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2 OS IMBRICAMENTOS ENTRE A VIDA E A OBRA DE MARTIN

2.2 REFLEXÕES GERAIS SOBRE A FILOSOFIA DE BUBER

2.2.4 A honestidade da pessoa

A resposta que se acende na ‘pequena faísca’ da alma, a resposta que se acende cada vez ao contato da palavra que nos assalta de improviso, nós a chamamos de responsabilidade. Esta responsabilidade, a exercemos em todo o domínio da vida a nós concedida, que nos é confiada, da qual podemos responder verdadeiramente, quer dizer, com a qual temos e mantemos relações que possam ser consideradas – em toda nossa insuficiência – como uma resposta honesta (BUBER, 2014, p. 84).

Tendo abordado a singularidade humana em sua diversidade e em sua importância para o mundo, consideramos relevante abordar outra característica marcante do pensamento de Buber: a honestidade de cada pessoa. No pensamento desse filósofo, “devemos [...] libertar o conceito da honestidade do frágil tom de prédica moral que a ele aderiu e fazer com que ele entre de novo em consonância com o conceito da retidão” (BUBER, 2014, p. 143). Isso quer dizer que falar em honestidade (retidão) significa resgatar o sentido de que cada existência deve reconhecer, respeitar e assumir sua essência própria, sem desvios. Honestidade que, para o ser relacional, implica estar inteiro nos encontros que estabelece, agir de acordo com a sua natureza mais íntima.

Pensando na concretude cotidiana de nossa existência, significa que, na imediatez de cada encontro, não devemos permitir que nenhuma aparência se interponha entre quem somos e aquele ser ou coisa com os quais entramos em relação. Ou seja, o pensamento buberiano nos afirma que é importante nos manter honestos à nossa essência, mesmo que isso indique uma rejeição por parte dos outros. Buber não situa a importância do encontro humano na aceitação superficial das partes ou na falsificação de uma existência em nome de um possível acolhimento; é somente na integridade dos seres que entram em relação que o inter-humano31 conhece a sua devida grandeza (BUBER, 2014).

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“Por esfera do inter-humano entendo apenas os acontecimentos atuais entre homens, dêem-se em mutualidade ou seja, de tal natureza que, completando-se, possam atingir diretamente a mutualidade; pois a participação dos dois parceiros é, por princípio, indispensável. A esfera do inter-humano é aquela do face a face, do um-ao-outro; é o seu desdobramento que chamamos de dialógico” (BUBER, 2014, p. 138).

Qualquer que seja em outros campos o sentido da palavra “verdade”, no campo do inter-humano ela significa que os homens se comunicam um-com-o-outro tal como são. Não importa que um diga ao outro tudo que lhe ocorre mas importa unicamente que ele não permita que entre ele e o outro se introduza sub-repticiamente alguma aparência. Não importa que um “se abandone” perante o outro, mas importa que ele permita ao homem com o qual se comunica de participar do seu ser. É a autenticidade do inter-humano que importa; onde ela não existe, o humano também não pode ser autêntico (BUBER, 2014, p. 143).

Consciente das armadilhas que as nossas emoções nos apresentam em diferentes situações de exposição diante do outro e das pressões sociais que quase nos modelam o percurso existencial, Buber insiste que persistir no caminho próprio (ser honesto) é a verdadeira natureza humana. “Não é fácil fazer-se confirmar no seu Ser pelos outros; aí a aparência oferece a sua ajuda. A ela ceder é a verdadeira covardia do homem; resistir, sua verdadeira coragem” (BUBER, 2014, p. 144).

Não é preciso buscar muito na memória para pensarmos nas diversas situações em que calamos nossa voz interior para “atravessarmos” determinadas situações. Por exemplo, quantas vezes silenciamos para mantermos o nosso emprego? Outras quantas para não criarmos certo mal estar ou atrito com um ente familiar? Além dessas situações corriqueiras, podemos pensar em situações mais delicadas, nas quais nosso caminho próprio nos indica uma direção diferente daquela que um grupo hegemônico e dogmático indica. Nessas situações, sentimo-nos ameaçados em nossas dimensões física, mental e emocional. A filosofia buberiana, mais uma vez, nos lembra que o caminho para a concretização de um mundo melhor passa pela contribuição de nossa singularidade.

Buber (2011) afirma que um passo fundamental nessa direção começa na reflexão sobre si mesmo, na caminhada a partir do que nos é próprio. Em suas palavras, “Qualquer outra atitude me desvia do meu começo, enfraquece minha iniciativa, frustra todo o empreendimento audaz e poderoso. O ponto arquimediano no qual posso movimentar o mundo a partir do meu lugar é minha própria transformação” (BUBER, 2011, p. 32).

Tendo em vista a importância de nossa singularidade e das armadilhas que encontramos no caminho, as quais nos desviam dele, Buber (2011, p. 33) retoma um ensinamento chassídico para refletir que a origem de “todos os conflitos entre mim e os que me rodeiam é eu não dizer o que penso e não fazer o que digo”. O filósofo do diálogo retoma o ensinamento do Baal Schem para nos fazer entender que a honestidade é importante, uma vez que se caracteriza como uma profunda coerência e harmonia entre nossos pensamentos, nossas palavras e nossas ações.

Como se trata de uma teoria que pensa o homem na concretude existencial de cada hora mortal, precisamos entender que essas questões – da singularidade e da honestidade – precisam ser compreendidas pelo ser humano, mas, também, precisam ser assumidas existencialmente. É necessário encontrar, portanto, “o ‘eu’ profundo da pessoa que vive numa relação com o mundo” (BUBER, 2011, p. 34) e dirigir a força de nossos sentimentos para essa essência singular e própria, para o que se nos apresenta como primordial, como absoluto em cada situação, a cada momento.

Buber reconhece que essa é uma tarefa difícil e que, em certa medida, se apresenta como contrária aos hábitos e costumes que estabelecemos em nossa coletividade. Porém, ele nos diz que a luta para nos encontrarmos, para encontrarmos a confiança no Ser nunca é em vão. “Às vezes ele precisa pagar caro pela vida a partir do Ser, mas o preço pago nunca é demasiadamente alto” (BUBER, 2014, p. 144).

Essa luta – aparentemente individual – tem relação direta com o mundo e os demais seres, uma vez que a chance de realização da humanidade reside na diversidade de singularidades humanas, em suas “propriedades distintas e tendências múltiplas” (RÖHR, 2001, p. 5). O que nos cabe, por fim, é ouvir a palavra que nos é dirigida cotidianamente e respondê-la de acordo com as profundezas de nosso ser, não permitindo que ninguém interfira nem nos influencie nessa relação (BUBER, 2014).