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CAPÍTULO 2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA

2.1 Aspectos gerais

Para compreender o processo de constitucionalização do Direito de Família, faz-se necessário inicialmente situá-lo no contexto da Teoria da Constituição, na formulação atribuída a Joaquim José Gomes Canotilho100. Segundo o autor, sob a influência da teoria do pluralismo de Häberle, a Constituição não implica uma decisão unitária do poder constituinte, limitada à averiguação hipotética da vontade do

legislador, mas é antes de tudo o resultado de diálogos e conflitos estabelecidos em um contexto de ideias e interesses, que se refletem no domínio político, econômico e cultural.

O homem, como sujeito e objeto de sua história, constitui o centro da teoria constitucional, o que implica uma série de consequências próprias da existência humana: a abertura, a diversidade e a transição. O sentido histórico do direito é a realização humana na história. Já que a realidade humana não vive em unidade, o Direito Constitucional, como direito da contingência, constitui uma decisão dinâmica e incompleta, estatuto jurídico e político, ordem fundamental e programa de ação, cuja função é estabelecer os fins sociais mais expressivos e ordenar os princípios fundamentais do processo político.

No âmbito da disciplina familiar, as Constituições brasileiras, de modo geral, retrataram o momento político de sua elaboração. Na Carta de 1824101, dado o estreitamento da relação entre a Igreja e o Império, houve a previsão do casamento religioso. A Constituição de 1891102, influenciada pelos ideais republicanos, criou o casamento civil, eliminando sua natureza religiosa. O casamento era gratuito e integrado às disposições sobre os direitos individuais. A Constituição de 1934 estabeleceu a obrigação estatal de socorrer famílias de grande prole. O matrimônio era indissolúvel - salvo as hipóteses de desquite e anulação-, possuía natureza civil e era gratuito, sendo reconhecidos os efeitos do casamento religioso. Exigia-se exame de sanidade física e mental para os nubentes, garantida a gratuidade do reconhecimento dos filhos naturais, circunstâncias reproduzidas na Constituição de 1937, já mencionada, que assegurou, ainda, a igualdade entre filhos naturais e a proteção da infância e juventude. Referidos direitos foram renovados na Constituição de 1946, igualmente citada, que passou a autorizar a participação de brasileiros na sucessão de estrangeiros no país. A Emenda Constitucional n° 1/1969 manteve a indissolubilidade do casamento, que somente foi alterada pela Lei do Divórcio.

Desse modo, até a promulgação da CFB de 1988 sobreleva-se o perfil matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, biológico, heteroparental e institucional

101Constituição política do Império do Brazil, de 25-03-1824.“Secretaria de Estado dos Negócios do Império do Brazil”(22-04-1824).

da família103, reflexo do padrão cultural, político e social então dominante. A ordem constitucional brasileira, inaugurada em 1988, foi responsável pela fragmentação e perda da centralidade do Código Civil no âmbito das relações familiares.

A descodificação, entendida como o trânsito da disciplina jurídica estabelecida no estatuto civilista para a Constituição, é atribuída a dois fenômenos distintos: a dispersão legislativa ocorrida ao longo dos anos e o tratamento dado pelos Tribunais às questões levadas à apreciação do Poder Judiciário. No âmbito do Direito de Família, o processo de constitucionalização do sistema jurídico nacional, iniciado em 1988, caracterizou-se pela progressiva perda da primazia da proteção de interesses econômicos, próprios do direito privado, para a prevalência dada à garantia da dignidade humana em sua dimensão individual e comunitária.

O primeiro fato que chama atenção na Carta de 1988 é a menor consideração pelo casamento dentro do quadro da família, destaca Sílvio Rodrigues104. Divergindo das Constituições anteriores, o constituinte de 1988 não repetiu a fórmula geral, que condicionava a existência da família ao matrimônio, além de ter destacado sua natureza civil e gratuita.

Ao lado da relativa perda da supremacia do casamento, o reconhecimento jurídico de realidades sociológicas distintas daquele, alargou o perfil de família estabelecido pelo CCB de 1916, dignificando com status e identidade constitucional a união estável entre o homem e a mulher, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada monoparentalidade familiar, nos termos dos §§3º e 4º do art. 226 da CFB de 1988105.

De outro lado, a verticalização do desenvolvimento da personalidade operou a despatrimonialização do Direito de Família106, elaborando as bases de um direito desmaterializado, no sentido da prioridade atribuída à proteção da pessoa em

103MADALENO, Rolf - Direito de Família. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 05-06. 104RODRIGUES, Sílvio, op. cit., p. 244-245.

105 Art. 226. “(...) §3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e

a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”; §4º. “Entende- se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

106 PERLINGIERI, Pietro - Perfis do Direito Civil, introdução ao Direito Civil Constitucional. Rio de

detrimento de seu patrimônio, no fenômeno denominado por Paulo Lôbo107 de repersonalização da família.

