• Nenhum resultado encontrado

MARGINALIDADE ETNOGRÁFICA

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 41-45)

Este meu mergulho quase romântico pelas redes de sociabilidade da favela, por certo, não ficou impune. Embora eu não tenha nascido ou sido criada no morro, nem tampouco eu tenha qualquer participação em empreendimentos criminosos, posso afirmar que a discriminação sofrida pelos meus interlocutores estendeu-se a mim. A relação próxima que eu conquistei com moradores de favelas e, particularmente, com bandidos e seus parentes proporcionou-me desconfortos dolorosos no meu convívio com familiares e amigos da pista ou asfasto. Como que por “contágio”, a “sujeição criminal” (MISSE, 1999) a que os favelados e, principalmente, os membros do tráfico local estão submetidos, influenciou também a maneira como eu passei a ser tratada e percebida pelas pessoas que me haviam sido sempre tão caras e próximas.

Se, no início, as minhas idas aos bailes funk não despertavam mais do que preocupação e curiosidade, passado algum tempo, o meu comportamento começou a ser interpretado como inaceitável. Espalhou-se a versão de que eu teria “mudado”, perdido o “rumo” de minha vida, me afastado de alguns dos valores essenciais compartilhados pela sociedade dominante, me tornado uma funkeira “quase-favelada” sem modos, pudor, moral ou senso do ridículo. O deslumbramento que as minhas descobertas etnográficas me proporcionavam era demasiado grande e transformador para ser contido, de maneira que eu não só era incapaz de escondê-lo, como também buscava compartilhá-lo com os meus parentes e amigos de sempre. Nas reuniões de família, confraternizações e conversas de bar, eu insistia em tentar contar o que vinha presenciando, narrar as minhas experiências e expor algumas reflexões em vias de desenvolvimento. Apesar de se interessarem, senti que lhes incomodava a minha falta de juízo de valor, os meus relatos de proximidade com o tema e, principalmente, a felicidade com a qual eu discursava sobre o meu campo.

Fui incessantemente confrontada com a acusação de que não se tratava mais de uma pesquisa, pois eu parecia estar indo aos bailes e frequentando favelas por prazer e

31 diversão e não mais a trabalho. Tal denúncia não fazia qualquer sentido para mim, até mesmo por saber que o gosto pelo fazer etnográfico jamais desqualificaria uma pesquisa caso o seu objeto fosse o maracatu, o forró, escolas de samba, etc., enfim, qualquer objeto menos estigmatizado/estigmatizante. O abismo de incompreensão com que me deparei, acabou por me afastar temporariamente do meu circuito habitual de convivência.

Tive que aprender a transitar pelas “margens”. A ambiguidade classificatória em que eu me encontrava parecia ameaçar as tão estimadas fronteiras simbólicas entre o asfalto e a favela, a Lei e o Crime – bem ao gênero da “poluição”, tal qual conceituada por Douglas (1991 [1966]). Ao passo que no morro eu nunca deixei completamente de ser percebida como uma patricinha, uma pessoa da pista ou, simplesmente de “fora”; eu também já não me sentia fazendo mais parte do meu “mundo” de antes. Tornei-me uma estranha no ninho, destoando de todos ao meu redor.

O meu modo de vestir tinha mudado, bem como o meu vocabulário e a minha perspectiva sobre diversas questões polêmicas, levando muitos a argumentar que eu estava me transformando em “nativa”, o que não era verdade. Sob um olhar retrospectivo, acredito que tamanha imersão tenha de fato me transformado substancialmente, mas não em nativa e sim em uma antropóloga. O trabalho de campo etnográfico é comumente pensado enquanto um “rito de passagem” para a nossa formação profissional e, apesar de ter sido esta a minha quarta experiência de campo, ela proporcionou deslocamentos que eu jamais antes vivenciara.

