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A verdade se apresenta aos indivíduos como algo fixo, concreto e dado a priori e, por

comportamentos. No entanto, para que a determinação da verdade seja possível, a

heterogeneidade e o equívoco, próprios do sujeito e da linguagem, são “esquecidos”9 e

mascarados por discursos e conceitos pré-construídos. Nietzsche (1873 [1987:47]) salienta

que a verdade é uma criação do homem que deseja assegurar padrões e comportamentos

que acomodam a vida social. Assim sendo, é significativo pensarmos como a verdade é

criada e legitimada em nossa sociedade, de modo a viabilizar as organizações e relações

sociais, já que determina os lugares discursivos que podem e devem ser ocupados pelos

sujeitos.

Se considerarmos que a verdade é construída discursivamente, então a noção de verdade

só fará sentido se for atrelada a outras discursividades, bem como ao momento sócio-

histórico vivenciado. Em outras palavras, a ilusão de transparência e de fixidez da verdade

é produzida por algumas idéias e conceitos provenientes de outros discursos, em especial,

do discurso religioso-cristão e do discurso jurídico, os quais estaremos focalizando mais

adiante. A interdiscursividade, que faz com que a verdade seja reconhecida e reforçada, não

é acessível ao sujeito de linguagem, que acredita estar diante de fatos e acontecimentos

autênticos e que “falam por si”. Essas considerações fazem eco a Nietzsche (1873

[1987:49]) que salienta que o homem não tem acesso à verdade, pois esta nada mais é do

que uma ilusão necessária que garante o tratado de paz entre os homens. Sendo assim,

somente por esquecimento pode o homem, alguma vez, chegar a supor que possui uma

verdade. É esse esquecimento que, além de definir a própria noção de verdade, governa as

relações e condutas sociais, na cultura ocidental.

9

De acordo com o esquecimento 2, formulado por Pêcheux [1969] (1997), o sujeito do discurso tem a ilusão de que o que diz tem apenas um significado e se esquece que, ao enunciar, seleciona algumas formulações e silencia outras.

A idéia de não existência de verdades que tenham acesso direto à realidade também está

presente na noção de verdade enquanto um dito que, segundo a fórmula de Lacan,

interpretada por Julien (1996:48), “tem uma estrutura de ficção. A verdade fala

infindavelmente num semi-dito retórico e avança mascarada”. Nesse prisma, é o Outro que

fala o sujeito e que se enuncia por sua boca, lembrando que esse Outro corresponde à

exterioridade e à heterogeneidade, constitutivas do sujeito e da linguagem, além de

corresponder à instância do inconsciente. A prática psicanalítica desloca a questão da

verdade para o ato enunciativo, ao propor que o sujeito se mostra e se revela no que

enuncia. Sendo assim, não há verdade fora do sujeito e da linguagem.

O processo de homogeneização dos sentidos, apesar de “mascarado” e não acessível ao

sujeito, está diretamente relacionado ao estabelecimento da verdade que governa as práticas

sociais. Nietzsche (op.cit.:48) define a verdade como

um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornam gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.

Tal citação elucida que o estabelecimento da verdade é resultante de uma convenção

social sólida, na qual os sentidos se tornam fixos e transparentes. Conseqüentemente, a

verdade passa a atuar como a “descoberta” de uma designação uniformemente válida e

obrigatória das coisas. Essa designação da verdade é anterior à entrada do indivíduo no

mundo e deve ser mantida, de modo a garantir o controle sobre as ações humanas.

Sobre o estabelecimento da verdade nas sociedades tradicionais, Kehl (2002:50) afirma

tanto o ser (filiação) como o bem e a verdade (as restrições morais e os mitos que estabelecem em nome do que elas se dão) precedem a entrada dos indivíduos no mundo, e estão claramente decididos e prescritos no código da cultura. Além disso, as conseqüências das infrações aos tabus também estão prescritas; o sujeito pode escolher transgredir, mas sabe claramente o que está transgredindo e qual o preço a pagar por seu ato.

Nas sociedades contemporâneas ocidentais, perde-se essa noção de filiação e de busca

de um bem supremo. Os mitos tornam-se enfraquecidos e não mais garantem o

estabelecimento da verdade, graças a uma crise que abalou as certezas sobre o ser e o bem.

