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Famílias plurais e legislação ordinária brasileira: hipótese de omissão

CAPÍTULO 3 O DIREITO DE FAMÍLIA E OS PARADOXOS DA ATUAÇÃO

3.1 Famílias plurais e legislação ordinária brasileira: hipótese de omissão

Quando a citada Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, entrou em vigor, instituindo o novo Código Civil brasileiro (CCB de 2002), seu relator, professor Miguel Reale, sustentou que o sentido da codificação foi o de dar guarida a institutos e soluções normativas revestidas de certa sedimentação e estabilidade e que caberia à legislação especial a tarefa de disciplinar questões ainda não devidamente consolidadas. Tal foi o argumento apresentado em face das inúmeras críticas advindas da doutrina familista brasileira, para quem o texto aprovado, após 26 anos de tramitação, se apresentou tímido e distante da realidade, limitado a reproduzir a legislação precedente ou a confirmar regras existentes, resultando na edição de um diploma de induvidosa defasagem. A reforma por segmentos, sem que fosse preciso refazer a lei por inteiro, afirmava a maioria dos autores, melhor atenderia ao caráter dinâmico das relações sociais. O originário projeto de lei de alteração do Código Civil (Projeto de Lei nº 634/1975311), no máximo realinhado à ordem constitucional, omitiu- se, assim, de dar um passo mais ousado. Ao exemplificar a palidez do novel diploma civil, face à dinamicidade dos fatos sociais, Sílvio de Salvo Venosa312 destacou à época que a disciplina imposta pelo CCB de 2002, ao tratar do divórcio, ao contrário

311Projeto de lei nº 634/1975. “D.C.N. suplemento B nº 61” (18/06/1975).

312VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito civil: Direito de família. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, vol. 6, p.

de seguir a tendência das legislações modernas em adotar a modalidade divórcio remédio em maior amplitude, manteve a noção de culpa, expressa na identificação da causas da separação judicial (art. 1.573 do CCB de 2002), reintroduzindo sistemática similar àquela estabelecida pelo CCB de 1916313, afastando-se, assim, da linha mais genérica aplicada pela Lei do Divórcio, editada na década de 70, o que, por si, representou injustificável retrocesso, uma vez que desde a CFB de 1988 a exigência de demonstração de culpa, ou o decurso de prazos, para autorizar o rompimento do vínculo matrimonial, não mais se mostrava em harmonia com a prevalência atribuída à dignidade, vida privada e intimidade dos cônjuges, circunstância mais tarde consolidada com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010. Ademais, sustentava a doutrina majoritária, a atuação do legislador de 2002, ao restringir-se a legitimar o desuso de dispositivos revogados pela CFB de 1988 - como a abolição do regime dotal, a eliminação das referências discriminatórias entre o homem e a mulher e a vedação da distinção entre filhos-, preservou uma visão matrimonialista, institucionalizada e patrimonial da família, tanto que, quanto ao último aspecto, do total de 273 artigos o livro IV da parte especial (Do Direito de Família) reservou nada menos do que 112 somente para a resolução de questões de natureza econômica. Desse modo, o CCB de 2002 não poderia nem ter se limitado aos insuficientes mecanismos de proteção das famílias nacionais, muito menos ignorar, como fez a CFB de 1988, para além da união estável e da família monoparental, a pluralidade de arranjos que compõem o “quebra-cabeças” familiar da sociedade brasileira e mundial. Contrariamente, o referido diploma seguiu o mesmo percurso da legislação infraconstitucional até então produzida, na medida em que sua atuação se restringiu a tutelar modelos familiares tradicionais, projetando padrões morais e religiosos dominantes, sem dar conta, efetivamente, da multiplicidade de relações estabelecidas no mundo real àquela já altura existentes, de cuja proteção o direito não mais poderia descuidar, uma vez que “onde está a sociedade está o direito’ (ubis societas, ibis jus). Apesar da evolução dos tempos, caracterizada, dentre outros aspectos, pela diluição da autoridade paterna e pela presença da mãe no espaço doméstico em coexistência

313Art. 317. “A ação de desquite só se pode fundar em algum dos seguintes motivos: (revogado pela Lei

nº 6.515/1977). I- Adultério; II- Tentativa de morte; III- Sevícia, ou injúria grave; IV- Abandono voluntário do lar conjugal, durante dois anos contínuos”. (art. 317 do CCB de 1916).