Casamento, sexo e procriação deixaram de ser considerados paradigmas para sua identificação. O reconhecimento da igualdade de direitos entre homens e mulheres (§5º do art. 226 da CFB de 1988108), a proteção da união estável e da comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos (§§ 3º e 4º do art. 226 da CFB de 1988), ao lado do casamento, bem como a proibição de qualquer adjetivação quanto à pessoa dos filhos (§6º do art. 227 da CFB de 1988) são descritos por Rolf Madaleno109 como os três eixos da revolução realizada pela Carta Magna de 1988, impactando decisivamente a vida dos indivíduos e a estrutura social.

No que se refere à igualdade jurídica da filiação, a citada Lei nº 7.841/1989, ao regulamentar o §6º do art. 227 da CFB de 1988, revogou o art. 358 do CCB de 1916, que proibia o reconhecimento dos filhos incestuosos e os adulterinos. Finalmente, a Lei nº 8.560/1992, também já mencionada, regulou a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, revogando as disposições em contrário, dentre elas os arts. 332, 337 e 347 do CCB de 1916110, além da Lei nº 883/1949, estudada no capítulo anterior.

A Lei nº 8.560/1992, no particular, regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, cujo reconhecimento é irrevogável, podendo ser realizado no registro de nascimento; por escritura pública ou escrito particular, arquivado em cartório e por testamento ou por manifestação expressa e direta perante o juiz, ainda que o reconhecimento não seja o objeto único e principal do ato, sendo vedado reconhecer o filho na ata do casamento, exigindo-se o consentimento do filho em caso de maioridade.

107LÔBO, Paulo - A repersonalização das relações de família. Teresina:Jus Navigandi, ano 09, nº 307

(10-05-2004). [Consultado 03/01/2018]. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5201/a- repersonalizacao-das-relacoes-de-familia apud SOUSA, Mônica Teresa Costa, WAQUIM, Bruna Barbieri - Do Direito de Família ao Direito das Famílias. A repersonalização das relações familiares no Brasil [em linha]. Revista de Informação Legislativa, ano 52, nº 205 (janeiro a março de 2015), p. 77. [Consultado 03/01/2018]. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/509943.

108Art. 226. “(...) §5º. Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente

pelo homem e pela mulher”.

109 MADALENO, Rolf, op. cit., p. 04.

110Art. 337. “São legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou

nulo, se contraiu de boa fé”; Art. 347. “A filiação legitima prova-se pela certidão do termo do nascimento, inscrito no Registro Civil”.

No registro de nascimento, nos termos do citado diploma, não se fará qualquer referência à natureza da filiação ou que a concepção decorreu de relação extraconjugal, além de ser proibida qualquer menção à lei em referência. Há a possibilidade de averiguação da paternidade pelo oficial do registro, submetida à apreciação judicial, ouvida a mãe e notificado o pai para manifestação. Expressamente confirmada a paternidade pelo suposto pai, será lavrado termo de reconhecimento e remetida a certidão ao oficial para averbação. Não atendendo à notificação ou negando a paternidade, os autos serão enviados ao Ministério Público para que intente, caso entenda haver elementos, ação de investigação de paternidade, dispensável caso a criança seja encaminhada para adoção. A iniciativa conferida ao representante do parquet não impede a quem tenha legítimo interesse de intentar a investigação, havendo a presunção da paternidade em caso de recusa do réu em se submeter ao exame de código genético (DNA), a ser apreciado em conjunto com o contexto probatório. Serão fixados alimentos provisionais ou definitivos ao filho reconhecido que deles necessitem.

A abordagem constitucionalizada da família, de caráter plural, modificou sua finalidade constitutiva. Substituiu-se a ideia de família-instituição pela de família- instrumento111. Baseada no envolvimento emocional dos seus membros e no seu caráter eudemonista, a família passa a se constituir no espaço, social, político e jurídico apropriado à realização de seus integrantes, com enfoque emancipatório e matriz na afetividade. De origem grega, segundo o eudaimonismo, eudaimonia ou eudemonismo, o fim de toda atividade humana (telos) é a felicidade. Na célebre Ética a Nicómaco, de Aristóteles, a felicidade é a ação humana mais autêntica, seu fim último ou bem supremo; a atividade que determina a função do homem no mundo, o combustível de suas motivações, mais desejado e autossuficiente, pois quem o alcança realiza seu desejo plenamente112.

111TEPEDINO, Gustavo - O papel da culpa na separação e no divórcio. In: PEREIRA, Rodrigo da

Cunha (coordenador). Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 203.

112MARTINS, Antônio Manuel - A doutrina da Eudaimonia em Aristóteles [em linha]. Coimbra:

Universidade de Coimbra. HVMANITAS. vol. XLVI (1994), p. 185, 192-194 [Consultado

08/05/2017]. Disponível em:

Consolida-se, assim, a ideia da eficácia horizontal dos direitos humanos. Enquanto a eficácia vertical é entendida como a vinculação dos Poderes estatais aos direitos fundamentais, estabelecida na relação particular/Estado, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, atualmente adotada pelo STF, corresponde à aplicação dos direitos fundamentais às relações entre particulares113. Igualmente chamada de eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros ou de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, decorre do reconhecimento de que as situações de desigualdade também ocorrem na esfera particular, incidindo no mercado, nas relações de trabalho e na família114.