Diferentemente do que ocorria nas sociedades tradicionais, as sociedades contemporâneas

nos apresentam “um mundo em constante mutação, desgarrado do plano divino; um mundo

de indivíduos particulares vivendo experiências particulares, em épocas e lugares

particulares” (Kehl, 2002:52). Quando a verdade dos pressupostos que sustentam uma

sociedade se abala, faz-se necessário buscar outras formas de assujeitamento que fixem

verdades incontestáveis e que garantam a acomodação social. Nas sociedades atuais, surge,

então, um conceito de verdade consensualmente estabelecido e atrelado à esfera jurídica,

que passa a ter a função de fixar as leis a serem seguidas, individualizando e

responsabilizando os indivíduos por suas supostas escolhas e faltas. Para haver o

estabelecimento da verdade, o sentido de algumas convenções sociais se perde, ou melhor,

é esquecido e (re)aparece como expressão de uma verdade natural, predeterminada.

Partindo das considerações arroladas, observa-se que o estabelecimento da verdade é

fundamental para a manutenção das sociedades contemporâneas que são regidas por um

sistema jurídico, pois permite a fixação dos indivíduos e de seus comportamentos, já que

traz a possibilidade de punição, no caso de transgressão das leis (im)postas e aceitas como

aplicação da punição, pois a verdade passa a atuar como uma lei a ser seguida. São essas

leis, que soam como verdades absolutas, que direcionam o funcionamento das instituições,

bem como as práticas avaliativas, no caso da instituição escolar.

A relação de oposição e binarismo, juntamente com o princípio da não contradição, são

requisitos básicos para o estabelecimento da verdade, tal como sugere a seguinte fórmula,

proposta por Perelman (2000:323): “se o que afirmo é verdadeiro, quem me contradiz só

pode estar errado”. Desse modo, a verdade e o erro consistem no acordo e no desacordo que

estão condicionados ao poder-saber do sujeito enunciador. Como bem aponta Foucault

(1979 [1990]), a verdade não existe fora do poder ou sem poder. Além disso, propõe Costa

(1998:74), verdade e mentira saem do estatuto da realidade e passam a validar-se somente

pelo ato de enunciá-las e de compartilhá-las. Ou seja, a verdade só é instaurada ou aceita

como realidade, se for compartilhada pelos interlocutores. Nas palavras da autora

(op.cit.:76), “não há outra forma de dar consistência a uma ficção, de tornar uma mentira

verdadeira, se não pelo reconhecimento mútuo”.

Em suma, para que a verdade seja discursivamente instaurada e válida para todos, a

ambigüidade e o equívoco devem ser evitados. A “desambigüização” e a não contradição,

necessárias para o estabelecimento da verdade, estão atreladas ao poder-saber, pois cabe a

alguns (médicos, padres, juízes, professores...) determinar o que é certo ou errado, isto é, o

que é verdadeiro ou falso. Em contrapartida, àqueles que não ocupam lugares discursivos

que atestem poder-saber, resta aceitar e seguir as verdades predeterminadas. Podemos

afirmar, portanto, que a determinação da verdade se dá em função do lugar ocupado pelo

o importante é aqui a existência de estruturas sociais tais que certos homens estejam oficialmente encarregados da determinação da verdade, isto é, que eles tenham um privilégio de desambiguação que vai junto com a existência da falta de conhecimento, de ininteligibilidade, de ambigüidade, enfim, na qual estão colocados aqueles que não são “mestres”.

Trazendo essas considerações para o contexto escolar, observamos que é a verdade,

atrelada ao poder-saber do professor, que vai governar o seu discurso avaliador e o seu

saber sobre o aluno. Essa verdade, que legitima o julgamento em relação ao outro, é vista

como designação única e válida das coisas, além de funcionar no esquecimento, já que é

estabelecida pela linguagem e resulta de interpretações. Além disso, a verdade do professor

sobre o aluno segue os princípios do binarismo (certo x errado, bom x ruim...) e da não

contradição, podendo vir a constituir a verdade do aluno, já que afeta e determina as

imagens presentes em sua representação identitária. Retomaremos essas reflexões na

análise dos registros.

Finalmente, após abordar o conceito de verdade como algo construído e não dado a

priori, seria mais adequado falar de efeitos de verdade provenientes de relações

interdiscursivas e que estão atrelados ao poder-saber do sujeito de linguagem, bem como ao

momento sócio-histórico vivenciado.

Passemos, então, às discursividades que compõem o discurso avaliador do professor,

atentando para algumas regularidades e conceitos que possibilitam o estabelecimento de

“verdades absolutas”.