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3 MARTIN BUBER E A EDUCAÇÃO

3.1 MODELOS PEDAGÓGICOS EXISTENTES

Abordar a temática da relação pedagógica à luz desses elementos tão sutis da existência humana demanda uma aproximação com a concretude educacional, na qual essas relações se fazem presentes. Trafegar entre as reflexões teóricas e suas consequências práticas exige uma maior elucidação do fenômeno da relação pedagógica em si e de suas características. Para tanto, achamos pertinente refletir sobre alguns modelos pedagógicos derivados das abordagens pedagógicas que apresentaremos neste estudo.

Entendemos que as diferentes abordagens pedagógicas existentes são edificadas a partir de modelos pedagógicos ou, de uma forma mais simples, a partir de imagens que representam/retratam a ação pedagógica. Cada concepção, imagem ou modelo pedagógico contém em si os pressupostos humanos, educacionais e pedagógicos de sua respectiva abordagem. Aproximarmo-nos desses diferentes tipos nos proporcionou um conhecimento mais amplo para que pudéssemos compreender os pressupostos da filosofia buberiana que se direcionam à Educação.

Intencionamos, assim, interpretar os modelos pedagógicos através de recortes da prática pedagógica, numa tentativa de aproximar teoria e prática. A cautela com que abordamos esses modelos pedagógicos nos conduziu a uma noção mais geral e resumida deles. Assim, ao invés de rotularmos os modelos pedagógicos existentes para, então, tentarmos rotular um modelo pedagógico buberiano (ou encaixá-lo em algum rótulo já existente), realizamos uma aproximação hermenêutica do que alguns teóricos entendem sobre as relações pedagógicas a fim de desvelarmos os horizontes de entendimento de Buber acerca do referido tema. É oportuno reafirmar que nossa intenção maior parte de um elemento característico da filosofia buberiana: apontar uma realidade pouco notada e não transmitir ensinamentos.

Entendemos que o termo “modelo” – na expressão “modelos pedagógicos” – se refere a um esquema teórico que serve de imagem, forma ou padrão a ser imitado, ou como fonte de inspiração. O termo “modelo” demanda um adjetivo que complemente o seu sentido, o qual, em nosso caso, é “pedagógico”. Passamos à explanação do que entendemos por modelos pedagógicos.

De forma sucinta, um modelo pedagógico corresponde a uma imagem, uma forma ou um padrão que sintetiza um entendimento teórico sobre a Pedagogia e que serve como fonte de inspiração para a prática pedagógica. A partir desse modelo, o educador guiará sua ação e, assim, caracterizará de forma específica a relação pedagógica estabelecida com seu educando.

Nesse sentido, dois modelos se destacam na tradição pedagógica: o modelo pedagógico do artesão e o modelo pedagógico do jardineiro (cf. FREITAS, 2008). Em seu estudo sobre a polêmica “Ciência ou Ciências da Educação”, Freitas (2008) se baseou no filósofo e pedagogo Otto Friedrich Bollnow para sintetizar as teorias pedagógicas subjacentes a essas duas concepções.

Basicamente, o modelo do artesão apresenta “características semelhantes ao processo de produção aplicada na Educação. O educando é objeto de modificação feita de acordo com metas pré-estabelecidas e métodos fixados e testados” (FREITAS, 2008, p. 19). A imagem do educador, portanto, é semelhante a do artesão que busca moldar sua “matéria bruta”, transformando-a em obra-prima. A singularidade do educando, nesse modelo, é pouco considerada.