com suas expectativas profissionais, o modelo patriarcal permaneceu produzindo efeitos na relação conjugal e na criação e educação dos filhos. Em preservação a um modelo idealizado, que não mais corresponde à realidade da vida, a decisão muitas vezes involuntária da esposa em se dedicar exclusivamente às tarefas domésticas, a discriminação social a que ainda são submetidos os filhos não havidos do matrimônio ou mesmo a herança simbólica de levar adiante o legado paterno pelo filho preferido, característica da rivalidade fratricida das famílias nucleares, acaba ocorrendo, na maioria das vezes, em detrimento do desejo de realização dos membros do núcleo familiar. A retórica de atribuir à família a missão de edificar a ordem e a moralidade nacionais, frequentemente adotada pela política e pela religião, associando as diferentes variações do modelo tradicional à violência e à criminalidade, ao invés de contribuir no processo educativo de crianças e adolescentes, acaba por gerar efeito inverso ao papel que se espera da família, qual seja, a de preparar os filhos para a vida em sociedade, gerando, dentre outros efeitos, um sentimento de culpa materno pela ausência do lar, o ressentimento filial pela dedicação dos genitores às suas profissões em detrimento do convívio familiar, ou mesmo as queixas das mulheres pela ausência masculina na formação dos filhos. A tarefa de restauração da ordem e da moral pública, habitualmente atribuída à família por segmentos políticos e religiosos, entretanto, não pode ser debitada à existência de núcleos constituídos por uma genitora solteira; à circunstância de relacionamentos desfeitos e refeitos; ou mesmo àqueles constituídos por casais do mesmo sexo, já que resultam, sobretudo, da incapacidade do Estado de confiar na estrutura criada a partir de tais deslocamentos afetivos, sobremaneira afetada pela “dívida” com a família idealizada que, ao invés de garantir a proteção estatal preconizada pelo Texto Constitucional, contribui para a sensação de impotência dos genitores na tarefa de educação dos filhos, essa sim verdadeiramente necessária à vida em sociedade. A falta de proteção para a construção da identidade de cada núcleo familiar, condenando, ao contrário, os pais à desmoralização pelo exercício de suas escolhas, dificulta, ainda mais, o processo educativo, única ancoragem esperada da autoridade parental contemporânea. Desse modo, de modo geral doutrina e jurisprudência sustentam que, na medida em que a sociedade vem acolhendo outros modelos de formação familiar, não se mostra

razoável preordenar espécies estanques e somente a elas destinar atenção do Poder Público, já que a taxatividade de tais núcleos não consegue absorver o conjunto de demandas que, ao longo do tempo, vêm manifestando reivindicações legítimas originadas do corpo social. Numa tentativa conceitual de contemplar novos desenhos familiares sem nomeação específica e proteção estatal efetiva, Maria Rita Khel314 popularizou a expressão família tentacular, ao referir-se a configurações que, carregando experiências subjetivas próprias, guardam a memória de uniões, separações e novas uniões afetivas. De maneira semelhante aos tentáculos dos polvos - daí a origem da expressão-, entrelaçadas em novas formações, a experiência fraterna, mais democrática e menos limitada ao poder parental, não catalogada legal ou biologicamente, é o sustentáculo da convivência, implicando novos desafios e possibilidades. Nessas formações, independentemente do arranjo familiar constituído (pai, mãe, madrasta, padrasto, dois pais, duas mães etc.), as funções parentais são desempenhadas a partir da decisão pessoal daqueles que se encarregam de exercê-las, de forma diferente da família extensa pré-moderna, organizada em torno do patriarcado rural, predominante no século XIX, e da família nuclear moderna, centralizada na figura do pai, da mãe e dos filhos, hegemônica no início do século XX. Desse modo, a partir da segunda metade do século XX, atravessada pela convivência com adultos, crianças e adolescentes oriundos de outras famílias, que passam a ocupar locais não definidos e a exercer funções não tradicionais no novo núcleo constituído, emergem formações hiper-ramificadas, que acompanham a trajetória dos desejos humanos ao longo de várias fases da vida. Nesse cenário, mulheres solteiras assumem a condição de provedoras da família; irmãos não consanguíneos passam a conviver com padrastos ou madrastas, às vezes de uma segunda ou terceira união, preservando vínculos com quem não fazia parte do núcleo de origem, ainda que frustrada a convivência conjugal dos genitores; relações de afeto e cumplicidade entre esses irmãos, estabelecidas em virtude de identificações horizontais, consolidam o poder da fratria, em contraponto à autoridade parental, do mesmo modo que nas uniões estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo os papéis

