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3 MARTIN BUBER E A EDUCAÇÃO

3.5 A EDUCAÇÃO DO CARÁTER COMO FUNDAMENTO PARA A

DE UMA COMUNIDADE AUTÊNTICA

A unidade não é uma qualidade, mas uma tarefa do mundo (BUBER apud FRIEDMAN, 1993, p. 86).

As reflexões sobre o caráter do homem e a comunidade já foram abordadas na revisão da literatura de forma a contemplar as questões mais gerais presentes no pensamento educacional de Buber. Porém, compreendemos que esses elementos merecem uma abordagem mais detalhada, principalmente por condensarem, ao mesmo tempo, a realização existencial do homem e a redenção do mundo.

O entendimento que Buber tem desses elementos, à luz da Educação, denota que é fundamental abordar o educando não somente em suas características e potencialidades, mas principalmente a partir do elo existente entre quem ele é e suas ações nesse mundo. Esse elo é justamente o caráter da pessoa humana. Buber (1961) remonta à etimologia da palavra caráter – que, no grego, significa impressão – para fazer-nos ter uma ideia de que esse conceito pode ser entendido a partir da imagem e da função de um carimbo: imprimir, marcar, gravar algo em uma superfície.

A palavra grega caráter significa impressão. O vínculo especial entre o ser do homem e sua aparência, a conexão especial entre a unidade do que ele é e a sequência de suas ações e atitudes está impressa em sua substância ainda plástica. Quem imprime? Tudo: a natureza e o contexto social, a casa e a rua, a linguagem e o costume, o mundo da história e o mundo das notícias diárias sob a forma de rumores, de transmissão e jornal, música e ciência técnica, jogo e sonho – tudo junto. Muitos desses fatores exercem sua influência estimulando o acordo, a imitação, o desejo, o esforço; outros despertando questões, dúvidas, aversão, resistência. O caráter é formado pela interpenetração de todas essas influências multifacetadas e opostas. E, no entanto, entre essa infinidade de forças formadoras, o educador é apenas um elemento entre outros, mas distinto de todos eles por sua

vontade de participar da impressão do caráter e pela consciência de que representa,

aos olhos da pessoa que cresce, certa seleção do que é, a seleção do que é "certo", do que deveria ser. É nesta vontade e nesta consciência que sua vocação enquanto educadora encontra sua expressão fundamental (BUBER, 1961, p. 106, grifos do autor, tradução nossa45).

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“The Greek word character means impression. The special link between man’s being and his appearance, the special connexion between the unity of what he is and the sequence of his actions and attitudes is impressed on his still plastic substance. Who does the impressing? Everything does: nature and the social context, the house and the street, language and custom, the world of history and the world of daily news in the form of rumour, of broadcast and newspaper, music and technical science, play and dream — everything together. Many of these factors exert their influence by stimulating agreement, imitation, desire, effort; others by arousing questions, doubts, dislike, resistance. Character is formed by the interpenetration of all those

Segundo essa perspectiva buberiana, a vontade de participar da impressão do caráter de seus educandos, encaminha o educador a considerar a estrutura de um grande caráter46 para entendê-la e, então, voltar seu olhar ao caráter de seus educandos, buscando extrair os valores que “pode tornar credíveis e desejáveis para seus educandos” (BUBER, 1961, p. 115, tradução nossa47). Dessa forma, buscando orientar a formação através dos valores que compõem um grande caráter, Buber demarca, no território educacional, a intersecção viva entre o caminho do homem singular e a redenção do mundo.

Esse grande caráter, para Buber, não consiste num modelo a priori que, uma vez conhecido pelo educador, deve guiar sua ação educacional no sentido de imprimir em seus educandos tal imagem. A questão é um pouco mais delicada porque envolve as múltiplas singularidades existentes. Destacamos uma fala de Buber (1961, p. 113-114, tradução nossa48) que nos ajuda a entender tal multiplicidade, bem como o elemento que as une:

O grande caráter não pode ser concebido como um sistema de máximas nem como um sistema de hábitos. É peculiar dele agir de toda a sua substância. Ou seja, é peculiar para ele reagir de acordo com a singularidade de cada situação que o desafia como uma pessoa ativa. [...] Apesar de todas as semelhanças, todas as situações da vida têm, como um recém nascido, um rosto novo, que nunca existiu antes e nunca mais voltará a existir. [Este rosto novo] Exige de você uma reação que não pode ser preparada de antemão. Não exige nada do passado. Exige presença, responsabilidade; exige você. Eu chamo um grande caráter aquele que, por suas ações e atitudes, satisfaz a reivindicação de situações através de uma profunda prontidão para responder com toda a sua vida, e de tal forma que a soma de suas ações e atitudes expressa ao mesmo tempo a unidade do seu ser em sua disposição para aceitar a responsabilidade.

Para o filósofo e humanista que enfrentou duas guerras mundiais e um conflito entre árabes e judeus na Palestina, destacamos a ênfase que ele atribui à caracterização de um multifarious, opposing influences. And yet, among this infinity of formgiving forces the educator is only one element among innumerable others, but distinct from them all by his will to take part in the stamping of character and by his consciousness that he represents in the eyes of the growing person a certain selection of what is, the selection of what is “right”, of what should be. It is in this will and this consciousness that his vocation as an educator finds its fundamental expression”.

