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A dissolução do casamento: análise da redação original da Lei do

CAPÍTULO 1 EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO DIREITO DE FAMÍLIA

1.3 A dissolução do casamento: análise da redação original da Lei do

Nas civilizações primitivas, o divórcio ocorria através do repúdio social. Na Antiguidade Ocidental, entre gregos e romanos, além do repúdio, a ruptura do vínculo do matrimonial também podia acontecer de maneira consensual. Com o Cristianismo, o divórcio passou a ser condenado, salvo nos casos de adultério, quando era admitida apenas a separação de leito e habitação, hoje conhecida como separação de corpos, e no privilégio Paulino (privilegium paulinum), admitido para o casamento entre cristãos e não cristãos, assim denominado por seu fundamento no texto do apóstolo Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios (7,12-15), constituindo exceção à lei geral da indissolubilidade, admitida ao cônjuge cristão em face de cônjuge não batizado, no caso de infidelidade, em que era permitida ao primeiro a separação e a celebração de novas núpcias. Nos dois casos, o vínculo matrimonial era efetivamente dissolvido. Ambas as possibilidades de dissolução da sociedade conjugal foram ratificadas pelo Direito Canônico.

Certo é que em todas as legislações em que foi admitido, o divórcio sempre se apresentou como um instituto jurídico controvertido, ultrapassando o aspecto formal para ingressar na esfera de interesse da religião e da política. Mesmo

91Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da

Assembleia Geral das Nações Unidas em 10-10-1948. [Consultada 15/09/2018]. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf.

no século XVIII, as legislações que implantaram o casamento civil, e a competência do Estado para realizá-lo, conservaram sua origem canônica, que remonta ao Concílio de Trento de 1563, consagrando o matrimônio para os católicos como dogma de sacramento, caracterizado pela indissolubilidade do vínculo.

Diogo Leite de Campos e Mónica Martinez de Campos93 descrevem a cronologia da influência social da Igreja no complexo normativo do matrimônio, iniciada durante o Novo Testamento e tornada definitiva no século XVI, com o advento do Concílio de Trento, por meio de normas jurídico-canônicas, homogêneas e universais, reveladoras do caráter sacramental, indissolúvel, monogâmico e heterossexual do casamento, consolidando uma aliança entre o poder civil e o hierocrático, que predominou até o fim do século XVIII.

Foi, aliás, contra sua vinculação à religião, e não contra a ideia de família como instituição social que, inicialmente parte dos protestantes e regalistas, e depois os movimentos laicos do século XVIII e XIX, se insurgiram contra o controle jurisdicional da Igreja, então baseado na sacramentalidade e indissolubilidade do vínculo conjugal. A partir do século XIX, na medida em que os protestantes deixaram de considerar o matrimônio como sacramento, o divórcio passou a ser socialmente aceito, circunstância mais claramente evidenciada, no entanto, apenas no século seguinte.

No Brasil, o Decreto de 03 de novembro de 1827, editado após a independência e a instauração da monarquia (1822-1899), firmou a obrigatoriedade das disposições do Concílio de Trento e da Constituição do Arcebispado da Bahia, consolidando a jurisdição eclesiástica nas questões matrimoniais, situação que perdurou até a edição do Decreto nº 521/189094, já no período republicano, que proibiu cerimônias religiosas matrimoniais antes de celebrado o casamento civil, estabelecendo sanções aos considerados infratores.

A primeira proposição divorcista no país é datada do ano de 1893, apresentada pelo deputado Érico Marinho (1849/1922) do Partido Republicano Conservador/RJ, renovada sem êxito em 1896, 1899 e 1900. Em 1901, Clóvis

93CAMPOS, Diogo Leite de & CAMPOS, Mónica Martinez de, op. cit., p. 58-59, 76 e 83. 94Decreto nº 521, de 26-06-1890. “C.L.B.R” (1890).

Bevilácqua (1859/1944) apresentou seu projeto de Código Civil, que após várias alterações foi aprovado em 1916, admitindo o término da sociedade conjugal pelo desquite, amigável ou judicial, autorizando a separação dos cônjuges e pondo termo ao regime de bens, sem dissolver o vínculo conjugal.