Consagra-se, nestes termos, o princípio da boa-fé objetiva, baseado no dever de confiança, honestidade, lealdade e cooperação, como instrumento de controle da autonomia privada. A liberdade atribuída à pessoa de constituir o próprio núcleo familiar deu ensejo à constituição da família potestativa115, de natureza socioafetiva116. Com vistas à preservação da privacidade e intimidade dos integrantes, a intervenção estatal na família torna-se residual ou supletiva. O sentido atribuído ao dever estatal de assistência passa a ser o de favorecer a realização pessoal dos integrantes da família, conforme o §8º do art. 226 da CFB de 1988117.

113“(...) As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o

cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. (...) A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais (...)”. (STF, RE nº 201819/RJ, Segunda Turma, relatora ministra Ellen Gracie, relator para acórdão ministro Gilmar Mendes, julgamento em 11-10-2005, DJ de 27-10-2006).

114SARMENTO, Daniel - Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen

Juris, 2006, p. 323.

115BRAGA, Luiz Felipe Nobre - O conceito hiperbólico, existenciário e potestativo de família. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre: Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, n°30 (outubro e novembro de 2012), p. 115.

116LÔBO, Paulo - Despatrimonialização do direito de família. São Luís: Revista do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, vol.5, n° 2 (dezembro de 2011), p. 37.

117Art. 226.“(...) §8º. O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a

O percurso evolutivo do Direito de Família brasileiro, segundo Eduardo de Oliveira Leite118, aponta para as seguintes direções:1ª) Estatização, manifestada na publicização de sua disciplina normativa; 2ª) Retração, expressa na nuclearização do grupo familiar, reduzida aos pais e filhos; 3ª) Proletarização, que significa a perda de sua característica plutocrática, dominada pelo dinheiro, fixando-se em relações do tipo alimentar; 4ª) Desencarnação, caracterizada pela substituição do elemento biológico pelo afetivo; 5ª) Dessacralização, que implica o desaparecimento do elemento sagrado, com predomínio da autonomia da vontade; 6ª) Democratização, que significa a substituição da hierarquia pela cooperação.

A mudança de paradigmas, provocada pela CFB de 1988, resultou na discussão acerca da natureza jurídica do Direito de Família brasileiro. Autores como Cicu, Ruggiero, Savatier, Sílvio Rodrigues e San Tiago Dantas, citados por Juliana Gontijo119, o consideram parte do direito público, dado o caráter cogente ou imperativo de várias de suas normas, que interessam a toda a sociedade e não somente ao indivíduo. Para esses autores, ao contrário da maioria dos atos civis, em que a vontade é a norma que define os objetivos, nesse ramo do direito não é permitido às partes introduzir elementos acidentais ao ato (termo, modo ou condição), modelando os efeitos de determinado estado de família.

Maria Helena Diniz, Limongi França, Luiz Edson Fachin e Orlando Gomes, também citados por Juliana Gontijo120, sustentam a natureza privada do Direito de Família, explicando que a incidência de princípios de ordem pública também acontece em outros ramos do Direito Civil, o que não resulta em sua extinção como direito privado. Além disso, assumir natureza jurispublicística implicaria admitir excessiva intervenção do Estado no grupo familiar, cuja atuação é excepcional e não visa realizar interesse público, nem acarreta sua responsabilidade. Ademais, sua estrutura normativa também não envolve diretamente uma relação entre o Estado e o cidadão. Os sujeitos das relações que disciplina, suas finalidades e seu conteúdo estão a denotar, assim, a natureza privada do Direito de Família.

118LEITE, Eduardo de Oliveira - Direito Civil aplicado. Direito de Família, São Paulo: RT, 2004, vol.

5, p. 33 apud GONTIJO, Juliana, op. cit., p. 41.

119GONTIJO, Juliana, op.cit., p. 39. 120 Idem, p.41.

Já Caio Mário da Silva Pereira e Sílvio de Salvo Venosa a ele atribuem a condição de microssistema jurídico, integrante do denominado direito social, resultando como característica o seu caráter dinâmico, personalíssimo e de interesse público, com o predomínio de direitos imprescritíveis121.

O aspecto funcional e instrumental da família, fruto da vontade constituinte, torna-se vetor interpretativo de toda a legislação infraconstitucional. O respeito à individualidade dos seus integrantes, a ascendência dos vínculos afetivos, independentemente do casamento ou da consanguinidade, e o advento da socioafetividade, como qualidade pública da filiação, passam a inspirar a hermenêutica das relações de família no país.

Nesse cenário, Maria Berenice Dias122 define família como um agrupamento informal, constituído espontaneamente no meio social e estruturado através do direito. Como construção cultural, que se modifica conforme a alteração dos fatos da vida, cada integrante assume o seu papel por disposição psíquica, independentemente da referência biológica. Contemplando variados modelos de formação familiar, surge a expressão Direito das Famílias, amplamente popularizada pela doutrina brasileira.