314KHEL, Maria Rita - Em defesa da família tentacular[em linha].[s.l].[s.n.]. Fronteiras do pensamento

(01-12-2013). p. 01, 06, 03, 11 e 12. [Consultado 17/03/2019]. Disponível em: https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular.

assumidos na estrutura de parentesco deixam de corresponder à figura do pai e da mãe, salvo por decisão do próprio conjunto familiar. Em que pese se atribua à CFB de 1988 a superação da ideologia patriarcal, a noção de família, albergada pelo Texto Constitucional, continuou baseada no biparentalismo ou no monoparentalismo, mesmo não havendo mais como negar que no mundo real uma entidade familiar possa ser constituída apenas por homens ou por mulheres, sem pai ou mãe, ou até mesmo sem relacionamento sexual, como resultado apenas da conjugação de afetos, consoante destaca Sérgio de Barros Resende315. De modo a resolver essa aparente antinomia, doutrina e jurisprudência consolidaram o entendimento de que quando o

caput do art. 226 da CFB de 1988 dispõe que, como base da sociedade, é assegurada à

família especial proteção do Estado, está, na verdade, contemplando uma cláusula geral de inclusão, de modo que uma vez preenchidos os requisitos da afetividade, estabilidade e ostensibilidade não mais seria possível, à luz da cartilha da pluralidade inferida do próprio Texto Constitucional, deixar de reconhecer como configuração familiar qualquer outro tipo de relação estabelecida sob aqueles pressupostos. No entanto, a despeito de um cenário de extrema mobilidade, o padrão de normalidade, característico do século XIX e meados do XX, permaneceu sendo nuclear, patriarcal e endogâmico. Com isso, diante da necessidade de criar filhos oriundos de uniões amorosas temporárias, que a lei não mais consegue obrigar que se eternizem, ou da tentativa de corrigir incontáveis vezes a própria história afetiva, relações vêm sendo improvisadas porque o amor e a realização sexual ainda encontram sua legitimidade associados ao padrão tradicional. Assim, afirma Maria Rita Khel316, a mesma indústria cultural, que nos incita a viver de modo diferente às escolhas dos nossos pais, apresenta como ideal de felicidade o modelo familiar dos nossos avós, fazendo recair uma dívida impagável sobre todos que ousam desafiar aquele modelo. Ao se alimentar de tais idealizações, referida indústria apela constantemente para a restauração da “família ideal”, cujo cenário de felicidade doméstica, utilizado para vender sabonetes e marcas de margarina, acaba contribuindo para que agrupamentos, regidos por afetos e desejos sexuais outros, permaneçam em situação de desabrigo. Por outro lado, a

315RESENDE, Sérgio de Barros, op. cit., p. 09. 316KHEL, Maria Rita, op. cit., p. 09 e 11.

ênfase conferida às preocupações materiais tem resultado em uma falha coletiva em reconhecer as necessidades do espírito, direcionando, com isso, a visão política para dentro de sistemas de dominação e opressão, dentre eles o classismo, o racismo e o sexismo, explica Bell Hooks317, de modo que colocar o amor na centralidade de toda interação humana, como propósito de busca pelo crescimento pessoal e daqueles com quem se compartilha a vida, é o primeiro passo para que a humanidade se insurja contra os referidos sistemas, o que implica, segundo a referida autora, ao mesmo tempo, intenção, ação e escolha. De maneira paradoxal, todavia, a lógica da família burguesa acabou por destruir suas próprias bases de sustentação. Nela, a perda do poder aquisitivo dos chefes de família gerou oportunidades profissionais para as mulheres, favorecendo, ao mesmo tempo, a independência financeira feminina e contribuindo para a democratização do ambiente doméstico. Aliada a isso, a utilização de técnicas anticonceptivas desvinculou a sexualidade dos avatares da procriação, com reflexos na estabilidade conjugal, circunstância sempre lembrada pelos defensores da ordem patriarcal como responsável pela “desestruturação” familiar. Embora a desarticulação da família oitocentista seja em grande parte atribuída à decisão da mulher - que poderia, inclusive, ter optado por renunciar sua liberdade sexual para que referida ordem fosse preservada-, o homem não pode ser excluído desse processo, na medida em que sempre teve a possibilidade de procriar filhos de diferentes leitos e fazê-los coabitar em famílias recompostas ou coparentais318, modalidades de família que, ao lado das configurações integradas por pessoas trans319, famílias parentais ou anaparentais, octogenéticas e multiespécie, e mesmo das

317BELL, Hooks - Love as the practice of freedom. In: NASCIMENTO, Wanderson Flor do (tradução). Outlaw culture. Resisting representatios. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243-250.