Encontramos na obra de Fernando Becker32 um ponto de convergência que resume epistemologicamente esse modelo. Entendemos que o modelo do artesão corresponde, na

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classificação feita por Becker, ao modelo pedagógico “diretivo”. Esse modelo, segundo Becker (2001), baseia-se na Pedagogia diretiva e corresponde ao modelo tradicional de ensino/aprendizagem, o qual está baseado na epistemologia empirista, que acredita que tanto o conhecimento (conteúdo) quanto a capacidade de conhecer (estrutura) do indivíduo são determinados pelo meio social ou físico. Na prática, essa epistemologia defende que o indivíduo, ao nascer, é uma tábula rasa e que cabe ao professor transmitir os conhecimentos existentes. A ação desse professor – o detentor do conhecimento, da verdade a ser transmitida – é o fator determinante dessa relação pedagógica que “é legitimada, ou fundada teoricamente, por uma epistemologia, segundo a qual o sujeito é totalmente determinado pelo mundo do objeto ou pelos meios físico e social” (BECKER, 2001, p. 17).

Já o modelo do jardineiro, classificação encontrada em Bollnow, pode ser entendido a partir da imagem do ofício do jardineiro: plantar as sementes, acompanhar seus crescimentos e cuidar para que as pragas e os predadores não as destruam (FREITAS, 2008). Essa visão, aplicada à Educação, implica em considerar o educando como portador de todas as potencialidades que só precisam de “condições externas favoráveis para se desenvolver” (FREITAS, 2008, p. 19).

Entendemos que esse modelo corresponde, na classificação de Becker, ao modelo pedagógico “não-diretivo”. Esse modelo baseia-se na Pedagogia não-diretiva e deve ser entendido, basicamente, em sua representação de reação ao modelo “diretivo”. A epistemologia que está por trás dessa Pedagogia não-diretiva é o apriorismo que, contrariamente ao empirismo, defende que tanto o conhecimento (conteúdo) quanto a capacidade de conhecer (estrutura) do ser humano já estão presentes em sua bagagem hereditária, já estão programados em sua herança genética (BECKER, 2001). O resultado prático é que o aluno – e não mais o professor – se torna o fator determinante da relação pedagógica. A função do professor, no modelo não-diretivo, é interferir o menos possível. Como afirma Becker (2001, p. 19), “o professor é um auxiliar do aluno, um facilitador (Carl Rogers). O aluno já traz um saber que ele precisa, apenas, trazer à consciência, organizar, ou, ainda, rechear de conteúdo. O professor deve interferir o mínimo possível”.

Também existem outros modelos na literatura. Alguns mesclam as características desses dois modelos fundamentais, enquanto outros priorizam elementos diferentes na relação pedagógica. Pensando nessa diversidade, achamos importante apresentar mais alguns modelos pedagógicos para termos um melhor embasamento sobre o panorama mais geral que cerca essa temática.

Paulo Freire (1987) nos aponta outros dois modelos pedagógicos: o do professor bancário e o do professor revolucionário. Esses modelos encontram sustentação na compreensão política que Freire tem do mundo e da realidade. Enxergando a injustiça que permeia a realidade histórica, na qual os opressores dominam os oprimidos, ele denuncia o modelo bancário como sistema que permite a perpetuação da opressão. O modelo revolucionário, por outro lado, representa as formas de transformação dessa realidade.

Basicamente, o modelo pedagógico bancário entende que os educandos são pessoas ignorantes que, por sua ignorância, constituem o lado patológico de uma sociedade sã. A patologia é simples: a ausência de conhecimentos, a ignorância. A solução para isso, então, está representada na figura do professor bancário que, por ser considerado detentor de um vasto conhecimento validado socialmente, deve alienar a ignorância de seus educandos (FREIRE, 1987). À semelhança do modelo diretivo, podemos entender essa ignorância através da representação da tábula rasa. Na percepção de Freire, essa característica separa verticalmente os sábios e os ignorantes – nas figuras do professor e do aluno –, estabelecendo os opressores e os oprimidos.

