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A disseminação da ideologia jurídica no contexto escolar

Abordaremos, agora, a relação entre o sistema judiciário e o sistema escolar, para

melhor compreendermos este tipo de instituição e os lugares que os sujeitos envolvidos no

processo de ensino-aprendizagem podem e devem ocupar.

A partir de Foucault (1973 [1999a:120]), entendemos que o sistema escolar é baseado

em uma espécie de poder judiciário, tendo em vista que, “a todo o momento, se pune, se

recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior”. Além disso, a

instituição escolar, assim como o poder judiciário, exerce um papel social, ao assegurar que

determinadas funções sejam cumpridas. No caso da escola, a principal função exercida é o

ensino que, por sua vez, deve ser realizado de modo a garantir o controle dos indivíduos e o

“centramento” ideológico do sujeito. Nesse prisma, o poder judiciário ou o direito, assim

como a escola, “ao designar os homens e os objetos, dando-lhes um lugar, reúne-os numa

visão comum, numa representação global” (Miaille, 1994:96).

Não só a instituição escolar, mas as instituições de modo geral se justificam por

exercerem o enquadramento ou a fixação do sujeito no meio social em que vivem. Para

tanto, todos aqueles que compõem e representam tais instituições devem ocupar lugares e

funções predeterminados. Miaille (1994:98-9) define as instituições como

um conjunto coerente de normas jurídicas relativas a um mesmo objecto, abrangendo uma série de relações sociais unificadas pela mesma função (...). Uma instituição forma um todo, relativamente coerente, para um objecto dado (...). Formando unidade, cada uma dessas instituições está submetida a uma certa lógica que lhe justifica tanto a sua criação, como o seu funcionamento.

Sobre a função das instituições na manutenção de uma ordenação social, o autor (id.ibib)

relações sociais reais que elas exprimem”. A instituição escolar, em particular, tem a

propriedade e a finalidade de implicar o controle e a responsabilidade, que são aspectos

típicos da ideologia jurídica, conforme já mencionado anteriormente.

A fim de focalizar a dimensão da ideologia jurídica no funcionamento do sistema

escolar, convém salientar os lugares e as funções dos agentes que atuam nesta instituição.

Assim como as noções de autoridade, controle e poder são fundamentais para o

funcionamento da discursividade jurídica, essas também são essenciais no contexto escolar,

principalmente para fixar os indivíduos nos seus lugares, atribuindo-lhes funções

predeterminadas.

A estreita relação do discurso jurídico e a função dos legisladores e juízes com o

discurso da prática pedagógica e a função daqueles que atuam no processo de ensino pode

ser (re)pensada, a partir das considerações trazidas por Perelman (2000:303):

ante a multiplicidade de normas e valores, o direito, querendo garantir a segurança jurídica que fixaria os direitos e obrigações de cada qual, tem que conceder a alguns, os legisladores, a autoridade de elaborar as regras que se imporão a todos, e tem que designar aqueles, os juízes, que terão a incumbência de aplicá-las e interpretá-las.

Estendendo essas considerações para o contexto escolar, podemos afirmar que esta

instituição, juntamente com o Estado, exerce uma espécie de função jurídica, ao fixar

direitos e obrigações. Aos diretores acadêmicos, supervisores e coordenadores,

hierarquicamente, cabe a autoridade de elaborar e reforçar as regras que serão impostas a

todos. Já aos professores cabe a função de atuar como juízes, ou seja, de aplicar e

interpretar as leis preestabelecidas, julgando e avaliando, a todo o instante, de modo a

Independentemente do lugar ocupado pelo sujeito no sistema escolar, a noção de

autoridade relacionada ao poder é fundamental para a manutenção dessa instituição e de sua

função reguladora sobre os indivíduos. Melhor dizendo, a autoridade se apresenta como um

aspecto normativo: é o que deve ser seguido ou obedecido. No entanto, para que a

autoridade seja exercida, é preciso que o poder de quem a exerce seja legitimado e

reconhecido.

