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A destituição das autoridades públicas e a revogação das ordens

2. A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

3.2. As origens do recall

3.2.2. Estados Unidos

3.2.2.3. A destituição das autoridades públicas e a revogação das ordens

A revogação de mandatos pelos eleitores ressurge com força nos Estados Unidos no final do século XIX e início do Século XX, principalmente no Estado da

Califórnia, agora denominada recall, para combater, no caso específico desse Estado

norte-americano, os abusos econômicos praticados pela Southern Pacific Railroad, bem como por força das ideias políticas que haviam se afirmado no país na virada do século XIX.135

131CRONIN, Thomas E. op. cit., p. 129. 132Id. Ibid., p. 129.

133SPIVAK, Joshua. op. cit., p. 22. 134CRONIN, Thomas E. op. cit., p. 129.

135A Southern Pacific Railroad era uma empresa privada ferroviária que realizava o transporte, tanto de mercadorias como de passageiros, pela Costa do Pacífico. (Cf. SPIVAK, Joshua. op. cit.,p. 23-24).

Havia, à época, nos Estados Unidos e em especial na Califórnia, uma facção do Partido Republicano, denominada Progressive Movement, que pretendia acabar com a influência dos grandes grupos econômicos (principalmente com a influência da mencionada empresa ferroviária) sobre políticos e juízes.

Arthur A. Ekirch Jr.136, historiador americano e ex-professor da Universidade Estadual de Nova Iorque, teceu ricas observações acerca do movimento progressista americano.

Segundo esse autor, o movimento progressista foi inspirado nos movimentos europeus para o socialismo estatal. No final do século XIX, uma considerável parte dos estudantes americanos se diplomava na Europa, onde tinham contato com os programas de reforma social da Inglaterra e de outros países europeus. Ao voltarem para os Estados Unidos, muitos desses novos profissionais acabaram exercendo funções públicas. Foi surgindo, assim, nos Estados Unidos, um movimento com idéias de reforma da sociedade e de interpretação nacionalista da democracia, para conter e corrigir os abusos econômicos e a corrupção.137

Theodore Roosevelt abraçou fortemente essa tendência e tornou-se o maior líder popular do movimento progressista, ganhando fama como perseguidor de monopólios e trustes econômicos, muito embora, na verdade, não tenha sido tão radical assim com tais corporações.

Ainda conforme as lições de Arthur A. Ekirch Jr.138, as ideias e reformas progressistas, principalmente as de natureza democrática, começaram a ter aplicação local devido à expansão das cidades que passaram a exigir dispendiosos serviços municipais. O crescimento das cidades produziu vultosos contratos de obras, gerando privilégios, fraudes e corrupção em nível local. Os defeitos dos governos estaduais e das cidades resultaram em necessidades de reforma e as cidades americanas passam a ser a esperança da democracia, sob o argumento de que a democracia funcionava melhor nos governos municipais, onde o

136EKIRCH JR., Arthur A. A democracia americana: teoria e prática. Tradução de Álvaro Cabral e Constantino Paleólogo. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. p. 179-202.

137No final do século XIX e começo do século XX, sob influência desses novos fatores, houve na literatura americana um aumento do espírito crítico, com sátiras sobre a corrupção política e críticas aos homens de negócios. Surge a chamada literatura Muckraking da era progressista, com crescente aumento de tiragem de exemplares de jornais e revistas, o que demonstrava um crescente aumento do interesse público sobre tais temas (EKIRCH JR., Arthur A. op. cit., p. 186-187).

povo estava mais familiarizado com as questões locais e onde a opinião pública era mais presente.

Thomas E. Cronin139 assevera que, além dos progressistas, em 1890, os Partidos Populista e Socialista já incitavam a adoção do recall em nível nacional e estadual, sob o argumento de que os governos estavam infestados de pessoas corruptas e privilegiadas. Para eles o dinheiro e o lobby subvertiam a democracia representativa e aí passaram a afirmar que o representante seria um agente e não o patrão. O representante que deixasse de atender à vontade dos representados ou que se afastasse das necessidades e aspirações do povo deveria ser destituído do cargo. Ademais, tanto os populistas como os progressistas entendiam que os dispositivos legais existentes sobre o impeachment eram inadequados e pouco úteis, pois esse instituto punia apenas a prevaricação, deixando sem penalidade o abuso de autoridade e a omissão, sem contar que o suborno era de difícil comprovação. Tais partidos entendiam que aqueles que pretendiam destituir uma autoridade do cargo por meio do procedimento de impeachment deveriam provar previamente a prática de um crime, por isso tal mecanismo seria praticamente inútil e inadequado diante das dificuldades existentes para promoção prévia dessa prova. E, por outro lado, as acusações para o recall eram mais fáceis de serem produzidas, pois podiam tratar desde a presunção de falta de representatividade da autoridade, como de outros fatos como, por exemplo, indiferença quanto às responsabilidades inerentes ao cargo e promoção de gastos inúteis. De modo diverso ao impeachment, o recall seria proveniente da ação política de grupos de cidadãos e não de deliberações legislativas.

