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Do equívoco como fato estrutural atrelado à primazia do significante

1.1 Relações entre as perspectivas adotadas

1.1.3 Do equívoco como fato estrutural atrelado à primazia do significante

Se considerarmos que falar uma língua é estar em um funcionamento lingüístico que

inclui equivocidade ou falhas, podemos afirmar que o equívoco é inerente a todo dizer.

Sendo assim, o sujeito de linguagem não é posto como origem única do seu dizer, mas

como efeito do significante, daquilo que o representa e que foge ao seu controle.

Na teoria psicanalítica, é a partir da introdução do termo lalangue - cujo sentido tem

sua origem na “lalação”: fase indiscernível da fala da criança – que Lacan entende que o

inconsciente é a condição para a língua, tendo em vista que esta é da ordem do resto, do

impossível. A lalangue é, portanto, o lugar onde se mostra e se aloja o equívoco na língua,

pois representa a possibilidade e a impossibilidade do dizer: “é o espaço onde o desejo se

espalha e o gozo se deposita” (Milner, 1978 [1987:8]). O conceito de lalangue se refere não

somente à língua enquanto estrutura do calculável, mas a tudo aquilo que a excede e que

aponta para o duplo, para o inesperado que é próprio do equívoco e, conseqüentemente, do

funcionamento lingüístico. Leite (1994:36), ao propor pontos de aproximação entre a

conceito de alíngua foi forjado por Lacan para dar conta da equivocidade que trabalha

incessantemente a língua.

Vale destacar que, na prática psicanalítica, o equívoco é entendido como sintoma que

desnuda os desejos do enunciador. O “sintoma”, por sua vez, é acessível ou

“materializável” através das formações do inconsciente como: lapso, ato falho, chiste etc.

que se dão a escutar via linguagem.

Já na abordagem discursiva, é o equívoco que “desnuda” a verdade do sujeito que

enuncia, ao produzir uma falha material que foge ao seu controle. Essa falha não pode ser

recoberta, possibilitando a produção de sentidos outros, por vezes indesejáveis e que

denunciam a posição ocupada pelo sujeito de linguagem, bem como as formações

discursivas em que seu dizer se inscreve para produzir sentidos. Nesse prisma, não é o

sujeito que fala a língua, mas, sim, a língua que fala a verdade do sujeito, ao apontar suas

formações ideológicas e os vários discursos que legitimam seu dizer. De acordo com

Pêcheux (1983 [1997b:51]), a AD procura construir procedimentos de análise ou de

descrição da materialidade posta “capazes de abordar explicitamente o fato lingüístico do

equívoco como fato estrutural implicado pela ordem simbólica”. É um trabalho de sentido

sobre o sentido que escapa a qualquer norma estabelecida a priori.

Com base nas afirmações anteriores, nota-se que essa noção de equívoco ou de

equivocidade que suporta o duplo, o heterogêneo ou tudo aquilo que ultrapassa a vontade

do sujeito enunciador, perpassa tanto a psicanálise como a prática discursiva. Em ambas as

perspectivas, o equívoco se mostra no funcionamento discursivo, o que difere é o

tratamento e a interpretação atribuída a ele. Observa-se, ainda, que, em ambas as

perspectivas teóricas, a verdade não se apresenta na aparente unidade discursiva, mas se dá

linguagem. Citando Lacan (1975b [1986:302]), “nossas palavras que tropeçam são as

palavras que confessam. Elas revelam uma verdade de detrás”. Convém salientar que a

noção de equívoco, aqui trabalhada, só é possível a partir da hipótese do inconsciente e de

não autonomia do sujeito.

O fato de o equívoco ser constitutivo do funcionamento da linguagem faz com que os

mesmos enunciados construam significações diferentes, dependendo de sua situação de

enunciação. É nesse lugar de embate entre o mesmo e o diferente que se situa a proposta de

desconstrução derridiana. A partir do mito da torre de Babel, Derrida (2002:11-2) enfatiza a

“multiplicidade irredutível das línguas que exibe um não-acabamento, a impossibilidade de

completar, de totalizar, de saturar, de acabar qualquer coisa que seria da ordem da

edificação, da construção arquitetural, do sistema e da arquitetônica”.