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O grande caráter, para Buber, é aquele que “não nega nenhuma resposta à vida e ao mundo, mas aceita a responsabilidade por tudo aquilo que é essencial que encontra” (BUBER, 1961, p. 116, tradução nossa). (“[...] who denies no answer to life and world, but accepts responsibility for everything essential that he meets”).

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“[...] which he can make credible and desirable to his pupils”.

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“The great character can be conceived neither as a system of maxims nor as a system of habits. It is peculiar to him to act from the whole of his substance. That is, it is peculiar to him to react in accordance with the uniqueness of every situation which challenges him as an active person. […] In spite of all similarities every living situation has, like a newborn child, a new face, that has never been before and will never come again. It demands of you a reaction which cannot be prepared beforehand. It demands nothing of what is past. It demands presence, responsibility; it demands you. I call a great character one who by his actions and attitudes satisfies the claim of situations out of deep readiness to respond with his whole life, and in such a way that the sum of his actions and attitudes expresses at the same time the unity of his being in its willingness to accept responsibility”.

grande caráter: aquele que está pronto, apto a responder às reivindicações da vida com toda a força e profundidade do seu ser, de forma que o conjunto de suas ações denote a unidade de sua existência diante das necessidades do mundo. Reafirmamos: não se trata de uma máxima, de um dogma que deva ser seguido cegamente. O filósofo do diálogo nos afirma, o tempo todo, que somente a pessoa “inteira” – ou seja, consciente de si, do contexto e das várias opções possíveis diante das várias situações da vida – pode responder verdadeiramente às exigências dessas situações. Nessas ocasiões, obedecemos a uma norma genuína, a um comando que parte de nossa essência, de nossa singularidade, visto que

o comando inerente a uma norma genuína nunca se torna uma máxima e a sua realização nunca é um hábito. Qualquer comando que um grande caráter leva para si mesmo no decorrer de seu desenvolvimento não age nele como parte de sua consciência ou como material para construir seus exercícios, mas permanece latente em uma camada básica de sua substância até que se revele a ele em sua forma concreta. O que tem para dizer a ele é revelado sempre que surge uma situação que exige dele uma solução de que até então ele não tinha idéia. Mesmo a norma mais universal às vezes será reconhecida apenas em uma situação muito especial (BUBER, 1961, p. 114, tradução nossa49).

Essa lei, norma genuína ou instância moral que nos encaminha à assunção da responsabilidade em relação ao mundo, apresenta-se a nós em uma situação específica, singular e concreta de nossa existência. Para Buber, essa concepção é importante porque contém em si a imagem do bem; ou seja, segundo o filósofo austríaco, o bem se aproxima de nós como uma direção, como um caminho, como um comando que nos é revelado nessas situações concretas. “Em momentos como esses, o comando nos aborda realmente na segunda pessoa, e o Tu que está nele não é mais ninguém que a própria pessoa” (BUBER, 1961, p. 114, tradução nossa50). A autenticidade e a responsabilidade, portanto, são os elementos que germinam a comunidade pensada por Buber. Assim sendo, sua filosofia defende que a genuína educação do caráter é uma genuína educação para a comunidade (BUBER, 1961).

Podemos entender a ideia de comunidade para Buber se considerarmos a ênfase atribuída por ele à concretude da vida e às horas mortais que nos cabem. Essa concretude da vida, por sua vez, não pode ser concebida de forma fragmentada, parcial ou isolada do restante do mundo. A comunidade, no ponto de vista buberiano, diz respeito à vida concreta de todos os homens que se veem envolvidos de alguma forma (ou pelo cultivo da terra, ou

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“[…] the command inherent in a genuine norm never becomes a maxim and the fulfilment of it never a habit. Any command that a great character takes to himself in the course of his development does not act in him as part of his consciousness or as material for building up his exercises, but remains latent in a basic layer of his substance until it reveals itself to him in a concrete way. What it has to tell him is revealed whenever a situation arises which demands of him a solution of which till then he had perhaps no idea. Even the most universal norm will at times be recognized only in a very special situation”.

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“In moments like these the command addresses us really in the second person, and the Thou in it is no one else but one’s own self”.

pelo trabalho, ou pela ajuda espontânea, ou pelo espírito). Em suas palavras, “a comunidade só pode surgir somente na medida em que houver verdadeira vida entre os homens” (BUBER, 2014, p. 70). Ou seja, somente quando existir a mutualidade no encontro entre os homens que se põem inteiros diante de seus próximos é que a comunidade humana pode surgir.

O fato de nos colocarmos por inteiro diante de nossos próximos – de forma recíproca e imediata – indica que nada da realidade está sendo excluído ou deixado de lado; significa que a comunidade abrange a vida toda, toda a existência natural do homem, não excluindo nada dela. “Ou a comunidade é isso, ou, então, deve-se renunciar à ideia da existência de uma comunidade autêntica” (BUBER, 2014, p. 85).