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DILEMAS ÉTICOS DA ETNOGRAFIA DE PRÁTICAS INCRIMINÁVEIS

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 45-51)

Estudar o Crime impõe uma série de questões éticas a serem contempladas. Em primeiro lugar, há o problema de se estar informado sobre a participação de pessoas em crimes graves, como roubos ou, inclusive, homicídio, o que poderia impor ao pesquisador o dever ético de denunciar os autores de tais crimes à justiça. Quanto a esta dimensão do problema, assim como fez Aquino (2010) ao estudar assaltantes a banco, recorro ao código de ética da Associação Brasileira de Antropologia, segundo o qual é reservado ao antropólogo o direito de preservar informações confidenciais e lhe é vedado se valer da colaboração com a pesquisa para prejudicar o grupo investigado.

É bem certo que isto não nos exime de reprovar em foro íntimo as ações de nossos interlocutores. Posso assegurar que não é fácil administrar sentimentos

35 contraditórios de empatia e aversão pelas mesmas pessoas. Por um lado, a proximidade com os interlocutores permite compartilhar um pouco da sua perspectiva, experimentar, mesmo que por instantes, o seu lugar no e o seu olhar para o mundo, concebendo-os, em retorno, pelo ângulo da compreensão; por outro lado, foi assustador provar da empatia com pessoas que matam outras, mas ainda mais assustador foi constatar que tais crimes deixaram de me comover como deveriam ou, pelo menos, como antes me comoviam. A intensidade da minha exposição a histórias trágicas, em que a morte era um componente constante, foi capaz de enrijecer a minha sensibilidade e colocar a minha compaixão entre parênteses.

O tipo de envolvimento que eu experimentei com o trabalho de campo ultrapassou o que se entende como “observação participante”, pois a maneira como participei em campo envolveu aceitar o risco de comprometer o meu projeto científico e transformar a minha pesquisa em uma aventura pessoal, tal qual observou Favret-Saada (2005), a respeito do seu próprio trabalho de campo sobre a feitiçaria na região rural do Bocage francês (FAVRET-SAADA, 1977). Esta autora considera que, para a maioria dos antropólogos que dizem fazer “observação participante”, “participar” é apenas a condição para estar lá, sendo a “observação” o que realmente importa para eles: “Em retórica, isso se chama oximoro: observar participando, ou participar observando, é quase tão evidente como tomar um sorvete fervente” (FAVRET-SAADA, 2005, p.156).

Favret-Saada conta que só conseguiu que lhe falassem sobre a feitiçaria, quando desistiu de manter-se à distância do seu objeto e aceitou “ser afetada”, passando a ocupar um lugar no sistema da feitiçaria.

Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. (p.160)

No entanto, esta autora afirma que “ser afetado” não é a mesma coisa que o que se entende por “empatia”, pois em vez de se colocar no lugar do outro e imaginar seus afetos ou, mesmo, engajar-se em uma comunhão afetiva com o outro por meio da comunicação, trata-se de efetivamente “participar”, ocupar o lugar do nativo. Segundo a autora, os afetos não podem ser representados. Em contrapartida, eu insisto na utilização do termo “empatia”, pois no meu caso, especificamente, não haveria como eu ocupar o lugar do nativo, em se tratando de traficantes e ladrões. Sem dúvida, deixei-me ser afetada e ocupei um lugar que não precisamente o de antropóloga, mas o mais perto que

36 cheguei da experiência dos próprios bandidos foi a mesma empatia experimentada por seus amigos e parentes. Para ir além da empatia, havia barreiras éticas claras que eu não queria e nem precisaria transpor.

Em verdade, os maiores dilemas éticos com que eu me deparei não estiveram relacionados à reprovação moral das práticas de meus interlocutores. Até aí, senti-me resguardada pelo princípio moral superior dessa espécie de “sigilo de confessionário”

que obriga os antropólogos, assim como padres, advogados, psicólogos e psiquiatras a guardarem segredos que lhes são confiados devido à sua profissão20. Os dilemas éticos que me afligiram relacionaram-se ao respeito aos meus interlocutores no que concerne às condições de realização da pesquisa e à divulgação dos dados. A situação delicada a que se expõe o pesquisador ao investigar práticas criminalizadas e realizar seu trabalho de campo em um ambiente hostil à livre circulação de informação coloca-o diante da necessidade de inovar métodos, na medida em que uma obrigação ética pode colidir com outra ou, até mesmo, asseverar os riscos inerentes a este tipo de pesquisa. É preciso estar atento à ética local e não mais apenas à ética prescrita aos antropólogos, de modo a não expor a si mesmo ou os outros a perigos desnecessários.

