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A seqüência abaixo nos permite compreender a função da prova no processo de ensino-

aprendizagem.

[E12]

(P1) You are absent on the day you have to see the test it’s terrible because then how come

you are going to see?22

Ao proferir tais enunciados, o professor salienta a importância da presença do aluno na aula

em que o resultado da prova será entregue, pois é justamente nesse dia, que é dada a

“sentença” do aluno, com base na nota obtida e apresentada.

Partindo dos comentários emitidos pelo professor em relação às notas obtidas pelos

alunos, podemos afirmar que a prova não só funciona como um veredicto do desempenho

escolar, mas também reflete o imaginário do professor em relação ao sujeito que é avaliado,

podendo provocar estranhamento, caso o resultado alcançado não seja fiel a esse imaginário

22

que, por sua vez, antecede a avaliação formal e se faz presente na atribuição da nota final.

Vejamos a seqüência abaixo:

[E13]

(P1) Lúcia what happened? (A2) I was with a headache

(P1) This is a good excuse? Carolina I was really really disappointed with you / You didn’t

study Carolina? Yes? Have you studied a lot?

(A4) yes23

No recorte em questão, o professor se mostra seguro em relação ao motivo que levou as

alunas a obterem uma nota que o desapontou: a falta de estudo, embora uma delas afirme

ter estudado. Observa-se que o professor já havia construído representações em relação ao

aluno (A4) que, neste caso, não foram coerentes com o mau resultado obtido na avaliação,

por isso se deu o seu descontentamento - I was really really disppointed with you. O

professor, então, encontra uma causa (a falta de estudo) e identifica os culpados (os alunos)

pelo fracasso na prova, de modo que possa se isentar ou se redimir de sua “culpa” sentida a

partir da posição de educador, o qual, acredita-se, deve transmitir o conhecimento de modo

eficaz.

Sabemos que o sentimento de culpa ganhou sentido(s) a partir da ideologia religiosa

que instaurou a culpa e a vigilância constante nos corpos a tal ponto que, por vezes, nos

sentimos culpados sem havermos cometido nenhum ato. Nas sociedades atuais, onde há a

predominância do sistema jurídico, a vigilância dos indivíduos cabe não só a Deus, mas a

todos aqueles que ocupam uma posição de saber-poder. A culpa ou a busca de culpados,

prática utilizada para justificar falhas e garantir a acomodação social, ainda é uma

constante.

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(P) Lúcia, o que aconteceu?; (A2) Eu estava com dor de cabeça; (P) Essa é uma boa desculpa? Carolina, Eu realmente fiquei desapontada com você/ você não estudou, Carolina? Sim? Você estudou muito? (A4) Sim.

No funcionamento do sujeito descentrado, o sentimento de culpa está relacionado à

instância do inconsciente, da falta e da repetição. Trata-se, segundo Žižek (1991:169), “do

sentimento de culpa irracional, excessiva, uma culpa à primeira vista inexplicável, que

mascara um desejo inconsciente” e que aponta para a falta constitutiva do sujeito.

A punição dos culpados, por sua vez, é uma prática que remete à ideologia jurídica,

segundo a qual o “mal” se concentra em determinados indivíduos que são inteiramente

responsáveis por suas escolhas e atos. Essa individualização dos sujeitos possibilita a

prática da punição. Observa-se que o sentimento de culpa, bem como a busca de culpados,

é resultante do atravessamento do discurso religioso pelo jurídico e vice-versa.

Semelhantemente ao discurso emitido pelo professor, a busca de culpados, para explicar

o mau desempenho nas avaliações e durante as aulas, também foi freqüente nas respostas

formuladas por diferentes alunos, nas entrevistas conduzidas pela pesquisadora. Tais efeitos

de sentido são materializados nos seguintes recortes:

[E14]

(A3) Aqui na escola / eu acho que são quatro provas. Eu gosto do estilo da prova porque...