Posso talvez dizer que passei a vivenciar uma situação de “liminaridade” – conceito que se refere à fase de transitoriedade por que passam os sujeitos ou grupos durante os ritos de passagem. Em sua análise sobre tais ritos entre os Ndembu na antiga Rodésia do Norte (atual Zâmbia), Turner (2005) baseou-se nos trabalhos anteriores de Van Gennep (1960) para elaborar uma tipologia das fases dos processos de transição experimentados por pessoas ou grupos que atravessam mudanças de “estado” social.

São estas: a “separação”, em que os sujeitos são apartados de sua situação estrutural anterior; o “período liminar”, ou de “anti-estrutura”, em que o estado do “ser transicional” ou da “persona liminal” é indefinido, ambíguo, e paradoxal; e a

“reagregação”, em que a passagem a um novo estado se conclui, reposicionando os sujeitos na estrutura sob um diferente conjunto de expectativas.

Da Matta (2000) critica a leitura de Turner sobre a liminaridade como sendo substantivista, de maneira a dificultar a compreensão da variedade de conotações e

32 sentidos que este processo pode assumir em diferentes sistemas sociais. Ele discorda que a experiência de coletivização da fase liminal seria uma dimensão central da anti-estrutura, tal como é formulado no conceito de “communitas” (Turner, 1974), marcado pela dissolução da individualização e diferenciação. Na contramão, Da Matta ressalta a aproximação com estados individuais proporcionada pela liminaridade como sendo o reservatório de seu real poder transformativo, produtor da marginalidade experimentada pelos neófitos submetidos aos ritos de passagem:

Se há um denominador comum entre noviços, renunciantes, mágicos, profetas e feiticeiros, este não seria a privacidade ou a criação de uma subjetividade paralela e homogênea à sociedade, livre de peias sociais, mas seria, com certeza, a experiência individualizante que passa por uma visão relativizadora ou carnavalizada da sociedade, na qual o de dentro e o de fora, o parente e o afim, o forte e o fraco, o pobre e o nobre, o homem e a mulher, o jovem e o velho, os vivos e os mortos, confundem-se e trocam de lugar, criando uma perspectiva em que as práticas e os valores cotidianos são invertidos, inibidos ou temporariamente substituídos, para logo se reencontrarem no alívio de uma complementaridade rotineira, mas agora renovada e triunfante. ( pp.19-20)

Este estado marginal/individual, cuja perspectiva relativizadora é capaz de embaralhar as práticas e valores cotidianos, em nada difere do que se espera de um antropólogo. Bohanan (1966) relata que, entre os Tiv, a tradução mais adequada para

“estudioso”, seria “feiticeiro”, o que serve como exemplo do nosso alinhamento com demais tipos de sujeitos marginais encontráveis através das mais diversas épocas e grupos sociais. A experiência de isolamento subjetivo, de situar-se temporariamente fora-do-mundo, é uma importante etapa para o amadurecimento da reflexão antropológica, permitindo-nos aspirar a uma maior ruptura e libertação com relação aos nossos vieses originais.

Não podemos esquecer que até eu começar a conhecer, compreender e me familiarizar com os bandidos de morro; até experimentar da empatia com pessoas que praticam crimes graves, como roubo e homicídio; eu fora moradora do Rio de Janeiro durante os vinte e seis anos anteriores de minha vida. Durante todo esse tempo, como todos os demais habitantes da cidade, vivi apavorada com as ameaças da violência urbana. Antes e até mesmo durante a minha aproximação amigável com ladrões, eu fora diversas vezes vítima de roubo e furto, chegando a ter armas de fogo apontadas em minha direção ou, quando ainda aos dez anos de idade, ouvi a minha mãe ser jogada por ladrões pelas escadas do prédio. Tais experiências não são possíveis de se esquecer.

Para um carioca de classe média ou alta, o ponto de partida para se refletir sobre a violência urbana tende forçosamente a ser a insegurança e o medo da ação de

33 criminosos pobres. Este viés é mais poderoso do que qualquer outro. Moro no interior de muros, grades, câmeras de segurança e alarmes. Como eu poderia ignorar mais de vinte anos tendo pesadelos com assaltos durante o sono? Como colocar entre parênteses a experiência de armas apontadas para mim e para os meus familiares?