Fui muitas vezes interpelada por outros pesquisadores sobre eu ter, ou não, revelado minhas intenções etnográficas ao grupo investigado, o que expressava a preocupação em saber se eu estava devidamente respeitando o preceito da transparência na pesquisa social. Sim, é evidente que o papel de antropóloga e o meu real interesse em escrever uma tese de doutorado sobre o Crime em favelas foi devidamente exposto para os interlocutores com quem tive a oportunidade de estabelecer alguma forma de vínculo, afinal, sequer haveria outra maneira de explicar-lhes a minha assiduidade nos morros.

No entanto, não seria possível informar isso a todos com quem eu pude interagir ao longo do trabalho de campo, pois tal postura descuidada colocaria não apenas a minha segurança em risco como também a dos interlocutores que generosamente me abriam as portas para ter acesso a informações que circulavam em redes restritas.

O respeito à etiqueta local foi um imperativo durante o desenvolvimento da pesquisa e a oportunidade de aproximação com o meu objeto só me foi gradualmente concedida na medida em que eu demonstrava ter a habilidade de me portar com discrição, medir as palavras e moderar o impulso de fazer perguntas. A minha

20 Prevê o art. 154 do Código Penal Brasileiro: “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a alguém”. A pena cominada é detenção, de três meses a um ano, ou multa.

37 experiência anterior de pesquisa com traficantes de classe média (GRILLO, 2008), fornecera-me algumas noções básicas sobre como conquistar a confiança das pessoas em um meio inóspito a qualquer forma de investigação e introduzira-me também ao vocabulário de giras do tráfico, permitindo-me invocar certa intimidade com a temática das conversas, transpondo, assim, algumas distâncias. No entanto, eu e Natasha chegamos a ser criticadas por nossas amigas por informalmente entrevistarmos as pessoas: “Não se fica fazendo pergunta assim não. Alguém pode bater neurose.” Era preciso ter mais cautela e conquistar primeiro a confiança das pessoas para só então tomar a liberdade de questioná-las. No mais, devíamos perguntar apenas o que fosse coerente com o andamento da conversa e aproveitar quando os nossos interlocutores espontaneamente tocavam nos assuntos que mais nos interessavam.

A minha identidade de antropóloga só pôde ser revalada para aqueles com quem eu conversei o suficiente para que o assunto chegasse à minha profissão. Ao lidar com esses casos, acabei desenvolvendo estratégias para explicar de maneira simples e clara do que se trata a antropologia e que tipo de abordagem eu pretendia fazer. O meu principal intuito era demarcar que eu não estava interessada em denunciar nenhum tipo de atividade ilegal e que, muito pelo contrário, eu adotava uma postura crítica com relação às políticas de segurança pública vigentes, não estando disposta a cooperar com a atuação da polícia.

Em verdade, o meu grande trunfo foi o imenso desinteresse das pessoas pelas minúcias do meu trabalho. Ninguém nunca chegou realmente a compreender o que vinha a ser essa tal de antropologia e relutaram em acreditar que aquele seria o real motivo da minha presença. Muitos interpretavam esse papo21 de que eu era uma antropóloga como apenas uma desculpa acionada por uma patricinha que se vira encantada pela vida emocionante da favela. De fato, eles não estavam totalmente enganados, pois eu realmente apreciei ter deslocado a minha vida social para o circuito dos morros e, conforme já foi dito, vinha encontrando dificuldades para separar a minha vida pessoal do meu trabalho de campo. A ambiguidade do meu posicionamento me foi, portanto, útil para que a minha intenção de pesquisa pudesse ser revelada a diversas pessoas sem acarretar prejuízos à minha inserção no campo.

21 Neste caso, utilizo o termo nativo “papo” como uma versão desacreditada dos fatos, sinônimo de outras expressões populares como “conversa fiada” ou “história para boi dormir”. No entanto, no vocabulário nativo, este termo pode assumir outro importante significado que será tratado adiante na discussão sobre os desenrolos, referindo-se a uma construção argumentativa que visa justificar um determinado ponto de vista ou simplesmente relatar uma situação interpretativamente.

38 Biondi (2010) também aborda a questão da ambiguidade em campo ao relatar como lidou com a sobreposição do seu papel de pesquisadora e de visita durante o trabalho etnográfico que conduziu nas unidades prisionais em que o seu marido estava preso. Como todos os demais visitantes, em sua maioria mulheres, ela precisava obedecer estritamente às regras de etiqueta, como evitar conversar com agentes penitenciários ou com outros presos, senão pela mediação de seu marido, sendo também tratada com o respeito e o decoro que é imperativo aos presos reservarem às visitas.

Para os presos, eu era uma visita como outra qualquer e somente me era oferecido ver aquilo que aos demais visitantes também era permitido. A diferença entre mim e as outras colegas não aparecia no local da pesquisa (e da visitação), mas se estabelecia na posterior escrita do que me era dado a conhecer. (p.45)

Não havia como manter todos os presos informados sobre a sua pesquisa devido à alta a rotatividade dos mesmos, e por isso Biondi temia ser considerada uma delatora.

