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2. A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

3.3. A configuração jurídica do recall

3.3.6. Forma de expressão da oposição política

Monica Herman Salem Cagianno179 elaborou excelente estudo sobre o fenômeno oposição, com amparo nas lições De Vergottini, Dahl e Duverger, no qual baseamos as ponderações que serão expendidas sobre o tema em questão.

Ensina a ilustre professora que o fenômeno oposição, como elemento formal do quadro institucional, vem da experiência anglo-saxônica, vinculado à evolução do parlamentarismo.

Até o final do século XVII, na Inglaterra, a oposição não era reconhecida institucionalmente pela ordem jurídica. Tal reconhecimento ocorre somente posteriormente na Dinastia Hanover, quando foi erigida ao nível constitucional, segundo a tese de que o exercício da oposição caberia à Câmara dos Comuns.

A partir do século XVII, com a consagração da separação funcional do poder estatal, a oposição passa a ser exercida dentro do próprio governo, integrando a ordem jurídica como forma de limitação e controle entre os poderes.

Posteriormente, assim que os partidos políticos passaram a ter importância na vida política assumindo formas diferentes de atuação, com o passar do tempo, a oposição

178O sistema democrático brasileiro fundamenta-se na participação indireta e direta, nos termos do parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal. Ao mesmo tempo em que o sistema democrático é representativo, ele também é fundamentado na soberania popular. Portanto, o mandato, no Brasil, não pode ser simplesmente fundamentado na antiga tese da soberania nacional, uma vez que o elemento “soberania popular”, contido no nosso sistema jurídico, traz uma nova perspectiva para o mandato.

179CAGGIANO, Monica Herman Salem. Oposição na política: propostas para uma rearquitetura da democracia, cit., p. 11-23; 95-99.

adquiriu novas roupagens. Dentro da concepção de partido único, assume uma atuação dentro da própria agremiação político-partidária. No sistema inglês do two parties system, a oposição assume um caráter institucional de função pública, atuando de forma responsável, a ponto do chefe do partido minoritário receber salários dos cofres públicos e de ser o líder oficial da oposição ao governo. No quadro multipartidário, por seu turno, a oposição assume um papel integrativo e no panorama dos partidos de massa perde-se o caráter integrativo, passando a exercer um papel de contínua mobilização política para conquistar diversos níveis de influência na esfera do poder.

Em que pese a considerável evolução do fenômeno, o reconhecimento do papel da oposição na democracia ainda não se consagrou de forma definitiva.

É interessante observar que a Constituição Portuguesa, no seu art. 114180, reconhece oposição como um direito, demonstrando um notável avanço do Direito Constitucional deste país.

Ainda de acordo com os ensinamentos de Monica Salem Herman Caggiano, hoje, basicamente, a oposição se manifesta no processo político de quatro formas distintas. Em primeiro lugar, por meio dos partidos políticos, sendo essa a forma mais usual e conhecida. Expressa-se também por intermédio de grupos e movimentos sociais, com especial destaque para os lobbies e organizações não-governamentais, bem como na esfera judicial mediante a utilização de writs constitucionais e, no caso, do Brasil, especialmente mediante o ajuizamento de ações populares. Por fim, manifesta-se a oposição por meio dos instrumentos de democracia semidireta, a exemplo do referendo, plebiscito, veto popular e do recall, objeto deste estudo. Com relação a essa última forma de expressão, a oposição, de forma independente das organizações intermediárias, interfere diretamente nas esferas do poder.

No contexto do recall norte-americano, a oposição se manifesta convencendo o eleitorado a interferir diretamente, por meio do voto, para manter ou destituir um

180Art. 114º da Constituição de Portugal: “Art. 114º. (partidos políticos e direito de oposição): 1. Os partidos políticos participam nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo, de acordo com a sua representatividade eleitoral. 2. É reconhecido às minorias o direito de oposição democrática, nos termos da Constituição e da lei. 3. Os partidos políticos representados na assembléia da República e que não façam parte do Governo gozam, designadamente, do direito de serem informados regular e directamente pelo Governo sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público, de igual direito gozando os partidos políticos representados nas Assembleias Legislativas das regiões autônomas e em quaisquer outras assembleias designadas por eleição directa relativamente aos correspondentes executivos de que não façam parte”. PORTAL do Governo. Disponível em: <http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Portal/PT/Portugal/Sistema_Politico/Constituiçao/constituiçãop13.h tm>. Acesso em: 16 jan. 2009.

representante político ou autoridade pública ou, ainda, raramente, para revogar decisões judiciais.181

O recall, portanto, como registra Monica Salem Herman Caggiano, “implica, de fato, uma função censora cometida aos eleitores, vinculando os governantes e impondo- lhes o respeito à opinião pública por meio da ameaça psicológica permanente de sua destituição”.182

3.3.7. Sanção de natureza política

O mandato pode se extinguir naturalmente com a morte, renúncia ou término por cumprimento do prazo para seu exercício ou pode ser perdido por aquele que o exerce em decorrência de aplicação de uma sanção de natureza política.