Nota-se que a reflexão desconstrutivista também se fundamenta na idéia de que há um

limite interno à formalização, à estrutura da língua que comporta falhas, dando vazão à

multiplicidade de sentidos. Podemos dizer, portanto, que a incompletude, a multiplicidade,

a falha ou, simplesmente, o equívoco é um fato estrutural, isto é, inerente à estrutura da

língua.

Quando o sujeito se inscreve no simbólico ou nessa estrutura sempre incompleta, não

há mais acesso direto ao real ou a uma verdade primeira, graças à primazia do significante.

Assim sendo, mesmo que o sujeito tome a palavra na voz ativa, ele sempre será

determinado pelo significante, ou seja, sempre será objeto da palavra (Costa, 1998:34).

Leite (1994:38) argumenta na mesma direção e enfatiza que o sujeito nasce cindido por

nascer do significante. A alienação à linguagem é, portanto, um destino irrecusável do

Ao comentar a respeito das tentativas que fazemos para nos representar na linguagem,

Carvalho (2001:257) enfatiza que, para Freud (1917 [1996]), “o discurso é sempre parcial,

devido à divisão entre consciente e inconsciente e pela interferência mútua entre aquilo que

dizemos e aquilo que é excluído de nosso discurso”. A autora (op.cit.:265) enfatiza, com

base na teoria freudiana, a insuficiência da palavra diante do inominável: “é como se a

palavra viesse trazer de novo e sempre algo da ordem de um vazio que nada pode deter”. A

AD, como um campo atravessado pela descoberta do inconsciente, reitera o aspecto

essencialmente contraditório da linguagem e a sobredeterminação simbólica. De acordo

com esta perspectiva teórica, o sujeito inserido na estrutura estará sempre assujeitado à

linguagem, tendo em vista que é a estrutura e seus “buracos” que vão apontar para a

verdade do sujeito que se diz mais do que diz. Somos, pois, levados pela descoberta

freudiana a escutar no discurso essa palavra que se manifesta através, ou mesmo, apesar da

vontade consciente do sujeito (Lacan, 1975b [1986]). Dito de outro modo, o sujeito que

enuncia sempre diz mais do que “queria” dizer. Nas palavras do autor (op.cit.:303),

Os sujeitos dizem coisas que vão bem mais longe do que o que pensam, e que são mesmo capazes de confessar a verdade sem aderir a ela (o inconfessável confesso). A palavra que o sujeito emite vai, sem que ele saiba, para além de seus limites de sujeito discorrente. Há um discurso a ser descoberto atrás da equivocação.

Esta citação nos permite compreender que há um afastamento entre o dizer factual e o

Real. É pelo equívoco, sustenta Julien (1993), que “o inconsciente, o novo ou o inesperado

nos faz entrever um pouquinho do Real4”. Semelhantemente às abordagens teóricas citadas,

Žižek (1991:23) explora essa distinção crucial entre o que o sujeito “quer dizer” e o que

efetivamente diz. Retomando a formulação do autor (id.ibid.), “sempre dizemos demais ou

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de menos: em suma, algo diferente em relação ao que queríamos dizer; é essa discordância

que constitui a mola do movimento dialético; é ela que subverte toda proposição”. É

justamente essa discordância entre o dizer e o querer-dizer, presente em todo ato

enunciativo, que possibilita e disseminação de sentidos. Essa idéia de insuficiência da

palavra diante do inominável (Carvalho, 2001) ou do esvaziamento dos sentidos atravessa

tanto a AD, como a psicanálise e a desconstrução. Conclui-se que a distância entre o dizer e

o querer-dizer é irremediável, tendo em vista que o sujeito é sempre ultrapassado,

atravessado e determinado pelo Outro que lhe é anterior e exterior. Essas considerações

serão de grande valia para o desenvolvimento da análise dos eventos enunciativos que

compõem este estudo.