318KHEL, Maria Rita, op. cit., p. 05.

319A expressão trans alberga diferentes identidades, a saber: transexual, travesti, intersexo e

transgênero, conforme deliberado no Congresso Internacional sobre Identidade de Gênero e Direitos Humanos, realizado em Barcelona no ano de 2010. O citado PLS nº 134/2018, que institui o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero, estabelece no seu art. 2º a definição do termo transexualidade: “Art. 2º. Como todos nascem iguais em direitos e dignidade, é reconhecida igual dignidade jurídica a heterossexuais, lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais, individualmente, em comunhão e nas relações sociais, respeitadas as diferentes formas de conduzirem suas vidas, de acordo com sua orientação sexual ou identidade de gênero. Parágrafo único. Para efeitos desta Lei, o termo transgênero abarca pessoas cuja identidade de gênero, expressão de gênero ou comportamento não está em conformidade com aqueles tipicamente associados com o sexo que lhes foi atribuído no nascimento, tais como travestis e transexuais”.

famílias monoparentais - essas, inclusive, com assento na Constituição -, são, dentre outros, exemplos de vivências individuais, dinâmicas e multifacetadas que, por decisão deliberada ou não, permanecem sendo formalmente ignoradas pelo Estado brasileiro. Sem a pretensão de esgotar tal elenco, passa-se a suscitar algumas questões relacionadas à profusão dessas novas (ou novíssimas) configurações.

Nessa plêiade de manifestações, Melissa Barbieri de Oliveira320 destaca as famílias compostas por travestis e transexuais, em que um ou ambos os genitores nem sempre autoidentificam o gênero que ostentam ao respectivo sexo biológico, questão que ultrapassa o debate em torno da família homoparental, expressão criada pelo APGL (Association des parents et futurs parents gays e lesbiens), utilizada pela primeira vez em Paris no ano de 1997, designativa de núcleos compostos por pessoas que sentem atração afetivo-sexual por outras do mesmo sexo. A pessoa transexual, por sua vez, manifesta gênero oposto ao sexo biológico, independentemente da mudança de genitália ou da própria orientação sexual321. Na família composta por transexuais, quem gera a prole é o homem trans (a pessoa que nasceu com o sexo feminino) e não a mulher trans (a pessoa que nasceu com o sexo masculino), invertendo os papéis sociais da parentalidade sob a lógica heteronormativa: o homem trans será o pai social e a mulher trans será a mãe social da criança. No entanto, como tais pessoas se reconhecem como heterossexuais, a homoparentalidade não é capaz de

320OLIVEIRA, Melissa Barbieri de - Famílias compostas por pessoas trans: o que muda nesta configuração familiar? [em linha]. [s.l.].[s.n.]. p. 02,03,05-08. [Consultado 17/03/ 2019]. Disponível em: http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2015/07/enlace06-01.pdf.

321Sexo, gênero e orientação sexual constituem categorias conceituais distintas. O sexo compõe-se de

características anatômicas, biológicas e físicas. Trata-se de categoria estruturada a partir do critério cromossomático ou genital, que pressupõe capacidades reprodutivas. Para o sexo biológico contribuem fatores como cromossomas (XY, XX ou outras combinações), genitais (estruturas reprodutivas externas), gônadas (presença de testículos ou ovários), hormonas (testosterona, estrogênios) etc. Chama-se intersexo pessoa com órgãos genitais/reprodutores (internos e/ou externos) masculinos e femininos simultâneos, ou cromossomas que não são nem XX nem XY. Orientação sexual constitui a afirmação de uma identidade afetiva e/ou sexual direcionada a sujeitos de sexo idêntico (homossexual), oposto (heterossexual), ambos (bissexual) ou a ninguém. Já o gênero refere-se à experiência individual de cada pessoa em relação à própria identidade, que pode ou não coincidir com o sexo atribuído no nascimento. Identidade e expressão de gênero são conceitos distintos. Enquanto a identidade situa-se no universo das masculinidades ou feminilidades - em conformações distintas das associadas ao sexo biológico-, expressão de gênero respeita a dados comportamentais (físico, gostos, atitudes). Referidas conceituações encontram-se em conformidade com os Princípios de Yogyakarta, conjunto de preceitos jurídicos internacionais de direitos humanos aplicados em situações de discriminação sexual, elaborado em 2006, em Yogyakarta, na Indonésia, afirmando normas vinculantes a todos os Estados (Princípios de Yogyakarta [em linha]. Yogyakarta: [s.n.], 2006. [Consultado 17/03/2019]. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf.

