Como já mencionado anteriormente, as análises que se seguem estão situadas, do ponto
de vista teórico, na interface entre a análise do discurso, a desconstrução e alguns conceitos
psicanalíticos. Faz-se necessário, portanto, salientar como essas perspectivas incidem no
material de análise.
A abordagem discursiva procura ancorar a análise dos registros na materialidade
lingüística, “desnudando” os aspectos históricos, sociais e ideológicos que atuam na
constituição dos sentidos e que são “esquecidos” pelo sujeito enunciador. Grantham
(2001:221) esclarece como é conduzida uma análise numa perspectiva discursiva. Nas
palavras da autora (op.cit.: 221),
a adoção de uma perspectiva discursiva deve evitar reduzir o discurso à análise da língua ou dissolvê-la no trabalho histórico sobre a ideologia como representação. Trata-se de ter, ao mesmo tempo, a análise lingüística, fornecendo a descrição das seqüências discursivas, e a análise histórica das condições de formação dos conjuntos ideológicos como discurso.
Dentro da perspectiva discursiva, segundo Pêcheux (1983 [1997b]), o discurso constitui
o ponto de encontro entre o velho e o novo, o mesmo e o diferente, a estrutura e o
acontecimento. Assim sendo, parte-se da estrutura para se ter acesso aos sentidos
produzidos por um dado acontecimento discursivo. Em outras palavras, a perspectiva
teórica em questão reflete sobre a materialidade da linguagem e da história, de modo a
destacar as regiões de equívoco ou de aparente contradição em que se ligam,
materialmente, o inconsciente e a ideologia. O acontecimento discursivo é definido como
possibilidade de equívoco, de ruptura e de transformação do sentido que escapa a qualquer
norma estabelecida a priori (Pêcheux, op.cit.:51).
Ancorados na materialidade lingüística que nos permite resgatar o processo de
construção de sentidos determinados sócio-historicamente, procuramos compreender o
funcionamento dos enunciados abordados, de modo a evitar uma análise conteudística dos
eventos discursivos. Ao encontro dessas reflexões, trazemos Orlandi (1998:65) que salienta
que:
se não nos ativermos aos conteúdos da linguagem, podemos procurar entender o modo como os textos produzem sentidos e a ideologia será então percebida como o processo de produção de um imaginário, isto é, produção de uma interpretação particular que apareceria, no entanto, como a interpretação necessária e que atribui sentidos fixos às palavras, em um dado contexto histórico.
Em conformidade com a perspectiva discursiva, buscamos recortar e descrever as
seqüências enunciativas, de modo a rastrear a presença do interdiscurso e da memória
discursiva que atuam na produção dos sentidos. Ou seja, lançamos um olhar discursivo ao
corpus, de modo a entendê-lo não como conteúdo ou testemunho de verdade, mas para
FD) em que o sujeito de linguagem se inscreve, para que suas palavras tenham sentido
(Orlandi, 1996). É significativo, para o desenrolar da análise dos registros, salientar o
conceito de FD que a permeia. Entendemos, com base no pensamento de Foucault (1969
[1987:43]), que, embora uma dada FD apresente regularidades, internamente, pode haver
oposições de saberes, que gerarão conflitos e contradições provenientes de um contexto
histórico-social amplo. A FD é, portanto, heterogênea a ela mesma, apesar de apresentar
regularidades, já que constitui um discurso sempre em formação. Guimarães (1995)
argumenta na mesma direção, ao destacar que as FDs refletem as diferenças ideológicas, o
modo como as posições sujeito, seus lugares sociais aí representados atuam na constituição
de diferentes efeitos de sentido, de acordo com o momento sócio-histórico em que se
inscrevem. A partir da leitura dos trabalhos de Foucault (1969 [1987]) e de Pêcheux (1975)
[1988], conclui-se que “as FDs são práticas que estão em constante movimento,
entrecruzando-se e, conseqüentemente, (trans)formando-se e (re)produzindo saberes, por
meio do interdiscurso” (Eckert-Hoff, 2004:29) que, por sua vez, traz a memória ou saber
discursivo que atribui sentido(s) a todo dizer.
A reflexão desconstrutivista também afeta o modo de trabalharmos o corpus
discursivo, principalmente ao propor a desconstrução de dicotomias e de certezas próprias
do mundo ocidental. Mais especificamente, o pensamento do mundo ocidental é dicotômico
e hierárquico, isto é, produz sentidos por meio de oposições calcadas na razão, tal como:
certo x errado, verdade x mentira. A despeito desse pensamento naturalizado que rege o
ocidente, o projeto derridiano propõe a desconstrução de blocos homogêneos ou de
dicotomizações provenientes do logus e que governam os sentidos e os saberes em nosso
meio sócio-histórico. Leyla Perrone Moisés, em entrevista à Folha de S. Paulo (1992),
infinita de desmontar pressupostos essencialistas e discursos dogmáticos”. A desconstrução
é, portanto, uma resposta filosófica à idéia de fechamento e completude proposta pelo
estruturalismo, pois traz à tona a natureza polissêmica de todo discurso que se fundamenta
em conceitos como verdade, origem e significado último.
