, e fui pra pista roubar. Não sei nem como, mas eu consegui levantar os R$4.000,00 que eu precisava pra comprar a arma de volta”.

Este caso traz à tona a participação de outros atores que influenciam de maneira determinante a regulação do cotidiano das dinâmicas locais do tráfico: os policiais.

Encontramos dois modos principais de relacionamento entre a firma e a polícia: o

90 enfrentamento e as relações de suborno/extorsão. Tais moldes relacionais estão associados ao fato de a atuação do tráfico ser territorializada e sedentária, estabelecendo pontos de venda fixos e reconhecíveis, o que facilita a sua identificação pelos consumidores de drogas, porém também pela a polícia.

A possibilidade de reprodução desta formatação do varejo ilegal de drogas depende de uma articulação bélica da segurança de seus territórios para proteger seus homens, armas, drogas e dinheiro das sempre possíveis invasões, pilhagens e capturas perpetradas por policiais ou grupos de uma facção rival. O potencial de uso da força – a ser empregada nos frequentes tiroteios com a polícia ou outros traficantes – torna-se a condição de existência do comércio de drogas; e a posse de armas – sobretudo as de grande porte – assume um papel central na conformação das rotinas normais do tráfico.

Como já foi dito, este modelo de exercício do poder alimenta a crença popularmente difundida em um poder paralelo, que superestima a organização do mercado ilegal de drogas, enxergando nela um Estado dentro Estado.

Entretanto, tendo em vista a larga superioridade do poder armado do Estado, traficantes precisam também negociar a redução da repressão policial, pagando subornos sistemáticos a agentes corruptos das polícias civil e militar. Ou seja, embora o tráfico mimetize a forma-Estado em sua articulação geopolítica, a sua existência sob estes moldes depende das relações – de enfrentamento ou negociação espúria – mantidas com instituições estatais. Como diria Barbosa (2005) o seu poder é antes

“tangencial” do que “paralelo”:

Aqui   devemos   perceber   que   para   existir   este   atravessamento   do   aparelho   de   Estado   ou   um   modo   paralelo   de   atuação   que   se   inspira   no   aparelho  de  Estado,  que  com  ele  compete  e  entra  em  combate  ao  mesmo   tempo,   deve   haver,   antes,   essa   proximidade,   esse   acoplamento.   O   que   estou  dizendo:  não  existe  um  “poder  paralelo”,  mas  um  “poder  tangencial”  

que  necessita  estabelecer  uma  relação  de  vizinhança  com  o  aparelho  de   Estado.  É  todo  o  tema  da  corrupção,  que  é  central  nos  projetos  atuais  de   reforma   da   polícia   e   que   é   capital   para   o   entendimento   dos   modos   de   efetivação  do  “mercado  ilegal”  de  drogas  e  armas.  (p.371-­‐372)  

 

Temos, portanto, que o modelo de gestão dos territórios, empregado pelo tráfico de morro, implica na necessidade da compra de “mercadorias políticas”. Misse (1999) define “mercadoria política” como “toda mercadoria cuja produção ou reprodução depende fundamentalmente da combinação de custos e recursos políticos, para produzir um valor de troca político ou econômico” (p.295). Barbosa (2005) também corrobora esta associação entre a fixidez territorial e a compra de mercadorias políticas, ao afirmar que o tráfico de drogas, tal como se apresenta nos morros cariocas, é um comércio que

91 precisa estar “plantado” num território e formar uma freguesia, o que implica em negociar um “alvará de funcionamento” com a polícia.

Cabe ao dono ou responsável do morro negociar o pagamento à polícia do suborno/extorsão – conhecido como arrego –, evitando assim que sejam realizadas incursões na favela, que, por sua vez, promovem a interrupção do fluxo normal das atividades do tráfico. Estas operações policiais resultam na apreensão de armas e drogas e na prisão, ferimento ou morte de bandidos, ou por vezes de moradores inocentes e mais raramente de policiais. Contudo, por mais que o arrego seja pago, as polícias não são instituições coesas, de modo que alguns plantões aceitam o arrego e outros não.

