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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME, SUA JUSTIÇA E O SEU CERTO

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 142-147)

Embora não possamos menosprezar a relevância da possibilidade de emprego da violência para a configuração dos arranjos locais de poder, é antes nos dispositivos de moderação do uso da força, do que na sua deflagração propriamente dita, que a criminalidade se organiza e é, portanto, capaz de se reproduzir. A violência é, sem dúvida, um dos componentes mais relevantes para a reprodução das relações de poder no âmbito das facções do tráfico de drogas, mas o seu emprego não é indiscriminado.

Mesmo as assimetrias de poder e as práticas de subjugação pela força precisam de algum modo dialogar com a ética do Crime e até as mais cruéis atitudes podem ser expressas nos termos da moralidade criminal, o que vai sempre depender do encaixe entre os mandamentos gerais e a situação específica.

Como foi visto, não há um sistema normativo coerente e conhecido por todos.

Mais pertinente do que identificar as normas impostas pelo tráfico local ou a facção é compreender os processos pelos quais a justiça do tráfico se produz. Embora algumas interdições, como a delação, possam ser menos suscetíveis a múltiplas interpretações do que outras, como a falta de respeito, não há regularidade na aplicação dessas pretensas normas às circunstâncias. Cada caso é tratado de maneira singular, sendo difícil equacionar a fórmula da “adjudicação” peculiar à justiça do tráfico, isto é, do ajuste entre as referências abstratas e os fatos representados judicialmente ou, como quer Geertz (1997), da tradução “de uma linguagem da imaginação para uma linguagem da decisão” (p.260).

Entretanto, a familiaridade com a “sensibilidade jurídica” local – como este autor se refere a um senso de justiça determinado – ainda permite calcular uma função

78 Este evento representou uma enorme mancha para a reputação do traficante que coordenou a operação de ir buscar Luizinho em sua casa. As pessoas que me narraram essa história morriam de rir, enfatizando a vergonha do seu fracasso.

132 aproximada entre a natureza da ocorrência, o posicionamento social de cada uma das partes e a qualidade dos argumentos apresentados, possibilitando imaginar o desenlace dos desenrolos. Dentre estas variáveis, a mais determinante parece ser a segunda, pois é capaz de melhorar a qualidade (e origem) dos argumentos que podem transformar o que será finalmente entendido como a “natureza” da ocorrência. Relações de amizade e parentesco e avaliações sobre a trajetória pessoal das partes em conflito atravessam a produção da verdade e do juízo que vão resultar ou não em castigos. Pode-se morrer por ter roubado R$50,00 da boca e permanecer vivo e ainda empregado pela firma, após um derrame (ou desfalque) de R$30.000,00.79

Gluckman (1969) ressalta que tanto as partes em disputa como os árbitros podem estar envolvidos em “relações multiplex” externas e anteriores à situação do litígio e que a natureza de tais relações é determinante para a forma de gestão do conflito. O aspecto “comunitário” das favelas – também chamadas comunidades – propicia o interconhecimento e relações pessoais de longa data que produzem diferentes status de pessoas com base no histórico de cada um e na extensão e prestígio de suas redes de apoio80. Há, por si só, diferenças entre quem é cria do morro e os novos moradores, mas considera-se também a estima acumulada pelas pessoas, principalmente junto a outras mais influentes que possam comprar o seu barulho – argumentar em sua defesa –, podendo se tratar de bandidos ou mesmo de moradores muito conhecidos e respeitados.

O contexto de determinada pessoa, do mesmo modo, intervém na hora do julgamento, na hora da punição. Se uma pessoa possui um mau conceito, um boato pode levá-la à morte. Ao contrário, se é “cria do local”, pode ter a sua sentença abrandada. Diante disso, não poderíamos pressentir um mecanismo de que a comunidade se utiliza para se desfazer de seus elementos indesejáveis? (BARBOSA, 1998, p.98)

Barbosa (1998) evoca as categorias nativas conceito e contexto para designar, respectivamente, os juízos de valor sobre determinado sujeito e as suas implicações ao nível relacional. Este autor ressalta a reconhecida importância de se ter um bom conhecimento, assim como na sociedade brasileira de um modo geral, conforme identificado nas análises de Da Matta (1997). Este distingue entre o mundo da “casa”,

79 Cito este exemplo com base em dois casos que, de fato, ocorreram. Quanto ao primeiro, o rapaz que o executou, a mando de seu patrão, disse ser este o único homicídio de que guarda culpa. Já o segundo, refere-se às dívidas contraídas por um bandido viciado em crack, mas cujo irmão era o responsável da boca em que ele trabalhava.

80 O mesmo pode ser dito a respeito da convivência no interior das prisões, que coloca as pessoas em regime de coabitação por longos anos.

133 em que prevalecem as relações hierárquicas e personalizadas, os favores e os privilégios – onde somos “pessoas” –; e o mundo da “rua”, isto é, o mundo hostil das relações formais, universalizantes e impessoais – onde somos “indivíduos”. Ser considerado, conceituado, respeitado, ter conhecimento e contexto remete à acumulação de capitais sociais, o que transforma “indivíduos” em “pessoas”, reserva-os privilégios diversos e faz a sua palavra ter mais valor.

