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O discurso religioso-cristão como instaurador de vigilância

Apesar de haver uma predominância da discursividade jurídica na manutenção das

discurso religioso no funcionamento jurídico. Por isso, a importância de saber como se deu

a passagem da discursividade religiosa para a jurídica, não perdendo de vista a relação de

afetação entre elas.

Para que a vigilância se instaurasse nos corpos e passasse a guiar o comportamento dos

indivíduos que fazem parte de uma determinada organização social, algumas idéias e

conceitos foram difundidos, passando a atuar como verdades absolutas e inquestionáveis.

Ao realizar um breve histórico da religião, observamos que a prática do livre exercício, da

curiosidade e da formação de idéias sempre foi indesejada, desde a época da inquisição. Daí

a necessidade do estabelecimento de verdades que governassem os impulsos corporais e as

representações mentais. A religião passou a ter a função de produzir sentidos para a vida e

para a morte, além de orientar as escolhas morais (Kehl, 2002).

Em nossa sociedade, a questão da moral, que fundamenta as escolhas e comportamentos

dos indivíduos, está diretamente relacionada ao cristianismo, em particular, ao catolicismo.

Por isso, optamos por abordar o discurso religioso que remete à ideologia judaico-cristã e

não a discursividade religiosa como um todo. Como já destacado por Derrida (2000:21), “a

moralidade pura e o cristianismo são indissociáveis em sua essência e em seu conceito”. O

autor destaca, ainda, que “a religião cristã seria a única religião propriamente moral; ser-

lhe-ia reservada uma missão: libertar uma fé que reflete o exemplo”. A religião cristã surge,

portanto, como sinônimo de uma religião moral que visa à acomodação social, já que tem o

dever e o poder de comandar o fazer. Nas palavras do autor (op.cit.:20), “a religião moral

visa à boa conduta da vida; comanda o fazer, dissociando-o do saber o qual lhe está

subordinado (ou esquecido), e prescreve o tornar-se melhor”. De modo semelhante,

Perelman (2000:318) também relaciona a religião e a moral, ao salientar que “a função

Se considerarmos que à igreja também competia a formação do cidadão, calcada na

moral cristã, fica evidente a função social exercida por esta instituição que cultiva a

disciplina, assegurando o controle e a vigilância dos indivíduos, graças à crença em um

Deus absoluto que tudo vê e tudo sabe. Entendemos, portanto, que o discurso religioso ou a

interpretação cristã-moralista dos eventos garante a disciplina, por meio da sujeição e da

coerção do espírito (Nietzsche, 1844 [1992:89]).

A acomodação social e o bom funcionamento das sociedades dependem da subordinação

a determinadas ideologias consideradas como verdadeiras, em função do momento sócio-

histórico vivenciado, e que legitimam a importância e a função das instituições. Assim

sendo, o sujeito se subordina não só à ideologia judaico-cristã ou à igreja, mas a diversas

instituições que funcionam como dispositivos de poder, segundo Foucault (1973

[1999a:114]), pois melhoram e possibilitam o exercício do poder, tornando-o mais rápido,

justificável e, conseqüentemente, mais eficaz. A subordinação à religião e aos aspectos

ideológicos que governam as instituições é comentada por Perelman (2000:315). De acordo

com o mesmo, “numa sociedade, dominada por uma religião ou por uma ideologia

considerada verdadeira, o papel do indivíduo é menosprezado, subordinado ao das

instituições e da comunidade”.

No discurso religioso-cristão, é a manutenção da ideologia de “homem de rebanho” que

permite o domínio dos impulsos do sujeito, garantindo uma aparente homogeneização de

comportamentos, conduta e interpretação. Melhor dizendo, em nome da busca de um bem

supremo ou da felicidade da grande maioria, o interesse do indivíduo aparece identificado a

um suposto interesse universal (Julien, 1996:44). Assim sendo, o homem de rebanho,

engajado em buscar o “bem” de todos, torna-se a única espécie de homem permitida. A

acima do rebanho e infunde temor ao próximo é doravante apelidado de mau” e deve ser

evitado, para garantir o “bem”. Trata-se da tentativa do domínio do homem sobre si

mesmo.

Pensamos que a instituição religiosa, ainda que subordinada à jurídica nas sociedades

atuais, funcione como um centro irradiador de uma disciplina social, pois, ao instaurar a

vigilância nos corpos, tornou o homem mais determinado e uniforme ou, segundo Ducrot

(apud Haroche, 1992:30), “semelhante entre semelhantes, regular e, conseqüentemente,

apreciável...” Em suma, o que se pretende, tanto na instituição religiosa como na jurídica, é

(en)formar sujeitos iguais, compatíveis com um certo modelo de comportamentos e

condutas, que possibilite a automatização e o enquadramento das ações e dos pensamentos.

Citando a autora (1992:26), “a determinação religiosa, a determinação institucional, depois

individual, constituem, assim, uma seqüência de etapas cruciais que permitem retraçar a

história do processo da automatização aparente do sujeito”.

As determinações que levam à automatização do sujeito conduzido por uma

discursividade religiosa funcionam na ilusão de que as escolhas são dirigidas pela vontade

de um bem maior que sirva a todos. O sujeito se imagina como um ser de fé, dotado de

livre-arbítrio, para praticar ações que, apesar de parecerem de autoria do sujeito, devem ir

ao encontro de um suposto interesse universal ou de um bem supremo, pregado por uma

divindade. De acordo com Costa (2001:110), a posição religiosa, por propor o embate entre

o bem e o mal, situa no indivíduo uma possibilidade de livre-arbítrio – de escolha. Essa

noção de livre-arbítrio, tão fortemente presente na ideologia religiosa, aponta para o fato de

que o discurso religioso-cristão introduz um efeito de responsabilização em relação às

ações praticadas. Na ideologia jurídica, a noção de livre arbítrio também se faz presente; no

estabelecidas entre os homens e não mais em relação às leis de um plano divino. Em ambas

as discursividades, no entanto, o sujeito desfruta de uma liberdade coagida, pois,

aparentemente, é livre para fazer suas escolhas, mas desde que siga os mandamentos ou as

leis predeterminadas e aceitas como verdade. Novamente, a possibilidade de punição se faz

presente.

A manutenção de conceitos que partem da esfera religiosa e que são deslocados e

(re)significados pela discursividade jurídica, se faz fortemente presente no processo de

ensino-aprendizagem, no qual o embate entre pares dicotômicos (certo x errado, bom x

ruim...) é freqüente, principalmente na prática de avaliar, assim como a individualização e

responsabilização do sujeito-aluno por suas supostas escolhas e faltas e da automatização

de comportamentos tidos como ideais.

Além da aparente possibilidade de livre-arbítrio, a religião também se fundamenta na

idéia de autoridade de origem divina, o que possibilita a vigilância constante do sujeito e o

seu assujeitamento aos mandamentos da igreja e ao ser supremo (Deus). Podemos dizer,

então, que o homem está constantemente assujeitado à onipotência e à onipresença de um

Deus que assume a posição de sujeito-suposto-saber, já que a verdade é atribuída a ele, em

função do seu poder-saber. Haroche (1992:176), ao comentar as observações de Milner,

menciona a relação de dependência e obediência dos sujeitos, diante da permanência de um

Deus absoluto:

o desejo do sujeito inarticulado/inarticulável se extingue diante da fé cega, ignerante, garantia indispensável do assujeitamento total, de dependência total do sujeito ao saber, ou antes, ao discurso do aparelho religioso (...) a fé religiosa, implica o assujeitamento e a negação do desejo próprio (...)

A partir da citação acima, podemos afirmar que a noção de sujeito-suposto-saber

direciona e legitima não só a prática religiosa, mas diversas práticas sociais, em diferentes

instituições e em diferentes momentos sócio-históricos. Entendemos, pois, a partir de Costa

(2001:126), que a própria cultura das instituições permite a transformação do sujeito em

instrumento de um saber pré-estabelecido.

Ao transpormos essas considerações para o contexto escolar, podemos afirmar que a

ideologia do sujeito-suposto-saber se faz presente na relação professor-aluno, durante todo

o processo de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, o sujeito-professor se imagina e é

imaginado como aquele que detém o saber. Conseqüentemente, o aluno estará assujeitado

ao saber do outro (professor), pois legitima, reconhece e deseja esse saber. Nesse prisma, a

instituição escolar tem trabalhado de modo a transformar o sujeito-professor num

instrumento que permite a transmissão e a manutenção de um saber, já determinado pela

escala hierárquica da instituição, em particular, e pelos discursos que garantem a

acomodação social, de modo geral.

Sobre a manutenção de um saber que é determinado sócio-historicamente e reforçado

nas/pelas instituições, Foucault (1973 [1999a:88]) nos esclarece que esse saber também é

um saber de vigilância, controle e normalização das ações. Mais especificamente, o autor o

define como um saber que tem por característica “determinar se um indivíduo se conduz ou

não como deve, conforme ou não à regra, se progride ou não, etc”. Esse saber, acrescenta o

autor (Ibid.), “se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, certo ou

não, do que se deve ou não fazer”. Trata-se de “um saber de vigilância e exame, organizado

em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência”.

Na instituição escolar, a vigilância permanente dos indivíduos que buscam “o saber” é

tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aquele que vigia e avalia, um saber. É justamente

esse saber, construído através da vigilância constante que, por sua vez, foi viabilizada pela

ideologia religiosa, que possivelmente se refletirá nas representações identitárias do sujeito-

aluno e do sujeito-professor, direcionando a prática pedagógica e as relações interpessoais

no espaço de sala de aula.