Ainda assim, o tráfico, por vezes, possui informantes dentre os quadros da polícia, que avisam com antecedência sobre a ocorrência de operações, permitindo que os bandidos se antecipem a estes eventos, escondendo armas, drogas e a si mesmos, como, por exemplo, dormindo em hotéis.

Outra prática conhecida de suborno/extorsão consiste no sequestro de bandidos ou seus parentes para a cobrança de um resgate, sob a ameaça de morte ou prisão do refém. Durante o trabalho de campo fiquei a par da captura do dono de um dos morros mais relevantes para a pesquisa. Ele foi rendido no interior de sua casa, que ficava no entorno da favela, e, por mais que esta tenha ficado cercada por bandidos, eles tiveram que liberar a saída dos policiais para preservar a vida do refém que eles mantinham. O dono do morro só foi liberado após o pagamento do resgate.

Não apenas os próprios bandidos, mas também seus parentes podem ser capturados por policiais para a cobrança de um resgate. Durante a pesquisa, contaram-me sobre a esposa de um gerente de boca que teria sido colocada dentro do caveirão, sendo liberada apenas após o seu marido pagar a sua “fiança”. No entanto, surgiu posteriormente a desconfiança sobre ela própria ter armado o seu sequestro em parceria com os policiais, pois tempos depois, ela esvaziou o apartamento que o seu marido mobiliara para ela morar na pista e mudou-se para um morro inimigo. Diziam que ela havia aplicado o golpe do silicone, pois o deixara apenas após realizar a mamosplastia de aumento que tanto desejava.

Mesmo que tenha se tratado de um golpe, o seu sequestro só foi crível porque se trata de uma prática conhecidamente empregada por policiais. Esta possibilidade permeia o cotidiano de bandidos e seus parentes, que tomam precauções para evitar uma exposição indevida a este tipo de risco. Certa vez, por exemplo, era por volta de onze horas da noite e eu observei quando um bandido avistou três rapazes parados na esquina

92 da rua que dá acesso à favela e brincou: “Ó vocês três aí dando docinho pros policia!

Vocês dois eles matam e jogam fora, mas esse aqui vale um dinheiro, hein.” Ele se referia ao filho do dono do morro, que não trabalhava para o tráfico, mas estava acompanhado de dois rapazes da boca.

A fala acima transcrita expressa como a percepção dos bandidos sobre o trabalho de polícia é de que o posicionamento de uma pessoa na hierarquia criminal influencia o tratamento que os policiais lhe concedem. Ou seja, acredita-se que um dono ou gerente de morro ou boca de fumo não está sujeito a ser morto pela polícia, mas apenas preso ou extorquido, o que se estende aos seus parentes mais próximos. Já os traficantes de baixo escalão são concebidos como descartáveis, devido ao baixo valor econômico de suas vidas ou liberdades, o que é medido por quem e quanto se está disposto a pagar por sua liberação. Isso não impede que eles também negociem com policiais por suas vidas e liberdade, mas aumenta a probabilidade de que sejam sumariamente executados.

A forma como o tráfico se relaciona com a polícia favorece a reprodução das desigualdades inerentes aos sistemas de distribuição de propriedades e responsabilidades analisados. Parte considerável dos lucros obtidos com a venda de drogas é deslocada para a compra das “mercadorias políticas” ou armas, contribuindo assim para que o trabalho dos traficantes comuns seja mal pago – em alguns morros eles ganham o equivalente a um salário mínimo – e apenas os mais considerados recebam oportunidades de enriquecimento.

No entanto, após a ocupação pela UPP, o formato da relação entre o tráfico e a polícia se modificou. Desde que passaram a compartilhar o território com a polícia, a resistência armada foi, em grande parte, substituída por outras estratégias de segurança.

Eis como um bandido descreveu a maneira como o tráfico vinha sobrevivendo:

[Lúcio] – Os plantões já voltaram aqui.

[Eu] – Com armas?

[Lúcio] – Não, só no radinho mesmo. Passei o dia todo correndo, brincando de pique-tá, ou pique-esconde, sei lá. Os moleques ficam monitorando pra onde os que tão dentro estão indo, aí nós corre pra onde eles não tão. O problema vai ser quando vier os de fora e os de dentro ao mesmo tempo.