comportar suas especificidades identitárias e garantir a legitimação de suas relações. Referidas especificidades - potencializadas pelos avanços da medicina, como a possibilidade de conservação do material genético em clínicas de fertilização e da própria cirurgia de redesignação sexual-, suscita questões ainda não disciplinadas pelo direito como, por exemplo, quando o pai passa a adotar legalmente o sexo feminino ou quando a mãe passa a adotar legalmente o sexo masculino, embora preservando a possibilidade de engravidar. Quanto ao nome social, após reiterados julgados pelos Tribunais estaduais, a possibilidade de alteração no registro de nascimento passou a ser plenamente garantida pelo STF, independentemente de laudo pericial antecedente, o que sempre constituiu significativo entrave na tramitação dos processos dessa natureza, sendo a partir de então permitida a modificação do nome diretamente em Cartório, sem necessidade de intervenção judicial322. Nessa medida, para além das fórmulas tradicionais, o Estado não pode mais se furtar da obrigação de viabilizar o enquadramento legal das uniões formadas por pessoas trans, regulamentando suas repercussões pessoais e patrimoniais no âmbito civil, sob pena de reproduzir invisibilidades pretéritas, o que exige de legisladores e operadores do direito o devido preparo para compreender, dentre outras questões, a autonomização da dicotomia sexo e gênero; reprodução e conjugalidade; cidadania e direitos sexuais reprodutivos. Ocorre que como não existe no campo das ciências jurídicas a cultura de estudar as diferenças entre sexo e gênero, ao contrário do olhar interpretativo atribuído às famílias homoparentais, ainda não há como serem identificadas concretamente no direito brasileiro as nuances da configuração das famílias trans sob a perspectiva do reconhecimento dos papéis desempenhados por cada um dos seus membros, questões essas que, ao lado de suas correlatas consequências jurídicas, também levem em consideração subjetividades e sentimentos, de modo a garantir igualmente a

322 “(...) É vedado exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico

ou laudo psicológico que exijam do indivíduo a assunção de um papel de vítima de determinada condição, sendo a autodeclaração suficiente para justificar a alteração do registro civil, inclusive - e não exclusivamente - na via cartorária. Assim, fica a critério do interessado a escolha da via judicial ou extrajudicial, sendo certo que em nenhuma delas poderá haver condicionantes às situações antes citadas (...)”. (STF, Rcl nº 31102/PR, relator ministro Alexandre de Moraes, julgamento em 20-08-2018, DJE nº 173 de 23-08-2018).

legitimação social buscada por aqueles que a vivenciam323. O já mencionado PLS nº 134/2018, que prevê a criação do Estatuto da Diversidade Sexual e Identidade de Gênero, estabelece, dentre outros direitos, a liberdade de constituição familiar, independentemente de orientação sexual ou identidade de gênero (inciso VI do art. 4º e art. 12), vedando qualquer ingerência estatal, social, religiosa ou familiar no exercício individual de relações afetivas e sexuais (§1º do art. 5º); liberdade de expressão de identidade de gênero a transgêneros e intersexuais (art.31); direito à hormonioterapia e procedimentos não-cirúrgicos por indicação médica e multidisciplinar a partir da idade em que a criança expressar sua identidade de gênero (art. 36); direito a cirurgias de redesignação sexual a partir da maioridade (art. 37); uso do nome pelo qual são reconhecidos e identificados (nome social) por transgêneros e intersexuais, independente da retificação no assento do Registro Civil (art. 38); direito à retificação do nome e da identidade sexual, independente de realização da cirurgia de readequação sexual, apresentação de perícias ou laudos médicos ou psicológicos (art. 39) e alteração gratuita do nome e da identidade sexual diretamente no Cartório do Registro Civil, sem a necessidade de ação judicial representação por advogado (art. 40). Em âmbito internacional, referidas questões ganharam especial relevância a partir do momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao lançar uma nova edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), em 18-06-2018, deixou de caracterizar a transexualidade como doença mental. Até então compondo o subcapítulo “transtornos de identidade de gênero” do capítulo “transtornos de