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5. O RECALL E O SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

5.3. A questão da viabilidade do recall no direito brasileiro

5.3.1. Municípios

5.3.1.3. O recall no contexto do governo municipal

Deve ser levado em consideração o fato de que existe uma tradição secular no Brasil de governo municipal.

Há um costume antigo nos Municípios brasileiros de determinar e gerir os assuntos de seus interesses. A população do Município, principalmente dos pequenos e médios, está acostumada a acompanhar a vida cotidiana da cidade. As pessoas estão acostumadas com o processo eleitoral e depois de escolhidos os representantes ocorre um natural desenvolvimento e acompanhamento da vida política. Os eleitores vêem o Prefeito chegar à Prefeitura, sabem o horário que ele entra e sai do expediente, assim como o de seus auxiliares mais diretos. Em geral, os Prefeitos e Vereadores comparecem aos eventos sociais, às rádios e prestam esclarecimentos à população.348

Há casos, entretanto, nos quais os agentes políticos municipais não prestam contas de sua gestão e acabam se envolvendo em corrupção, crimes e atos absolutamente imorais. Muitas vezes, para evitar uma cassação de mandato, o prefeito suborna os vereadores ou os próprios edis se confabulam entre si para evitar punições políticas. O

346Poder de legislar sobre assuntos de interesse local, suplementar a legislação federal e estadual, etc.

347Competência comum com a União e os Estados-membros, como, por exemplo, nos termos do art. 23 da Constituição, preservar florestas, a fauna e a flora, bem como proteger o meio ambiente.

348Como bem observa Monica Herman Salem Caggiano, “podemos inferir o sufrágio, a nível municipal, como aquele que, de forma mais eficaz assegura valor às vontades expressas pelos votos depositados nas urnas. Sem qualquer ingerência de mecanismos e artifícios, nesse setor, cada cidadão detém parcela participativa igual na seleção do Chefe do Executivo (prefeito e vice-prefeito) e dos membros do legislativo” (CAGGIANO, Monica Herman Salem. Sistemas eleitorais x representação política, cit., p. 73).

resultado disso é que a população fica com um sentimento de revolta, frustrada e com as mãos atadas. Há um sentimento popular de falta de representação e de ausência de controle político.

Além disso, pelo lado institucional, a Constituição de 1998 já preparou o caminho para o aperfeiçoamento do governo municipal, incluindo os Municípios como entidades componentes da Federação brasileira, com autonomia política, administrativa e financeira. Dentre outros aspectos, a autonomia política do Município está diretamente relacionada à questão da eleição de seus agentes políticos. E é exatamente neste ponto que se pode falar em recall em nível municipal.

O melhor caminho para evitar transtornos e desconfortos tanto para as autoridades públicas como para a população em geral, para que exista segurança jurídica, é a modificação da Constituição Federal para permitir a figura do recall como mecanismo de democracia semidireta, num primeiro momento aplicável apenas em nível municipal e, posteriormente, se depois de três anos, constatar-se que o instituto trouxe bons resultados à democracia brasileira, poderia, assim, ser estendido ao nível regional e nacional, desde que reformulado o sistema eleitoral.

Os Municípios brasileiros, em sua maioria, são pequenos e médios, com menos de cem mil habitantes, o que significa que, em princípio, não há necessidade de alteração do sistema eleitoral no Brasil para instituição do recall.349 Nesses Municípios, pequenos e médios, o recall já poderia fazer parte da primeira fase da reforma política, excepcionando os Municípios com mais de cem mil habitantes que somente entrariam numa segunda fase, junto com os Estados e Municípios, depois de três anos.

Para viabilizar o recall nos pequenos e médios Municípios, seria conveniente a edição de uma lei nacional estabelecendo parâmetros para adoção do instituto nos Municípios com menos de cem mil habitantes. Assim, por exemplo, a lei nacional poderia estabelecer que o Município com menos de cem mil habitantes, que tiver interesse de inserir em sua lei orgânica o mecanismo do recall, poderá previamente realizar um plebiscito para decisão dos eleitores locais sobre a conveniência ou não de adoção desse mecanismo. Poderá também constar da lei nacional simplesmente a possibilidade dos Municípios instituírem em suas leis o recall, sem necessidade de plebiscito ou posterior referendo, evitando, assim, custos para as municipalidades.

349Se esses Municípios (pequenos e médios) fossem divididos em distritos, obviamente, a aplicação do recall seria muito mais fácil.

Nesse mesmo diploma nacional poderia ser estabelecido, também, para orientação dos Municípios, uma margem percentual de 5% (cinco por cento) a 15% (quinze por cento) de assinaturas de eleitores, para dar início ao mecanismo de recall, ficando a critério de cada Município decidir, dentro desse parâmetro, qual percentual será adotado para deflagração do procedimento.

Ademais, essa lei nacional poderia estabelecer as hipóteses mínimas para dar ensejo ao mecanismo, tais como indícios de prática de atos de corrupção, desvio de dinheiro público, fraude, compra (e venda) de votos e indícios de prática de crimes em geral, inclusive a incompetência administrativa no caso de patente inatividade, prática de atos administrativos imotivados e ausência de gastos mínimos nas áreas de saúde e educação, inclusive flagrante desrespeito à responsabilidade fiscal legal. A eleição de

recall poderia ser presidida pelo juiz da comarca, assistida pelo membro local do

Ministério Público, com auxílio do Tribunal Regional Eleitoral. O Prefeito ou o Vereador seria destituído do cargo na hipótese de o recall receber o apoio da maioria dos eleitores. Uma caução deverá ser exigida da pessoa física ou do grupo que der início à coleta das assinaturas para a deflagração do recall e, se for comprovada má-fé na deflagração do instituto, o Tribunal Regional Eleitoral deverá cancelar o título ou os títulos de eleitores daqueles que deram início ao procedimento, mediante processo específico. O recall somente poderá ser requerido após um ano, contado da assinatura do termo de posse do Prefeito ou Vereador. No caso de recall de Prefeitos, na cédula eleitoral haverá duas perguntas aos eleitores. A primeira será se o Prefeito deverá ser destituído ou não da função pública e a segunda sobre quem deverá substituí-lo, exatamente como ocorre no Estado da Califórnia. Com relação aos Vereadores, constará da cédula apenas a questão sobre a destituição. O suplente deverá assumir no lugar do vereador destituído.

Dessa forma, o recall pode ser utilizado nos Municípios de acordo com a vontade dos munícipes e de acordo com princípios constitucionais que regem a autonomia municipal.

Ademais, na forma como está apresentado acima, trata-se praticamente de figura idêntica, senão, no mínimo irmã gêmea, do recall norte-americano e talvez seja essa a única maneira de este instituto tornar-se efetivamente viável no Brasil, pois, nas demais entidades políticas (grandes Municípios, Estados e em nível nacional) a dificuldade será consideravelmente maior, levando em conta o número de pessoas e custos envolvidos.

O recall é um instituto que foi idealizado para o nível municipal norte- americano, o que, do nosso ponto de vista, corresponde à nossa expectativa. No Brasil, sua utilização em nível local seria um bom teste para esse mecanismo, num primeiro momento apenas para os Municípios menores, mesmo dentro do sistema de representação proporcional.