As mazelas da sociedade não são o foco do trabalho pedagógico no modelo bancário, mas sim, a mentalidade marginal daqueles que precisam ser incluídos, integrados, incorporados à sociedade sã. A relação pedagógica, então, assume a característica da relação bancária entre um depositante e sua conta: o professor bancário deposita os conhecimentos que tem, enquanto os educandos vão recebendo esses depósitos e montando seus patrimônios cognitivos, processo fundamental para que sejam integrados. Através de um olhar crítico, Freire (1987) problematiza que esse modelo forma seres autômatos, ou seja, pessoas com comportamentos mecanizados, habilitadas à adaptação aos moldes exigidos pela sociedade. Essa é a forma pela qual os marginalizados poderiam, então, “evoluir” e ser incluídos.

Não precisamos discorrer muito sobre as desigualdades sociais para entender que suas origens vão muito além da não adequação dos oprimidos à lógica dominante. A intenção de Freire, com isso, é denunciar os absurdos sociais que engendram as realidades díspares que separam os poucos que dominam boa parte da riqueza e dos meios de produção, e os muitos que lutam por sobrevivência.

Diante dessa realidade injusta, e desse modelo que habita o imaginário de alguns educadores na atualidade, Freire defende o modelo pedagógico revolucionário (ou problematizador e libertador). Esse modelo visa à transformação social, focando a mudança da realidade injusta da qual fazem parte educadores e educandos. É importante enfatizar que os educandos – os oprimidos – desconhecem sua própria condição de oprimidos e os

mecanismos sociais que estão por trás dessa sociedade injusta e opressora. Dessa forma, a educação é entendida como instrumento de conscientização e de libertação da humanidade. O educador revolucionário, portanto, tem o papel de acelerar, nos educandos oprimidos, a tomada de consciência dessa realidade injusta (FREIRE, 1987).

Uma distinção importante entre esses modelos pedagógicos é que o modelo bancário enfatiza a permanência, o lado estático, a passividade dos homens, a aceitação da realidade exterior. Já o modelo revolucionário enfatiza o dinamismo da realidade, o inacabamento do ser humano, a evolução, a transformação. Como consequência pedagógica direta dessas concepções, teremos, no modelo bancário, uma relação mais vertical, rígida, com pouca interação pessoal, na qual os papéis dos professores e dos alunos já estão previamente estabelecidos. O foco dessa interação, como vimos, é a adaptação das diferentes singularidades a uma realidade externa.

Já no modelo revolucionário, teremos uma relação pedagógica basicamente marcada pelo aspecto político, tendo em vista a luta pela transformação da realidade opressora. Detalhando mais esse modelo, professores e alunos estabelecem uma relação mais próxima, mais fluida, mais respeitosa. As diferentes singularidades que se apresentam aos educadores revolucionários são, antes, um espaço primário de encontro com os educandos, a partir do qual poderão se estabelecer diálogos que conduzirão ambos ao caminho de suas formações e à transformação do mundo.

Além desses modelos encontrados em Paulo Freire, conhecemos outra perspectiva teórica que nos apontou outros dois modelos pedagógicos distintos: o do professor alquimista e o do professor viajante. Esses dois modelos se baseiam em duas imagens distintas da docência para, então, caracterizar a respectiva relação pedagógica que deriva de cada uma delas.

Para compreendermos o modelo pedagógico do professor alquimista, precisamos entender o papel que a Modernidade atribuiu à Educação: guiar os caminhos que a sociedade escolheu. Essa tarefa sócio-educacional reforça o discurso de que a Educação deve voltar-se às temáticas da consciência, da emancipação humana e da transformação social (TREVISAN et al., 2013). Assim, o professor alquimista é entendido como o indivíduo que incorpora a habilidade de “purificação” alquímica, ou seja, a habilidade de remediar os males físicos e morais da sociedade. Nessa concepção,

o docente exerce o papel de detentor de um conhecimento puro, capaz de depurar qualquer outro saber que o aluno traga de seu mundo particular. Numa relação quase asséptica, ele prende-se ao plano cognitivo, buscando realizar uma síntese da aprendizagem, pois acredita que somente assim formará alunos mais capazes para viver e dar conta das demandas sociais (TREVISAN et al., 2013, p. 126-127).