[Eu] – Mas você está fazendo o que no plantão? Está trabalhando?

[Lúcio] – Ah... quem não é visto não é lembrado. Eu fico lá com os moleques dando uma força. Depois que a UPP entrou, vários aí vacilaram, foram embora e perderam os preços. Quem olha tá vendo que eu tô lá mesmo cheio de bronca.

[Eu] – Mas você só ficando dando moral? Não planta não?

[Lúcio] – Eu não posso plantar!

93 Lúcio não podia mais plantar na boca de fumo, pois ele era um bandido antigo, muito conhecido, que já possuía condenações anteriores. Os únicos que ainda podem trabalhar na venda de drogas em territórios ocupados pela polícia são aqueles que não possuem antecedentes criminais e, de preferência, os menores de idade. Caso eles sejam capturados pela polícia, ficarão menos tempo presos e, além disso, o uso desse tipo de mão de obra criminosa facilita a negociação do arrego entre os traficantes e a UPP.

Bandidos já procurados pela polícia não seriam tão facilmente ignorados quanto os réus primários e menores de idade que hoje trabalham nas bocas. Os plantões tornaram-se de tal modo discretos – com apenas uma mochila nas costas – que a polícia, quando está arregada, não se dá ao trabalho de reprimi-los.

Mas ainda há pontos da favela onde se concentram os grandes responsáveis do tráfico e que dependem da articulação de uma defesa armada em seu entorno, evitando botes da polícia para capturar essas figuras. Logo no início da UPP, em uma das favelas pesquisadas, antes que fosse negociada a redução da repressão policial, havia apenas um ponto onde ainda perseverava a boca de fumo e reunia bandidos importantes. Tratava-se de uma boca estrategicamente situada em um local de onde se podia observar a movimentação das viaturas policiais e com muitas saídas para eventuais fugas dos bandidos. Era preciso ter um centro de comando territorializado, onde os chefes do tráfico pudessem ser localizados por quem os procurasse. Eu soube da existência desse local através de um bandido que estava temporariamente morando em outra comunidade, por causa da entrada da UPP, mas viera ao morro para receber um pagamento quinzenal de R$500,00 que lhe fora oferecido por seu patrão para que ele tivesse como sobreviver até poder voltar para a sua favela.

Nas proximidades desse mesmo local, encontrei também uma conhecida que parou para tomar uma cerveja comigo enquanto esperava a polícia sair da boca, para que então o plantão voltasse e ela pudesse encontrar com um dos gerentes. Tratava-se de uma moça muito bem vestida e educada, cujo pai fora o matuto – fornecedor de drogas – daquela favela durante muitos anos, mas já falecera e deixara o seu negócio para ser gerido pelo genro, cunhado da moça que encontrei. Ela, particularmente, não tinha nada a ver com o tráfico e possuía um ótimo emprego em uma empresa de telecomunicações. Ainda vestida com o tailleur com o qual trabalhava, viera ao morro acertar a contabilidade do fornecimento de drogas, fazendo um favor à sua irmã e cunhado, que se encontravam foragidos, em outro estado.

94 Mais de um ano depois, quando voltei de meu estágio doutoral na França, o ponto onde se concentravam os principais bandidos desta favela havia mudado para outra localidade. Acompanhei uma amiga que procurou o responsável do morro para resolver o problema de um parente preso. Ela queria receber de volta o dinheiro que ele pagara na compra de uma casa que não fora concluída. Como ele não teria mais como pagar o que ainda faltava, queria desfazer o negócio e ela contava com o amparo do tráfico para intermediar as negociações. Tivemos que pedir informações aos rapazes que estavam discretamente no plantão de uma das bocas e, após solicitar pelo rádio uma autorização, eles nos explicaram como chegar ao local onde encontraríamos o patrão.

Tivemos que adentrar vielas estreitas até chegar a um ponto onde cerca de quinze homens armados apenas com pistolas faziam a contenção da boca e do responsável.

Nas vielas que davam acesso a este local, havia rapazes armados vigiando as esquinas.

Por volta de duzentos metros dali, situava-se um dos containers de base da UPP e duas viaturas de polícia estacionadas.

Em conversa com um dono de bar desta mesma favela, ele comentou: “Agora o morro tá mais calmo, mas de vez em quando ainda tem uns arranca-rabo por aí.”

95 3 O CRIME E O SEU CERTO

Covardia não enriquece o sistema Ostentação é luxo, mas não é nosso lema Mulher dos outros não mexe que é problema Adoradores da mancada o bonde não tem pena Na vida errada você tem que andar certo De vez em quando você vê a morte de perto O verdadeiro guerreiro sempre anda esperto, Vê tudo, mas nada vê, é surdo, mudo e cego Errado está quem pratica o errado Respeito é dado só por quem é respeitado Muita cautela é melhor tomar cuidado Entrar no caminho dos outros não é recomendado Liberto está quem vive a liberdade Humilde é quem pratica a humildade O que acontece com aquele que vive na falsidade Rala com a cara no chão, aqui é sem massagem (Mc Orelha)

3.1 O CRIME

Não podemos resumir a atuação local da facção apenas à sua principal atividade econômica, isto é, ao tráfico de drogas. O poder do comando sobre um território cria um precedente para a composição de um complexo de práticas criminais que atravessam a organização do tráfico, envolvendo também o comércio ilegal de armas (e o seu porte ilegal, evidentemente), roubo, furto, receptação de mercadorias roubadas, estelionato, homicídio, lesão corporal dolosa, suborno de autoridades, etc. O conjunto de todas essas práticas que se desenvolvem no contexto da facção constitui o que os bandidos convencionaram chamar de mundo do crime ou, tão somente e mais frequentemente, Crime. Trata-se de um universo experimentado em maior ou menor grau por pessoas que possuem algo em comum: a vida errada ou vida no crime.

Ao analisar o que está imbuído na categoria nativa Crime, é possível identificar que ela remete de alguma maneira à padronização dos comportamentos, estruturalmente condicionados e estruturantes e à apreensão desses padrões através da transmissão social e de codificações simbólicas. Este seria, em verdade, o núcleo conceitual da palavra “cultura” (TROUILLOT, 2003). Prefiro, entretanto, manter o uso do conceito nativo ao invés de substituí-lo por “cultura do crime” ou aderir a noções como a de

“subcultura”.

96 Durante a década de 80, o conceito de “cultura” passou a ser questionado, debatendo-se principalmente a ideia de “culturas” enquanto pluralidades, que teria surgido com o trabalho de Boas, ao lado do relativismo cultural desenvolvido em oposição ao racismo. “Boas situou firmemente todas as culturas em paridade e debochou das noções que casavam o vigor tecnológico com a superioridade social e cultural” (RAPPORT E OVERING, 2000, p. 92, tradução nossa). Cada cultura passou, então, a referir-se a formas de vida específicas e historicamente contingentes ou, ainda, outro uso relacionado do conceito remete ao conhecimento não inato, isto é, adquirido, aprendido e construído.

As críticas formuladas contra a noção de “cultura” se opuseram ao seu status de estrutura conceitual representacional da organização sistêmica da vida social. Foram combatidas as ideias de coerência, homogeneidade e fixidez de uma “cultura” limítrofe, que por muito tempo fora concebida enquanto uma totalidade sistêmica que comportava sistemas estáveis e compartilhados de saberes, valores e arranjos de práticas. Tal

“objetificação” não foi a proposta boasiana para o termo, mas tornou-se preponderante na antropologia que lhe sucedeu.

Segundo Abu-Lughod (1991), “Cultura é a ferramenta essencial para produzir o outro” (p.143). Apesar de desnaturalizar a diferença, a “cultura” tende a congelá-la. Esta autora problematiza as generalizações promovidas pela coerência e atemporalidade da

“cultura”, que invisibiliza as particularidades das experiências e práticas das pessoas,

“cultura”, que invisibiliza as particularidades das experiências e práticas das pessoas,

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 99-118)