Desse modo, até sua admissão no ordenamento jurídico brasileiro, em 1977, o divórcio foi antecedido por um processo político de grande resistência, isso porque como a noção de família estava relacionada ao matrimônio, o desfazimento da sociedade conjugal significava a desestruturação daquela.

A redução da natalidade, o aumento do aborto, da prostituição de jovens, do uso de substâncias entorpecentes, da criminalidade infanto-juvenil e até do suicídio - face à suposta ruína da autoridade parental-, e o comprometimento da educação dos filhos, foram os principais argumentos utilizados contra a possibilidade da dissolução matrimonial. O divórcio era compreendido como sintoma da decadência e do egoísmo social95.

As discussões sobre o tema mobilizaram o país naquele ano, refletindo a profunda divergência existente na sociedade. De um lado, lideranças católicas convocavam seus fiéis para protestar contra o que consideravam a destruição da família brasileira. De outro, movimentos como a Campanha Nacional Pró-Divórcio defendiam a mudança que, segundo eles, possibilitaria a milhões de brasileiros a oportunidade de regularizar suas famílias.

Assim, após 27 anos de tramitação, a Lei do Divórcio, de autoria do senador Nelson Carneiro (1919-1996), do Partido Movimento Democrático Brasileiro - MDB, foi finalmente aprovada e o Brasil tornava-se, assim, um dos últimos países do mundo a instituir o divórcio: dos 133 Estados integrantes da ONU na época, apenas outros cinco ainda não o permitiam.

Referida aprovação ocorreu por meio da Emenda Constitucional n° 9/197796, admitida após a alteração do quórum necessário para a mudança da

95BELTRÃO, Tatiana; COÊLHO, José Geraldo & STECK, Juliana - Divórcio demorou a chegar no

Brasil [em linha]. [s.n.]. São Paulo: Colégio Notarial do Brasil (12-12-2017), p. 04.

[Consultado12/10/2018]. Disponível em:

http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTU1MDA.

Constituição97, revogando o art. 175 da CFB de 1969 e os arts. 315 a 318 do CCB de 1916, que versavam sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial.

Na sistemática do CCB de 1916, o desquite autorizava a separação, fazendo cessar os deveres de fidelidade e de manutenção da vida em comum sob o mesmo teto, mas não dissolvia o vínculo matrimonial, além de manter o dever de assistência em favor do cônjuge considerado inocente pelo término conjugal. Havendo filhos, ainda que a mulher tivesse preferência no exercício da guarda, permanecia sob a supervisão moral do marido, que poderia revertê-la caso provasse circunstância que a desabonasse.

A Lei nº 6.515/1977 acrescentou o divórcio entre as causas pelas quais se dissolvia a sociedade conjugal e o casamento, substituindo a expressão desquite por separação judicial, nos termos do seu art. 2º98. Regulamentava-se no Brasil o chamado sistema dualista ou binário: a separação judicial impunha termo à sociedade conjugal, ao passo que somente com o divórcio seria dissolvido o vínculo matrimonial. Por esse sistema, as causas terminativas atacavam a sociedade conjugal, pondo fim aos deveres recíprocos e ao regime de bens, enquanto as causas dissolutivas fulminavam a própria relação jurídica entre os cônjuges, permitindo novo casamento99.

Para a obtenção do divórcio, diversas exigências deviam ser observadas, tais como a prévia separação judicial por mais de três anos ou prévia separação de fato por mais de cinco anos da data da promulgação da Emenda Constitucional, comprovada a causa da separação, conforme o caput e §1º do art. 40 da Lei do Divórcio.