Eu não vou tão bem assim... mas eu acho que se eu pegar e estudar mesmo tem jeito de passar

(A4) Aí eu misturo português com [inglês]/ então se eu/ mas isso eu acho que não é

questão nem da aula nem do professor... é minha mesmo/ e é tempo né? é adaptação

(A5) Se a pessoa estudou ela tem condições de fazer [a prova] só que se ela não estudou

também... não faz nada! Tem que estudar

Com base nos enunciados destacados, nota-se que o dizer dos alunos é composto por

fragmentos metonímicos da fala do professor, ou seja, a voz do aluno reproduz e se

confunde com a voz do professor, embora numa outra situação de enunciação. Entendemos,

a partir de De Lemos (1997), que os fragmentos metonímicos ou os “restos” da fala do

No caso dos excertos abordados, o aluno interioriza e incorpora o dizer do professor - tem

que estudar; é tempo, é adaptação... - “emprestando” seu corpo para disseminar o discurso

pedagógico que, no momento da enunciação, acredita ser seu próprio discurso, ao formular

eu acho que. Sendo assim, é a voz e a “imagem fantasmática24” do outro (professor) que

direciona e se reflete no dizer do aluno, atuando na constituição de suas representações. A

incidência do discurso pedagógico na fala do aluno evidencia o espelhamento deste em

relação àquele que lhe diz o que fazer, já que é imaginado e representado como sujeito-

suposto-saber; o que aponta para a importância de atentarmos para os efeitos do discurso

avaliador do sujeito-professor na constituição identitária do sujeito-aluno.

Na formulação de (A5) - Se a pessoa estudou, ela tem condições de fazer [a prova] - é

significativo atentarmos para o emprego do substantivo “pessoa” como forma de

generalização e indeterminação do sujeito. O vocábulo em questão evoca não só o sujeito

enunciador, mas todos aqueles que ocupam o lugar de aluno, isto é, o sujeito-enunciador

profere uma lei que reproduz o discurso pedagógico e que é válida para todos aqueles que

desejam ir bem nas provas. Observa-se que, também no dizer do sujeito-aluno, a

singularidade é “esquecida” em nome de uma aparente igualdade de direitos e deveres, tal

como prega a ideologia jurídica que atua na constituição do sujeito-de-direito (ver item 2.4

da primeira parte).

Outros enunciados formulados por professores e alunos também nos permitem

vislumbrar o espelhamento do discurso pedagógico no dizer do aluno. Com base na última

pergunta do questionário em anexo 1 (Que conselho você daria para um amigo que não está

24

Optamos por utilizar o termo “imagem fantasmática”, tendo em mente que a imagem e a voz do professor estão sempre presentes, mesmo que não sejam visualizadas ou percebidas pelo sujeito-enunciador.

indo bem ou que não tem um bom desempenho nas aulas de inglês?), o sujeito (A4)

respondeu:

[E15]

(A4) Na sala de aula perguntar sempre... pergunta ué está aqui pra isso/ a gente não sabe

mesmo... tem que estar perguntando do que se trata e não ficar com dúvida/ é isso que eu falo

Durante o intervalo das aulas, na sala dos professores, um professor emitiu o seguinte

comentário:

[E16]

(P3) Estudante que tem dificuldade e não quer falar não vai aprender nunca né?

Ao contrapormos esses enunciados, observamos que, apesar da ilusão de controle do

seu dizer - É isso que eu falo -, o sujeito-aluno coloca em funcionamento um discurso outro

que se manifesta através de suas palavras, ou mesmo, apesar do sujeito. Nesse momento da

enunciação, (A4) encontra-se identificado às imagens que representam um aluno “ideal” e

que são largamente disseminadas no espaço escolar, através do constante discurso

avaliador. Em outras palavras, no dizer dos professores e dos alunos, manifesta-se o

sentimento de uma identidade comum que representa o aluno ideal e que nos permite

vislumbrar a fixidez de uma imagem que deve ser mantida. É na tentativa de manter ou de

buscar essas imagens tidas como ideais que o sujeito vai constituindo sua identidade

enquanto aluno, à medida que interioriza e se identifica às representações lançadas por

aquele que tem o poder e o saber de avaliar e dizer a verdade sobre os demais (alunos).

Essas considerações serão retomadas no próximo capítulo de análise (“Avaliação e

julgamento: entre o ser e o dever-ser”).