Para escrever sua monografia de graduação, apoiara-se sobre o entendimento nativo de que, como não estava de modo algum vinculada ao Primeiro Comando da Capital (PCC) – coletivo que controlava a convivência nos espaços prisionais estudados – ela não estaria submetida às mesmas avaliações de conduta direcionadas aos seus membros efetivos (irmãos) ou aos demais presos que viviam em cadeias do PCC (primos). No entanto, como a pesquisa de mestrado tomou a existência do PCC como seu objeto e não mais a instituição, ela achou prudente buscar alguma forma de autorização que amparasse a realização do estudo, submetendo então o seu trabalho já publicado à avaliação de algum irmão do PCC. Foi assim que obteve finalmente o aval que legitimava o seu posicionamento como antropóloga diante do coletivo das prisões.

Já em minha pesquisa, tomo o Comando Vermelho por contexto, mas não por objeto, eximindo-me da preocupação em obter autorizações para discorrer sobre a facção. Isso não seria tampouco viável, porque diferentemente do PCC, cujo lema de igualdade permite que um aval resultante do diálogo entre dois irmãos fale em nome do Partido como um todo (BIONDI, 2010); a estrutura organizacional do Comando Vermelho tornaria necessário um amplo debate entre diversos donos de morro para que algum posicionamento respondesse pela facção. Eu poderia, quem sabe, solicitar a permissão individual dos donos de morro que controlavam a firma local do tráfico nas áreas em que a pesquisa se concentrou, mas confesso que não achei isso razoável. Uma resposta negativa teria arruinado todo um trabalho inicial de aproximação, colocando os meus contatos em uma situação desconfortável e, no limite, arriscada; e mesmo que eu

39 obtivesse uma resposta positiva, tal formalização mudaria completamente o meu lugar no meio pesquisado. Por fim, julguei mais adequado deixar a cooperação, ou não, a critério de cada um, recusando-me a submetê-la a estruturas hierárquicas que eu não reconheço como legítimas.

No decorrer da pesquisa ficou bem claro na fala de diversas pessoas que eu poderia falar e escrever o que bem entendesse, desde que ninguém jamais fosse prejudicado por minha culpa. O que realmente importava era não ocasionar a morte, ferimento, prisão ou condenação de alguém ou mesmo a apreensão de armas ou drogas.

Levando isso em conta, procurei não saber em que casa moravam ou dormiam os bandidos – exceto quando as suas esposas ou namoradas me eram realmente íntimas – e fiz absoluta questão de nunca ser informada sobre os esconderijos de armas e drogas.

Sem deter este tipo de conhecimento, eu não poderia ser acusada de cooperar com policiais, visto que não teria como revelar o que realmente lhes interessava.

Em verdade, o maior desafio ético da pesquisa surgiu no momento da escrita.

Tenho plena consciência de que a ambiguidade do meu posicionamento induziu os meus interlocutores a controlarem menos o tipo de informação que me transmitiam, relatando histórias, opiniões e sentimentos que talvez não quisessem ver escritos em minha tese de doutorado. Por vezes, demonstravam ter plena consciência do meu papel de pesquisadora e teciam comentários como: “Isso aí você tem que colocar no seu livro”

ou “depois que você terminar essa sua tese, você não vai mais nem querer saber de nós”.

Ainda assim, prevalecia o registro da confidencialidade de amigos, em que me eram confiadas informações capazes de prejudicar a si mesmos ou outras pessoas, como confissões de crimes e de violações de regras do tráfico ou fofocas sobre traições.

A estratégia de trocar ou omitir as referências a nomes, lugares e datas não bastou para assegurar o anonimato dos meus interlocutores. Tive também que renunciar ao uso das histórias de vida como método de exposição dos dados etnográficos. Não há como atribuir tantos crimes a uma mesma pessoa, acrescentando ainda dados sobre a sua inserção no tráfico, vida familiar, traços de personalidade e opiniões. Ao narrar diversas histórias sobre uma mesma pessoa, mantendo o mesmo pseudônimo, eu daria azo a que ela fosse identificada por quem conhece apenas partes de sua vida, descobrindo o resto por meio da minha tese. Não é este o objetivo do trabalho.

Estando eu plenamente ciente de que os meus interlocutores revelaram-me muito mais do que o fariam caso me vissem estritamente como uma antropóloga, sinto-me no dever de ser mais zelosa do que a obrigação de preservação do anonimato me exige. Eu

40 não apenas troco todas as menções a nomes, lugares e datas, como também as troco novamente a cada outra narrativa de campo que se inicia. Isso certamente compromete a apresentação do material empírico, que provavelmente se enriqueceria caso eu pudesse explorar as nuances de trajetórias singulares, vincular histórias que possuem um nexo entre si ou situar cada narrativa com relação às favelas a que dizem respeito. Enfim, não se pode ter tudo.

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 45-51)