A dissolução do vínculo matrimonial era possível uma única vez, segundo o art. 38 da legislação divorcista, situação somente alterada pela citada Lei nº 7.841/1989, que revogou o referido dispositivo. Se casados há mais de dois anos,

97A Emenda Constitucional nº 8/1977, baseada no Ato Institucional nº 05, passou a exigir maioria

absoluta para a alteração do Texto Constitucional, e não mais quorum qualificado, situação alterada pela Emenda Constitucional nº 9, de 28-06-1977, o que acabou permitindo a aprovação do divórcio. (Emenda Constitucional nº 8, de 14-04-1977. “D.O.U. Seção 1” (14/04/1977).

98Art.2º.“A sociedade conjugal termina: I- Pela morte de um dos cônjuges; Il- Pela nulidade ou

anulação do casamento; III- Pela separação judicial; IV- Pelo divórcio. Parágrafo único. O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”.

permitia-se a separação judicial por mútuo consentimento, conforme art. 4º da Lei do Divórcio.

Já a separação judicial litigiosa poderia ser pedida por um dos cônjuges em caso de conduta desonrosa ou grave violação dos deveres matrimoniais, que tornasse insuportável a vida em comum. Era a chamada separação sanção. Nela os filhos incapazes ficariam com o cônjuge que não a houvesse dado causa. Sendo ambos os responsáveis, ficariam com a mãe, salvo se verificado prejuízo de ordem moral, podendo, ainda, permanecer sob a guarda de pessoa idônea da família. Era esse o teor do caput do art. 5º e do art. 10 da Lei do Divórcio.

A separação judicial litigiosa também podia ser requerida em caso de ruptura da vida em comum por mais de cinco anos consecutivos, chamada de separação falência, em que os filhos incapazes ficariam em poder do cônjuge em cuja companhia estavam ao tempo da ruptura, nos termos do §1º do art. 5º e do art. 11 do diploma legal em questão.

Por fim, a separação podia ocorrer na hipótese de doença mental grave de cura improvável, manifestada após o casamento, que tornasse impossível a vida em comum após duração de cinco anos, igualmente considerada hipótese de separação sanção. Nesse caso, a separação poderia ser negada se agravasse a enfermidade ou impusesse consequências morais aos filhos incapazes. Deferida, os filhos incapazes ficariam sob a guarda do cônjuge sadio (§2º do art. 5º, art. 6º e art. 12 da Lei do Divórcio).

Vencida na ação de separação judicial (caput do art. 5º da Lei do Divórcio), a mulher voltaria a adotar o nome de solteira, o mesmo ocorrendo se fosse sua a iniciativa da separação, com fundamento nos §§1º (separação por ruptura da vida conjugal) e 2º (separação em caso de doença mental) do art. 5º. Nos demais casos, poderia optar pela conservação do nome de casada (art.17 da Lei do Divórcio).

Quanto aos alimentos, caberia ao cônjuge responsável pela separação judicial prestá-los àquele que deles necessitassem (art.19). No que tocava à manutenção dos filhos, as despesas seriam proporcionais, conforme previsto no art. 20.

Por sua vez, a redação original da Lei do Divórcio dispunha no caput do seu art. 24 que o divórcio colocava termo ao casamento e aos efeitos civis do matrimônio religioso. A conversão da separação judicial em divórcio era possível se a decisão ou medida cautelar correspondente existisse há mais de três anos, sendo que da sentença não constaria referência à causa que a tivesse determinado, conforme seu art. 25.

O divórcio resultante da separação prevista no §1º (ruptura da vida em comum) e no §2ª (doença mental grave) do art. 5º implicaria o dever de assistência àquele que não teve a iniciativa da separação, não modificando os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos, nos termos dos seus arts. 26 e 27.

A contestação do pedido de conversão da separação judicial em divórcio somente poderia fundar-se na falta de decurso do prazo de três anos da separação judicial ou no descumprimento das obrigações assumidas pelo requerente na separação.

Independentemente da causa da separação judicial, era possível a reconciliação mediante requerimento nos autos, resguardados os direitos de terceiros, conforme a dicção dos arts. 36 e 46 da Lei do Divórcio. Qualquer que fosse a natureza da filiação, a legislação divorcista, no seu art. 51, estabeleceu igualdade de condições sobre o direito à herança.

CAPÍTULO 2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA