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É uma concepção de linguagem transparente e que reproduz os sentidos desejados pelo

sujeito enunciador que embasa grande parte das pesquisas de cunho cognitivista, realizadas

na área de ensino-aprendizagem de línguas. Nessa perspectiva, a língua é definida como um

conjunto de estruturas, frases, vocábulos, sons, cujo sentido é estável, imanente e

transparente (Coracini, 2000:186).

Contrariamente a esta noção de linguagem como estrutura transparente e estável, a

concepção de linguagem que direciona o desenvolvimento da análise dos registros é

perpassada por pressupostos discursivos, desconstrutivistas e psicanalíticos, que pensam a

linguagem como produção e dispersão de sentidos.

Dentro da abordagem teórica da AD, a linguagem é entendida como um processo de

produção de sentidos, numa dada formação discursiva, em dadas condições histórico-

político-sociais (Pêcheux, 1975 [1988:145]). O sentido, portanto, não é imanente à

estrutura, mas se produz e se dissemina a cada acontecimento discursivo, dependendo das

condições de sua produção. Assim sendo, podemos afirmar que a linguagem não reproduz,

mas representa o “real”. Esta visão de linguagem enquanto representação do “real” também

é compartilhada pela psicanálise. A partir da leitura de Lacan (1975b [1986:298]),

entendemos que a linguagem só é concebível como uma rede, como uma teia sobre o

conjunto das coisas ou sobre a totalidade do real. “Ela escreve no plano do real esse outro

plano a que chamamos o plano do simbólico”.

Para rastrear as representações e os efeitos de sentido produzidos em um dado

acontecimento discursivo, sustenta Orlandi (1999a:16), é preciso refletir sobre como a

linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na/pela língua.

que o discurso é o lugar onde ideologia e linguagem se encontram. Desse modo, a língua é

pensada em sua materialidade, ou seja, como espaço de manifestações das relações de força

e de sentidos que refletem os confrontos de natureza ideológica (Orlandi, 1993).

Segundo a noção de linguagem atrelada à perspectiva discursiva, toda palavra, para

significar, tira seu sentido de formulações que se sedimentam historicamente, isto é, toda

palavra se refere ao discurso no qual significa ou significou, graças à memória discursiva

que direciona o dizer. De acordo com Pêcheux (1975 [1988]), a memória discursiva é

constituída pelo já-dito; isso possibilita pensar na noção de interdiscurso como lugar de

constituição do(s) sentido(s) que escapa(m) à intencionalidade do sujeito de linguagem.

Assim sendo, o descentramento e a alteridade são constitutivos da linguagem, considerando

que as palavras remetem sempre a outras palavras e discursividades, num movimento

infinito e interminável, num deslizamento discursivo ininterrupto, lançando o sujeito à

vertigem do descentramento, já que a origem teria sido perdida para sempre e seria algo da

ordem do inapreensível (Foucault, 1966 [1999b:316]).

Algumas considerações lançadas pela reflexão desconstrutivista parecem retomar a

noção de interdiscurso proposta pela abordagem discursiva, embora não utilize esta

terminologia. Segundo Derrida (1981), as palavras sempre carregam outros significados

que são postos em movimento: existem sempre significados suplementares sobre os quais

não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar

mundos fixos e estáveis. Com base nessas afirmações, observa-se que a desconstrução,

assim como a AD, parte da idéia de não transparência e equivalência dos significados e da

impossibilidade de controle da linguagem.

A noção de escritura como um tipo de linguagem que possibilita a expressão da

pensada enquanto interrupção e restabelecimento (o mesmo e o diferente), uma vez que

conserva o rastro, apagando a origem e possibilitando que a significação seja sempre

múltipla e disseminada. A escritura refere-se, ainda, ao espaçamento, à não presença e à

ausência significativa de toda linguagem, seja ela escrita ou não. Podemos afirmar,

portanto, que a escritura como marca significativa que se inscreve nos corpos é a raiz

comum da fala e da escrita, já que pertence ao simbólico.