Como resultado de medida punitiva, o mandato pode ser perdido pelo representante em decorrência de cassação, ação de impugnação de mandato eletivo,

impeachment, infidelidade partidária e recall.

Cassação, no Brasil, constitui ato punitivo que pode advir da própria casa

legislativa, nas hipóteses de conduta incompatível do parlamentar com o exercício da investidura política ou de falta de decoro parlamentar ou, ainda, sanção que pode ser aplicada pela Justiça Penal, nas hipóteses de condenação por crime funcional que acarrete a aplicação de pena acessória de perda ou inabilitação para a função pública.183

A ação de impugnação de mandato eletivo é uma ação prevista na Constituição Federal brasileira, especificamente no art. 14, na qual o mandato eletivo pode ser impugnado perante a Justiça Eleitoral, no prazo de quinze dias contados da diplomação, desde que haja provas de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude, devendo tramitar em segredo de justiça.

181No caso recente da Bolívia (2008), que tecnicamente não pode ser considerado como recall (mas sim como um procedimento específico para revogação de mandatos inspirado no modelo socialista), o mecanismo chamado referendo revocatório, no meio de uma crise institucional, foi aprovado em maio de 2008 pelo Senado boliviano (composto em sua maioria pela oposição ao governo) para tentar destituir Evo Morales do cargo de Presidente da República.

182CAGGIANO, Monica Herman Salem. Oposição na política: propostas para uma rearquitetura da democracia, cit., p. 97.

183MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 12. ed. atual. por Célia Marisa Prendes e Márcio Schneider Reis. São Paulo: Malheiros Ed., 2001. p. 598.

Impeachment, por seu turno, como ensina Paulo Brossard184, não obstante

tenha sido considerado no passado com o instituto de natureza penal, ato disciplinar e providência administrativa, trata-se, no Brasil, assim como nos Estados Unidos e Argentina, de instituto de natureza política, decorrente de prática de crime de responsabilidade, e seu procedimento é desenvolvido e decidido pela respectiva Casa Legislativa, resultando na perda ou confirmação de um mandato político, mediante votação realizada pelos próprios parlamentares.185

Cabe ressaltar, ainda, que, no Brasil, a infidelidade partidária também pode ensejar a perda do mandato político, conforme decidido recentemente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Por fim, o recall possui também caráter sancionador, de índole política, bastando, para comprovação de tal natureza, verificar as hipóteses existentes para seu processamento no direito norte-americano, tais como prática de atos de corrupção, desvio de dinheiro público, perjúrio, condenação criminal e indiciamento durante o mandato, bem como incompetência administrativa, conforme será analisado mais à frente.186

Portanto, o recall, hoje, não é apenas uma simples forma de extinção do mandato pelo voto decorrente do humor do eleitorado e sim uma sanção aplicada pelo próprio corpo eleitoral em virtude da conduta antiética, ilícita ou incompetente da autoridade pública. O recall se aplica em decorrência de mau comportamento do agente público, por isso, possui caráter sancionador, da mesma forma como ocorrem nos outros

184BROSSARD, Paulo. O impeachment. Porto Alegre: Oficinas Gráficas do Globo, 1965. p. 72.

185Pontes de Miranda qualificava o impeachment como “medida que tem por fito obstar, impedir que a pessoa investida de funções públicas continue a exercê-las” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de.

Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Max Limonad, 1953. v. 2, p. 416). A

maioria dos autores, a exemplo de Paulo Brossard e Themistocles Cavalcanti, entende que o impeachment possui natureza exclusivamente política. No entanto, Pontes de Miranda entende ter o instituto natureza penal e José Frederico Marques, por sua vez, natureza mista (política e penal). Manoel Gonçalves Ferreira Filho, por sua vez, com relação à forma, afirma que o impeachment possui natureza judiciária (cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 163-164).

186No Estado de Minnesotta, nos Estados Unidos, por exemplo, para se deflagrar o recall é necessário que existam provas sobre mau comportamento ou prática de atos ilícitos da autoridade pública. De acordo com a Constituição desse Estado americano, antes da circulação da petição de recall (emitida para coleta de assinaturas), a Suprema Corte Estadual deve avaliar se os fatos alegados na petição são verdadeiros e se há motivos suficientes para submeter a autoridade pública ao procedimento de revogação popular. Assim, o mandato só chegará a ser revogado (submetido à decisão popular) se o Judiciário se manifestar previamente sobre as provas, o que corrobora a nossa opinião de que o recall possui um caráter punitivo. Constituição do Estado de Minnesotta: RECALL of State Elected Officials. A Proposed Minnesota Constitutional Amendment. Disponível em: <http://www.house.leg.state.mn.us/hrd/pubs/recall96.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2009 e MINNESOTA CONSTITUTION. Article VIII. Impeachment and Removal from Office. Disponível em: <http://www.house.leg.state.mn.us/cco/rules/mncon/Article8.htm>. Acesso em: 16 jan. 2009.

institutos acima mencionados, com a diferença essencial que quem instaura e decide o procedimento no caso do recall é o eleitorado.