Foi preciso dedicar um imenso esforço interno para desprender-me do meu lugar inicial de vítima e alinhar-me com a imparcialidade moral de uma pesquisadora, cujo anseio de “neutralidade” científica sabe-se que nunca se realiza plenamente. Ainda assim, fui alvo de críticas sobre estar “deslumbrada” com os criminosos que estudava, sendo-me imputado um viés que pertencia a quem acusava. Pessoas tão assustadas e traumatizadas, como eu sempre fui, podem sentir-se agredidas e desrespeitadas quando discorro sobre crimes violentos com naturalidade e sem juízo de valor. Mesmo para antropólogos, já familiarizados com a habitual convergência de pontos de vista experimentada em etnografias, uma abordagem compreensiva sobre o crime tende a ser denunciada como ilegítima.

Compreendi, então, que bandidos não são consensualmente concebidos como interlocutores dignos para uma pesquisa etnográfica, tal como o são os índios, quilombolas, trabalhadores rurais, membros de movimentos sociais, etc. Reformulo a pergunta de Spivak (2010)19 e indago: Pode o bandido falar? O conhecimento sobre eles parecia só poder ser produzido por meio de entrevistas formais, isoladas da vida cotidiana, em que os lugares de pesquisador e informante estivessem nitidamente separados. No entanto, este método é extremamente limitado para se compreender o universo criminal.

Certamente, as informações obtidas por este meio são também de grande valor, mas não substituem a necessidade de se observar práticas in loco, de se estabelecer vínculos duradouros com as pessoas, conquistando a sua confiança, ultrapassando as suas fachadas para entrar em sua intimidade e ver além do que elas gostariam de mostrar. O discurso refletido, deslocado do cotidiano, é sem dúvida um rico material de investigação sociológica, mas pode distanciar-se bastante das práticas efetivas que a etnografia acessa. Os dados que serão apresentados a seguir, jamais poderiam ser coletados através de entrevistas.

Durante esta minha experiência “marginal”, sucessivos esforços foram empreendidos por amigos e familiares para incentivar-me a recobrar o “juízo” e retornar

19 “Pode o subalterno falar?” é a pergunta título de seu livro.

34 ao convívio com pessoas da “minha classe social”. O fato de eu carregar a minha filha pequena comigo para a favela também era polemizado, pois alegavam que eu a estava expondo a riscos desnecessários em um “ambiente” impróprio para crianças. Sem êxito, eu tentava explicar que estas eram contingências de uma etnografia e que se eu estivesse estudando algum povo indígena eu poderia me afastar de forma ainda mais contundente, pois me deslocaria, quem sabe, para o meio da floresta amazônica, onde os perigos seriam outros, mas existiriam igualmente. Se eu levava a minha filha junto, era sob o mesmo cálculo de risco efetuado pelos demais moradores de favela, deixando-a brincar apenas bem longe da boca de fumo, por exemplo, ou evitando períodos conflituosos, em que era maior o grau de imprevisibilidade nas rotinas locais.

Os meus argumentos não eram capazes de tranquilizar ninguém, sendo-me frequentemente posta a questão de que eu não “precisava” disso para fazer trabalho de campo. É evidente que nesse ponto eles estavam certos, pois eu, de fato, poderia realizar muitas pesquisas diferentes. Até para abordar o mesmo tema e estudar as mesmas pessoas, eu poderia me valer de um vasto repertório de estratégias e cada uma delas me conduziria a resultados igualmente válidos, embora provavelmente bem distintos.

Entretanto, a minha escolha já estava feita e eu me deixara guiar por cada pequena oportunidade de conhecer uma nova pessoa, ganhar a confiança de outra, escutar determinada conversa, achar uma abertura para colocar uma pergunta, presenciar uma situação, etc.

No documento Coisas da Vida no Crime (páginas 41-45)