A idéia de presença na ausência que, segundo Derrida (op.cit.), torna possível todo

rastro, toda escritura e toda linguagem, também perpassa a teoria do significante, proposta

por Lacan (1961-2). O significante, enquanto presença, evocaria algo que não está nele, ou

seja, algo que está ausente e que lhe é exterior. É numa relação em cadeia que o significante

funciona, remetendo sempre a outro(s) significante(s) e não a um significado originário e

único. Conseqüentemente, as representações simbólicas estabelecem metáforas e

metonímias que levam à ruptura e deslocamento de sentidos.

Semelhantemente à abordagem discursiva que ancora suas análises na materialidade

lingüística, Lacan concebe o discurso como matéria-prima da análise. Kehl (2002:120)

argumenta na mesma direção e salienta que “os processos do pensamento só ocorrem à

consciência por meio das palavras, e é também por meio delas que o inconsciente se

revela”. Dentro da prática psicanalítica, é a linguagem que materializa sintomas que

acontecem à revelia do sujeito que enuncia. O sintoma é visto como um acontecimento do

significante que precisa ser ouvido, rastreado e interpretado pelo analista, de modo que este

possa intervir, atribuindo a ele significado(s) outros.

Na perspectiva discursiva, a materialidade lingüística permite a apreensão de

equívocos próprios da linguagem, que possibilitam que um significado possa vir a ser outro

um acontecimento discursivo, diretamente relacionado ao contexto sócio-histórico de sua

enunciação. Diferentemente da prática psicanalítica, a observação e a análise dos

equívocos, por meio das brechas deixadas pela linguagem, permitem a compreensão de

como certos sentidos são produzidos e legitimados sócio-historicamente. Dito de outro

modo, a partir dessas aparentes falhas do discurso, que são da ordem da

pluridimensionalidade do símbolo lingüístico, tal como nos sugere Derrida (1967

[1999:106]), a perspectiva discursiva procura “desnudar” o funcionamento histórico e

ideológico das formulações postas pelo sujeito de linguagem. A superfície lingüística é

ouvida e interpretada de um outro lugar que aponta para a constituição dos sentidos. Em

suma, ouve-se para compreender e problematizar e não para intervir, como é o caso da

prática psicanalítica.

Atentando para a relação existente entre as perspectivas que embasam este estudo,

podemos observar que, em nenhuma delas, o dizer é transparente ao enunciador, pois o

sentido lhe escapa, irrepresentável, em sua determinação pelo inconsciente e pelo

interdiscurso. Essa duplicidade que, na psicanálise lacaniana, faz referir um significante a

um significante outro, envolve a instância do inconsciente; para a AD, trata-se de uma

questão ideológica fundamental (Orlandi, 1996:82).

A relação existente entre os campos teóricos mencionados pode ser vislumbrada na

concepção de linguagem adotada nos trabalhos de Foucault. O autor sugere que pensemos

na possibilidade de existência da linguagem como uma forma de exterioridade do sujeito,

mas uma exterioridade que o constitui; o que anula a dicotomia dentro/fora,

interior/exterior. Birman (2000:54) faz uma aproximação entre Foucault e a psicanálise, ao

salientar que a categoria do inconsciente e a problemática do descentramento se destacam

autônomo e exterior ao sujeito ou, ainda, como sendo a materialidade do descentramento,

que reenviaria ao inconsciente e ao ideológico. Partindo dessas considerações, conclui-se

que a autonomia está atrelada ao funcionamento da linguagem, ao acontecimento discursivo

e não ao sujeito enunciador, que apenas tem a ilusão de controle dos sentidos que seu dizer

desencadeia em seu interlocutor.

De modo geral, nota-se que as noções de linguagem mencionadas, embora partam de

perspectivas distintas, dialogam entre si, principalmente por considerarem o não controle

dos sentidos e o descentramento do sujeito e da linguagem. É justamente a partir dessas

noções e dos pressupostos teóricos arrolados, que encontramos subsídios para as análises

dos eventos discursivos apresentadas na segunda parte deste estudo.