Diferentemente da AD, a desconstrução não ancora suas reflexões na materialidade
lingüística; entretanto, sugere que todo discurso é passível de desconstrução, devido ao
rastro e à ausência que significam e que estão presentes em toda escritura como forma de
linguagem (Derrida, 1967 [1999]). A desconstrução concebe a língua e a escritura como
ausência e não como presença ou materialidade.
Se pensarmos que, na base da reflexão derridiana, está a desconstrução de dicotomias,
percebemos a relevância dessa proposta para o desenvolvimento das análises deste estudo,
devido à freqüente formulação de conceitos polarizados, típicos do pensamento ocidental
racional, nos discursos que circulam no contexto escolar e que remetem a discursos outros.
Em suma, a desconstrução contribui para este estudo, ao propor que trabalhemos os pontos
cegos da contradição, deslocando o “certo”, o estabilizado e apontando para a disseminação
dos sentidos. Na reflexão desconstrutivista, não há significado único, anterior à
interpretação, pois a constituição dos sentidos é sempre social (Arrojo, 1992:54). Partindo
dessas considerações, nota-se que tanto a abordagem discursiva como a desconstrução
trabalham com a determinação social que atua na constituição dos sentidos.
O que aproxima a abordagem discursiva e a reflexão desconstrutivista da prática
psicanalítica é a perda das certezas: a realidade só passa a ter consistência, quando
recortada pelo “desejo” do sujeito e pelas leis próprias da língua, que foge ao controle de
quem enuncia. A descoberta psicanalítica do inconsciente perpassa a discussão dos dados,
complexidade e a contradição do que aparenta estar solidamente assentado sobre uma
verdade inquestionável (Kehl, 2001b:11). Observa-se, com base nas considerações trazidas,
que a idéia de verdade absoluta e de significado único é sempre posta em xeque pelas
perspectivas e reflexões que embasam o atual trabalho de pesquisa.
Pensando nos questionamentos propostos, buscamos rastrear, no discurso do sujeito-
aluno e do sujeito-professor, a heterogeneidade por detrás da aparente homogeneidade que,
vez por outra, encontra, na porosidade da língua, sua válvula de escape (Coracini,
2001:143). Sobre a heterogeneidade que constitui a trama do tecido discursivo, Authier-
Revuz (1982) argumenta que é através da enunciação ou do enunciado posto em
funcionamento, que se faz possível detectar e analisar as marcas da heterogeneidade
constitutiva do sujeito. Foi com base nos eventos discursivos a seguir, que rastreamos
algumas regularidades presentes na superfície lingüística e que apontam para a
heterogeneidade constitutiva do sujeito e da linguagem, buscando, na presença de sentidos
outros, pontos de ruptura que vislumbrem a constituição identitária dos sujeitos envolvidos
no processo de ensino-aprendizagem de LI.
Na perspectiva discursiva, Pêcheux (1983 [1997b:54]) esclarece como se constituem os
procedimentos de análise. Segundo o autor, “a descrição de um enunciado ou de uma
seqüência coloca necessariamente em jogo (através da detecção de lugares vazios, de
elipses, de negações e interrogações...) o discurso-outro como espaço virtual de leitura
desse enunciado ou dessa seqüência”. Para conduzir a análise, portanto, é preciso “se
colocar em posição de entender a presença de não ditos no interior do que é dito
(op.cit.:44)”. A posição de trabalho evocada pela AD, segundo Pêcheux (1983 [1997b:57]),
supõe que “através das descrições regulares de montagens discursivas, se possam detectar
Em última instância, é válido salientar como se deu a inclusão do pesquisador no
material coletado. A fim de minimizar nossa interferência direta no desenrolar das análises,
buscamos ancorar nossos gestos de interpretação em dispositivos teóricos específicos.
Vale destacar que não tomamos como objeto de análise nossa própria prática
pedagógica, pois acreditamos que, ao olhar a prática do outro, estranhamentos e efeitos de
sentido são provocados, possibilitando que os eventos discursivos sejam analisados e
interpretados de um outro lugar. Além disso, procuramos trabalhar com eventos discursivos
não fragmentados, cujas análises foram direcionadas pelos questionamentos propostos neste
estudo, além de partir das brechas deixadas na/pela linguagem. São essas brechas, próprias
da linguagem, que proporcionam uma melhor compreensão das formulações postas, ao
apontar para os vários discursos que constituem qualquer dizer.
No entanto, mesmo buscando realizar um deslocamento em relação ao material de
análise e à posição de professor, não há como postular uma “neutralidade absoluta” dos
gestos de interpretação da pesquisadora, tendo em vista que a perspectiva discursiva
adotada também realiza interpretações. Em outras palavras, por sermos sujeitos de
linguagem, inseridos na ordem simbólica, somos fadados à interpretação e,
conseqüentemente, à alteridade. Assim sendo, o controle, a objetividade e a racionalidade,
pressupostos no/pelo cientificismo, são ilusórios, se considerarmos que, além de
pesquisadores, somos sujeitos interpretantes, constituídos em um contexto histórico-social
amplo. A pesquisadora, mesmo munida de aparatos teóricos, não pode ser “esvaziada” de
sua subjetividade, pois sempre será um sujeito social, singular e interpretante. Podemos,
sim, trazer essa subjetividade para o fazer científico, de modo a deslocar e a produzir