Ainda é significativo mencionar um outro recorte discursivo que aponta para o fato de

que o aluno retoma e incorpora em seu dizer o discurso do professor, identificando-se e

responder a mesma pergunta destacada anteriormente e que compõe o roteiro para

entrevista (anexo 1), uma aluna adolescente de nível intermediário confessa:

[E17]

(A1) Estuda! Porque geralmente no inglês a gente não estuda... aí o máximo que/ pode

estudar uma hora antes da prova mas geralmente a gente não estuda igual em faculdade... escola...em outros cursos

A partir da seqüência enunciativa proferida por (A1), nota-se que há uma diferença

imaginária sobre o que seja o ensino na escola de idiomas e na faculdade ou escolas em

geral. O aluno parece estar ciente de que a escola de idiomas preocupa-se exclusivamente

com o ensino de línguas, ao passo que a escola ou faculdade abrange toda a sua formação e

educação. Sendo assim, o modo como o aluno se prepara e representa a prova na escola de

idiomas difere de como ele o faz em uma instituição de ensino superior, por exemplo. A

atitude de não estudar o suficiente para a prova de inglês parece ser uma constante entre os

alunos, principalmente se atentarmos para o emprego do pronome a gente. O

comportamento do aluno adolescente diante das provas de inglês torna-se algo previsível e

dado a priori.

O recorte acima parece dialogar com as formulações do professor, emitidas durante o

intervalo das aulas:

[E18]

(P) Eram todos uns adolescentes da Y25 que passaram para o intensivo da noite e primeiro... eles não têm um compromisso com as provas e segundo... eles não têm interesse

O supervisor, que conversava com o professor em questão, conclui:

[E19]

(S) Menino dessa idade eles não são muito de estudar... tem que ficar treinando bastante

com eles em classe/ é que a meninada hoje não quer saber de nada né?

25

As seqüências abordadas nos levam a compreender que as imagens com as quais o

aluno adolescente se identifica e se reconhece como sujeito co-incidem com o imaginário

do professor em relação a ele. Essas representações, por sua vez, advêm de um discurso

corrente no contexto escolar e social que tanto alunos como professores já interiorizaram.

Em relação aos excertos abordados, observa-se que tanto nas formulações dos

professores como nas dos alunos, a culpa em relação ao insucesso escolar sempre recai

sobre o aluno e suas atitudes, graças à presença da ideologia jurídica que individualiza o

sujeito. No contexto escolar, de modo geral, o aluno está sempre sendo “convocado” a se

responsabilizar por seus atos e escolhas, justificando suas faltas.

Com o auxílio de Kehl (2001:68), compreendemos que o que está em cena nas

formulações postas pelos alunos é a representação de um sujeito que se pensa responsável

por seus erros e acertos e que está encarregado de, sozinho, traçar a sua história de sucesso

ou insucesso, como se fosse o único autor de sua vida e de suas escolhas, tal como sugerem

as formulações de (A4) [E14]: Então se eu/ mas isso [misturar português com inglês] eu

acho que não é questão nem da aula nem do professor... é minha mesmo. Parafraseando a

autora (op.cit.:58), o sujeito não se dá conta de suas filiações simbólicas (crenças, valores)

e passa a se considerar como um indivíduo isolado que, por conseguinte, carrega a angústia

de imaginar-se responsável por seu próprio destino e escolhas.

Retomando as formulações proferidas pelos alunos, durante a entrevista conduzida pelo

pesquisador, nota-se que estes assumem uma posição de sujeito-suposto-escolher, já que se

supõem “senhores” de suas escolhas, embora não percebam que a escolha está

inevitavelmente subordinada ao que é socialmente imposto como regra ou verdade, no

caso: estudar para ir bem na prova. Esse paradoxo do sujeito-suposto-escolher, reforça

em que se insere. Sendo assim, o sujeito-aluno só fará uma escolha acertada no contexto

escolar se acatar o discurso pedagógico como verdade a ser seguida, incorporando-o em seu

dizer e fazer. O discurso pedagógico, por sua vez, apenas retoma e reforça outros domínios

discursivos que asseguram a acomodação social.