A definição de autoridade proposta por Maritian (apud Perelman, 2000), dentro de uma

perspectiva do direito, também parece fundamentar a conduta do professor em relação aos

alunos, em sala de aula. Trazendo as palavras do autor (op.cit.:329), “chamamos de

autoridade o direito de dirigir e comandar, de ser escutado ou obedecido pelos outros; e de

‘poder’ a força de que se dispõe e com cuja ajuda se pode obrigar os outros a escutar ou a

obedecer”. Partindo desta citação, uma autoridade derivada da autoridade de professor tem

o “poder” de ditar, aos outros ou aos seus subordinados (alunos), o que deve ser

considerado como verdadeiro ou falso.

Mais uma vez, o estabelecimento da verdade aparece relacionado ao poder-saber ou, de

acordo com uma visão foucaultiana (1979 [1990]), se fundamenta nas relações de poder.

Nietzsche (1844 [1992:94-5]) já havia sugerido que o apagamento do sujeito está na raiz da

transmissão do conhecimento e da educação:

os pais fazem dos filhos, involuntariamente, algo semelhante a eles – a isso denominam educação. E assim como o pai, também a classe, o padre, o professor e o príncipe continuam vendo, em toda nova criatura, a cômoda oportunidade de uma nova posse.

Tal citação enfatiza a homogeneização dos sujeitos e de seus comportamentos, em função

No contexto escolar, a construção de verdades e certezas cabe não só ao sujeito que

tem sua autoridade e poder reconhecidos pelos demais, mas também aos instrumentos que

atestam e comprovam tais verdades. Mais especificamente, a prova ou avaliação formal, à

qual o aluno é submetido, durante todo o processo de ensino-aprendizagem, representa um

documento ou instrumento que estabelece a verdade sobre o aluno, ou seja, a avaliação

acaba sendo o lugar de constatação da verdade sobre o aluno e não o lugar que possibilita o

deslocamento de sentidos e de certezas predeterminadas. Assim sendo, a função da prova

ou exame, enquanto documento que comprova a capacidade do aluno, é de fixá-lo em um

determinado lugar que, muitas vezes, não possibilita deslocamentos nem rupturas.

O atravessamento da prática pedagógica pela jurídica se faz ainda mais presente, ao

focalizarmos a função da prova no contexto escolar. Segundo Foucault (1973 [1999a:33]), a

prática de estabelecimento da verdade pela prova está relacionada à descoberta jurídica da

verdade. Talvez por isso a prova seja considerada como um documento comprobatório de

natureza binária e automática, ou seja, havendo a prova, o indivíduo vence ou fracassa.

Retomando a formulação do autor (op.cit.:61),

a prova é de certa maneira automática (...). É o equilíbrio das forças, o jogo, a sorte, o vigor, a resistência física, a agilidade intelectual que vão distinguir os indivíduos segundo um mecanismo que se desenvolve automaticamente. A autoridade só intervém como testemunha da regularidade do procedimento.

O autor (op.cit.:62) esclarece que este também é o funcionamento das provas

judiciárias, ou seja, está presente alguém que tem o nome de juiz e este juiz não testemunha

sobre a verdade, mas sobre a regularidade do procedimento. Nesse mecanismo, a prova

serve para nomear não quem disse a verdade, mas quem tem razão: a prova funciona como

É justamente essa prova de natureza automática, regular e binária que é aplicada no

contexto escolar, onde o professor atua como juiz e tem a autoridade de dar o veredicto em

relação ao aluno avaliado. Nesse sentido, a avaliação representa uma certeza imediata em

relação ao sujeito que é pensado e avaliado por aquele que ocupa o lugar do saber. Vale

retomar que o pensar é construído em função do momento histórico-social e de

representações imaginariamente construídas, além de estar atrelado ao lugar discursivo

ocupado pelo sujeito.

A partir de Haroche (1992:21), entendemos que a avaliação formal não só exerce um

poder sobre os indivíduos que a ela se submetem, mas também atua na construção de

representações identitárias, na medida em que “classifica os indivíduos em categorias,

identificando-os, amarrando-os e aprisionando-os em sua identidade”. Nesse prisma,

podemos afirmar que a prova exerce um poder que individualiza, coage e “rotula” o sujeito,

já que representa um instrumento que possibilita a construção de verdades sobre o sujeito,

que é constantemente avaliado.