As principais inovações democráticas da era progressista consistiam na iniciativa popular, no referendo e na destituição dos funcionários públicos por meio de votação, que foi denominada recall. Como dito, a ideia de governo direto parecia ser mais apropriada aos governos locais do que aos estaduais. A democracia direta foi a forma encontrada para manter o governo ligado ao povo, como forma de controle popular da política. A ideia era a de que o melhor governo baseava-se em mais e não em menos democracia.140

Destarte, foi o movimento progressista americano (apoiado por partidos de esquerda) que resgatou o primitivo recall das antigas colônias, agora, com novas inspirações trazidas do Velho Continente. O recall da era progressista veio, portanto, com

139CRONIN, Thomas E. op. cit., p. 130. 140EKIRCH JR., Arthur A. op. cit., p. 193-194.

uma nova roupagem, inspirado nos acontecimentos históricos europeus do século XIX. A democracia semidireta com foco nos governos locais era o que havia de mais moderno em termos de política.

De forma diversa, André Hauriou141 vê a origem do recall com foco apenas na Suíça, desconsiderando que nos Estados Unidos já havia, no século XVII, práticas de revogação de mandatos pelos colonos e, no século XVIII, tentativas para permitir novamente sua utilização, sem levar em consideração também o fato de que muitos estudantes americanos tiveram contato na Europa, no final do século XIX, com a obra intelectual de Karl Marx, que abordava o assunto da revogação popular dos mandatos.

Embora seja relevante investigar quais foram os motivos que inspiraram o

recall introduzido no início do século XX nos Estados Unidos142, fato é que os

mecanismos de participação popular, a exemplo do referendo, plebiscito e recall foram as armas encontradas pelos progressistas para combater o poder dos grandes grupos econômicos que atuavam regionalmente nos estados-membros e nas grandes cidades americanas.

Cronin143 observa que, até 1900, poucas e pequenas localidades haviam implementado o recall em suas legislações. Los Angeles, controlada por políticos vinculados aos interesses de grupos econômicos, principalmente à empresa ferroviária

Southern Pacific Railroad, foi o primeiro Estado importante a inserir o recall em suas leis

orgânicas municipais.

Segundo Spivak144, por influência do líder progressista John Haynes, em 1903, a cidade de Los Angeles editou uma lei instituindo o recall, que foi utilizada para remover ocupantes de cargos públicos na Prefeitura por prática de atos ilícitos.

Durante a primeira década do Século XX, os progressistas da Califórnia continuaram a desafiar os poderes da Southern Pacific Railroad, pois conseguiram, na

141Para André Hauriou, a pátria de origem do recall norte-americano é a Suíça, onde se instaurou nos meados do século XIX o instituto denominado abberufungsreicht, que tratava da revogação de todos os mandatos da assembleia legislativa. Para o jurista francês, este instituto foi a verdadeira inspiração do recall. Para ele, houve uma espécie de importação deste mecanismo suíço para utilização em terras americanas, onde encontrou um ambiente extremamente favorável, expandindo-se rapidamente com o nome de recall, adaptando-se de tal forma a ponto de ser aplicado a todos os funcionários que integravam o governo (HAURIOU, André. op. cit., p. 64).

142Na verdade, foi um conjunto de fatos e de influências. Todos foram relevantes e influenciaram a instituição do recall no país, desde o histórico de participação popular do povo norte-americano e de casos no passado de revogação de mandatos populares nesse país, até os ideais socialistas e os exemplos suíços.

143CRONIN, Thomas E. op. cit., p. 130. 144SPIVAK, Joshua. op. cit., p. 23.

cidade de São Francisco, promover condenações de funcionários públicos e juízes por prática de corrupção.

Com a eleição de Harim Johnson (um dos promotores de justiça desses casos de corrupção de São Francisco) para governador da Califórnia, em 1910, os progressistas ganharam fôlego e apresentaram projetos de emendas constitucionais estaduais para instituir o referendo, a iniciativa legislativa popular e o recall. Houve um grande debate sobre a possibilidade de se revogar o mandato de juízes, principalmente em razão do princípio da independência do Poder Judiciário.145 Paralelamente, foram ressuscitados os julgamentos de corrupção de São Francisco, o que gerou um enorme alvoroço político que estimulou os deputados estaduais a apoiarem o recall em sua totalidade, inclusive com a possibilidade de remoção de juízes.146

Em 1911, na Califórnia, foram definitivamente aprovados o referendo, a iniciativa legislativa popular e o recall.

O recall foi instituído também no estado de Oregon, antes da Califórnia, em junho de 1908 e, ao longo do século XX, muitos outros Estados e cidades passaram a contar com tal mecanismo em suas Constituições e leis orgânicas.147