A vantagem de se ter um bom conhecimento ou contexto – alguém que possa desenrolar por si – reside também no desconhecimento dos moradores com relação à linguagem do Crime, as suas lógicas subjacentes e as nuances dessa ética, dificultando a tradução dos argumentos para um idioma adequado. A economia do ajuste entre o fato e os critérios para a sua classificação em certo ou errado, considera em seu cálculo, uma série de variáveis subjetivas e agenciáveis por meio da oratória. Mesmo as prescrições aparentemente cristalizadas em enunciados gerais consensuais, conhecidas como mandamentos, são também elas retoricamente adaptáveis às circunstâncias e, principalmente às pessoas a que se aplicam. Mas esta retórica deve ser formulada na linguagem do Crime, evocando o seu léxico e conjugando-o segundo uma gramática moral muito peculiar.

O ordenamento criminal se constrói por meio de convenções que funcionam como contexto para inovações que, por sua vez, ampliam a base metafórica dos signos operantes (WAGNER, 1981 [1975]), produzindo um universo culturalmente dinâmico.

O criminoso age nos arranjos contextuais e contingenciais onde se encontra inserido, transformando-os. Nas negociações de conflito, o desfecho está sempre em aberto, dependendo do encaixe entre a conduta recomendada e a versão final dos fatos, que é estabelecida por consenso. O destino das partes envolvidas – que pode inclusive ser a morte – depende do posicionamento desta pessoa numa rede de ação e da habilidade que ela e seus aliados possuem para compreender o contexto convencional em que se inserem e inovar a partir dele.

Nos debates ou desenrolos, as pessoas ou grupos de pessoas que participam – enquanto partes ou mediadores – de um litígio exercitam a sua capacidade de se firmar argumentativamente no lado certo da vida errada. É preciso ter mente e/ou visão – isto é, discernimento e eloquência dentro da ética e linguagem do Crime – para saber se posicionar adequadamente e elaborar uma oratória coerente com o que se pode entender contextualmente como certo. Para se traçar uma trajetória de sucesso no Crime,

134 adquirindo consideração e reconhecimento entre os demais criminosos, é preciso agir sempre pelo certo o que é diferente do “bem”.

É certo (e mesmo necessário) matar, mas não qualquer um, não em qualquer data e nem por qualquer motivo. É certo roubar, mas não em qualquer lugar, não qualquer pessoa, não qualquer coisa e nem em qualquer contexto. É certo mentir, mas não sobre determinados assuntos. É mesmo certo agir errado, desde que não se traga consequências nocivas a outros atores relevantes para essa moralidade, quer dizer, bandidos amigos e seus respectivos entes queridos. O Crime não está preocupado em desvendar as falhas ocultas dos criminosos. Elas só são importantes na medida em que repercutem.

O certo é o norte da moralidade criminal, mas não se aprende o que é certo, senão ao longo da experiência com o Crime, pois tal moralidade não é nada evidente. O ordenamento criminal se baseia em uma disciplina específica que, apesar de se inscrever nos corpos das pessoas submetidas a esta ordem, não se organiza por um conjunto de regras e não mobiliza técnicas disciplinares. É uma disciplina progressivamente internalizada ao longo das experiências de conflito e do contato com boatos sobre desenrolos e cobranças, pois não há “mecanismos contínuos, reguladores e corretivos” (FOUCAULT, 1985, p.135) e nem tampouco centros de poder empenhados em “distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade” (idem).

Tomando a distinção entre “biopoder” e “biopolítica” desenvolvida por Negri (2003), podemos dizer que o Crime não desenvolveu o “biopoder”, mas apenas a

“biopolítica”, pois, segundo este autor:

Fala-se em biopoder quando o Estado expressa comando sobre a vida por meio de suas tecnologias e de seus dispositivos de poder. Contrariamente, fala-se em biopolítica quando a análise crítica do comando é feita do ponto de vista das experiências de subjetivação e de liberdade, isto é, de baixo.

( p.107)

Pretendo, com isso, assinalar a descentralização da “disciplinarização” dos indivíduos. Os “corpos indóceis” dos bandidos não se submetem a treinamentos, separações e coordenações metódicas, mas acabam incorporando uma “certa” disciplina no decorrer do contato com outros corpos. Não se olha demais para um bandido, e não se repara a saia curta de sua respectiva esposa; não se vira de costas para o oponente durante uma discussão; não se usa “a gente” em lugar de “nós” quando se é um desconhecido em área do Comando Vermelho; etc. Há uma etiqueta que precisa ser respeitada, pois, embora não exista nenhuma certeza de vigilância ou punição, a neurose

135 de apenas um pode acarretar graves consequências. O Crime não é um sistema de poder, mas simultaneamente uma ética, uma etiqueta e uma linguagem que orienta a movimentação dos corpos e enunciados através dos sistemas de poder.

136 4 A PRÁTICA DO 157

Nosso bonde parece pirata Nós roubamos três bancos no Rio Nossa boca tem dente de ouro,

o cordão quase pesa um quilo Nosso bonde é tão preparado,

nós só usa roupa de grã-fino Melhores tênis, melhores perfumes,

Red Bull só pra beber com uísque As mulheres tão cercando o bonde.

Quer luxo, quer viver na fama Mas do bonde só ganha piru tudo cachorra, tudo piranha E no carro com o som bolado quando liga, estronda a porra toda

E no bolso tem aquele banco que os irmão só quer gastar à toa E de dia, nós tamo na praia, de noite, nós vai pro puteiro Nosso bonde gosta de orgia e os mano quer gastar dinheiro No Maraca, eu tô na torcida cantando o hino do Mengão Quem fecha aqui com o Jaca vai cantar esse refrão, vai Nós somos 40, 43 ladrão (Mc Max)

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 142-147)