A imposição de transparência e o ideal de completude, presentes na prova enquanto

instrumento de verificação de aprendizagem e como instrumento de poder, se inscrevem

diretamente na subjetividade do sujeito-aprendiz, tornando visíveis e predizíveis corpos,

comportamentos e atos, isto é, garantindo a disciplinarização do sujeito. Para que a prova

deixe de ser previsível “é preciso fazer aparecer o espírito, a interioridade, o não visível

pelas palavras” (Haroche, 1992:22).

Finalmente, se considerarmos que, no contexto escolar, a prova constitui uma prática de

estabelecimento da verdade sobre o sujeito-aluno, então podemos relacionar a prova com a

prática da confissão que, segundo Foucault (1988 [1997:59]), é uma das técnicas mais

completar-se naquele que a recolhe ou que a reconhece como tal. No caso deste estudo,

cabe ao sujeito-professor, que atua como instância de poder, reconhecer a verdade do

sujeito-aluno, a partir da “confissão” deste que, por sua vez, permitirá avaliá-lo, julgá-lo,

puni-lo ou perdoá-lo.

Com base em um rápido histórico da confissão, apresentado por Foucault (op.cit.:62),

compreendemos que o ritual desta prática permaneceu, durante muito tempo, solidamente

relacionado ao sacramento cristão da penitência, mas, a partir do século XVIII, difundiu-se

e foi utilizado em uma série de relações: crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e

psiquiatras etc. A confissão surge, então, como um falar de si, possibilitando que verdades

que se escondem do próprio sujeito-enunciador venham à tona, através da materialidade da

língua. Em outras palavras, a porosidade da língua faz com que a confissão torne o

inacessível capturável ou “objetável”. Vale destacar que a confissão, enquanto técnica de

produção de “verdade(s)”, toma formas variadas tais como interrogatórios, consultas, cartas

e provas; fato este que possibilita a diversificação dos seus efeitos.

Retomando o nosso tema de estudo, a avaliação formal ou prova surge como uma forma

de confissão que produz a verdade sobre o sujeito-aluno, verdade esta reconhecida,

“provada” e atestada, através do instrumento de avaliação empregado e que possibilita a

elaboração de saberes sobre o sujeito-aluno. É o saber do professor em relação ao aluno que

irá atuar, diretamente, na constituição identitária do sujeito envolvido no processo de

ensino-aprendizagem. Essas considerações serão de grande valia para a análise dos eventos

abordados, como poderá ser constatado na segunda parte da tese, dedicada à exposição dos

SEGUNDA PARTE

CONSTITUIÇÃO DO CORPUS DISCURSIVO E ANÁLISE

DOS REGISTROS

INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE

Como já mencionado anteriormente, nesta segunda parte da tese, descreveremos, no

primeiro capítulo, os eventos discursivos que compõem o corpus de pesquisa e o modo

como a análise dos registros foi trabalhada, salientando os autores, as perspectivas teóricas

e os conceitos que a fundamentam. Ainda no primeiro capítulo, abordaremos as condições

de produção que atuam diretamente na constituição dos sentidos produzidos pelos

acontecimentos discursivos, atentando para o espaço onde as formulações foram proferidas

e para o lugar de enunciação ocupado pelo sujeito de linguagem.

A análise dos registros está organizada em três diferentes capítulos. No primeiro

capítulo de análise, destacamos algumas representações que estão atreladas à imagem de

professor como justiceiro, bem como a noção de avaliação formal ou prova que circula no

contexto escolar e que produz sentido(s) ao evocar conceitos como neutralidade e

igualdade, provenientes de outros domínios discursivos. No segundo capítulo, analisamos

alguns dizeres sobre os resultados obtidos na avaliação formal que, por seu turno,

fundamenta e legitima a construção de saberes e da verdade sobre o aluno, além de atuar na

constituição identitária do sujeito que é constantemente falado e avaliado. No último

capítulo de análise, enfatizamos o conflito de representações a respeito de ser aluno e de ser

professor, por meio da observação e da contraposição do discurso avaliador do sujeito-

professor com as formulações postas pelo sujeito-aluno. Observamos que a busca de um

modelo tido como ideal, que dita ao sujeito o que este deve ser para se tornar completo,

choca-se com o ser sempre incompleto, graças à heterogeneidade e à falta que o

CAPÍTULO 1

CORPUS DE PESQUISA, PERCURSO DA ANÁLISE E CONDIÇÕES DE

PRODUÇÃO