O foco principal desse modelo – sua meta educacional – é a transformação do educando, o que conduz o educador a buscar incansavelmente essa transmutação. Tal qual o alquimista que busca transformar quimicamente elementos pobres em elementos ricos, o professor alquimista encara seus educandos como seres cognitivamente pobres, carentes de consciência crítica; e, por isso, eles só conseguem “transcender à maioridade esclarecida pela força alquímica do professor [...]” (TREVISAN et al., 2013, p. 128).

Esse modelo é focado exclusivamente no educador e em sua capacidade e responsabilidade de transformar seus educandos. Percebemos que a relação pedagógica que deriva desse modelo é bastante violenta do ponto de vista simbólico, uma vez que os professores são considerados seres superiores que devem “purificar” as experiências que não contribuam para o desenvolvimento do que o professor entende como apropriado para os alunos. Além disso, denota um aspecto autoritário e rígido, lembrando, em alguns aspectos, o modelo do artesão (ou diretivo), embora haja diferenças.

Para compreendermos o modelo pedagógico do professor viajante, por outro lado, precisamos, primeiramente, compreender uma distinção antropossociológica entre o turista e o viajante. Segundo Trevisan et al. (2013, p. 131), o turista é aquele que viaja para se divertir e consumir; já o viajante é aquele que viaja para “se apropriar, conhecer e entender a cultura do lugar por que passa”. Esse maior envolvimento do viajante com a cultura do lugar visitado permite a ele construir novas experiências, atribuindo significado ao conhecimento adquirido através do filtro da cultura com a qual está envolvido. Nesses diferentes locais que visita, o viajante tem experiências diversas de estranhamento com os diferentes ethos locais, o que lhe proporciona a percepção de “quão heterogêneas podem ser as subjetividades e perspectivas dos homens nos grupos sociais” (TREVISAN et al., 2013, p. 132).

Dessa maneira, esse modelo entende que cabe ao professor

contribuir com propostas de itinerários que ampliem cada vez mais as

possibilidades de interpretação e ação de seus alunos. Esse processo de aprendizagem ultrapassa as barreiras da escola, bem como a finalidade educativa (intencional), abrangendo a compreensão da cultura em sua dimensão (auto)formativa (TREVISAN et al., 2013, p. 134-135, grifo nosso).

Ou seja, cabe ao professor viajante propor trajetos a serem percorridos pelos educandos no sentido de ampliar suas compreensões do mundo, na perspectiva de suas (auto) formações. O mundo, e não apenas a escola, é o lócus da atividade pedagógica do professor viajante.

Outra característica importante a ser salientada, nesse modelo, diz respeito ao conhecimento dos educandos, que se constrói de forma interativa na relação entre professores e alunos, tanto numa relação pedagógica mais estrita, quanto na relação deles com o mundo. O itinerário do professor viajante deve instigar o aluno a enxergar com os próprios olhos, a perceber o que ele enxerga no mundo e a perceber como inventar novas formas de enxergar o mundo (TREVISAN et al., 2013). Nessa relação pedagógica, professores e alunos “são aprendizes [...] que conduzem seus processos de (auto) aprendizagem com seus próprios olhares, curiosidades, experiências” (TREVISAN et al., 2013, p. 135).

Além desses modelos pedagógicos apresentados, existem alguns outros. Acreditamos, porém, que esse breve panorama dos modelos pedagógicos já é suficiente para que possamos nos aproximar do pensamento buberiano sobre a temática da relação pedagógica. Nosso intuito é compreendermos até que ponto o modelo buberiano se aproxima ou se distancia desses modelos; um esforço para caracterizar uma imagem do modelo pedagógico subjacente à filosofia buberiana.

3.2 A RELAÇÃO PEDAGÓGICA NO PENSAMENTO BUBERIANO: os sete elementos