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3 MARTIN BUBER E A EDUCAÇÃO

3.3 O PROCESSO EDUCACIONAL NA VISÃO BUBERIANA

O verdadeiro trabalho formativo é conduzir o homem a uma vivência autêntica, que o possibilite a interligação com o mundo, face ao qual se compreende a defesa incondicional da solidariedade, do vínculo entre os homens, através de uma vida na comunidade (SANTIAGO, 2008, p. 248).

Na revisão da literatura realizada, foram abordados vários elementos da concepção educacional de Buber. No presente tópico, porém, intencionamos acrescentar algumas considerações que complementam essa noção. Começamos pela ênfase que Buber atribui à interdependência entre a existência de um homem específico e as existências dos demais homens, seres vivos e coisas que convivem com ele. Dessa forma, abordar a educação, sob o ponto de vista buberiano, significa ter sempre em vista a intersecção entre a formação do homem singular e o cuidado com o mundo no qual ele está inserido. Este é o papel da Educação em Buber: cuidar do embrião da vida que habita em latência nos encontros cotidianos.

Outro ponto fundamental pouco abordado pelos estudiosos buberianos diz respeito à complementaridade entre a liberdade e a autoridade na educação. Em seus escritos, Buber enfatizou a importância da liberdade no processo educacional, representada pelo florescer e desabrochar dos instintos humanos que pulsam na criança, no sentido de abrir espaço para que a “polifonia de vozes” (BUBER, 1982) existente em cada um de nós se manifeste. Essa liberdade deve ser compreendida à luz da singularidade de cada pessoa, sendo esta capaz de inaugurar algo que até então não existia. Por isso, tal liberdade é fundamental ao trabalho educativo. Isolada, porém, não é suficiente para direcionar os educandos à sua própria formação, ao caminho em que desenvolvem suas singularidades e se aproximam de suas essências. É aqui que a surge a importância da autoridade na educação: é natural e necessário

– ao processo educativo assim entendido – que algo ou alguém indique ao educando aquilo que lhe favorece ou lhe atrapalha o desenvolvimento.

Explorando essa complementaridade entre liberdade e autoridade na educação, Buber (1982) explica que cada ser humano nasce com as aptidões para conhecer e compreender o mundo; mas, por outro lado, afirma também que o homem é influenciado por elementos da natureza (incluindo o homem e a sociedade). Ou seja, Buber (1982, p. 10) apontou que somos aptos à inserção no mundo e que sofremos a sua influência: “O mundo gera no indivíduo a pessoa. É, pois, o mundo, todo o mundo que nos cerca – natureza e sociedade – quem ‘educa’ o homem, aspirando suas forças e dando-lhe a entender o que se opõe a ele, convidando-o a penetrá-lo”.

Sendo assim, achamos relevante destacar que, às características naturais que se apresentam ao homem em seu desenvolvimento, soma-se o trabalho educativo do mundo que lhe aponta o que é e o que não é mais adequado ao desenvolvimento de sua própria natureza. Consciente da importância desse trabalho educativo, Buber defende que a autoridade do educador deve complementar a liberdade do educando ao favorecer a atuação das forças atualizadoras da existência deste e ao combater a atuação das forças contrárias.

Seja como for, isso nos leva a refletir sobre outra característica pedagógica importante: o início do processo educacional está situado dentro do ser humano, do educando. Seja pelo desabrochar e desenvolvimento da polifonia de vozes que nos habita (ou de nossas múltiplas dimensões constituintes), seja pela indicação dos elementos que contribuem e dos que não contribuem para o nosso desenvolvimento, a Educação – do ponto de vista buberiano – começa a partir de nós mesmos, de nosso interior, e direciona-se ao mundo.

Dessa maneira, ressaltamos que, numa direção oposta às tendências educacionais de sua época, Buber se preocupou em valorizar o ponto de partida da formação humana, e não sua finalidade43. Ou seja, para ele, o foco do trabalho pedagógico não se concentrava num resultado a ser alcançado, mas, sim, numa realidade original que nos guia e nos acompanha em nosso desenvolvimento. É importante dizer que essa realidade original, pouco abordada na literatura pesquisada, encontra-se dentro de cada um de nós; portanto, não se trata de um conteúdo educacional que pode ser “curricularizado” através de conhecimentos e técnicas aplicáveis a todos sem distinção.

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O olhar de Buber para a formação humana buscava sempre a autenticidade do homem. Essa concepção, como vimos, deriva da influência chassídica, uma vez que, segundo o chassidismo, todo homem possui uma especial tarefa do Ser que somente ele pode cumprir (BUBER, 2014).

Ainda sobre a importância dessa realidade original, destacamos um trecho da conferência proferida por Buber, e ROHR, F.. Formação e Visão de Mundo - Reflexões pedagógicas de Martin Buber na presença do Nazismo p. 7-31. Studium (Instituto Salesiano de Filosofia), v. 12, p. 7-31, 2010. m 1935, sobre o tema “Formação e Visão de Mundo”, na qual ele argumenta que

De onde alguém pode partir, de fato – e não meramente convencendo que o faça, mas realmente tomando como ponto de partida daí – isso tem que ser uma outra coisa que um ponto de vista ou, se assim quiser, um lugar próprio. Tem que ser o ponto verdadeiro e original (Urstand): uma realidade original que não me dispensa no caminho em direção à meta, mas que me guia, de acordo com a minha própria escolha, para que não me engane em relação à meta e que assim me perca; uma realidade original que me acompanha. Uma realidade original que tem me gerado e que se dispõe, quando me entrego a ela, a me sustentar, a me proteger, a me formar (BUBER apud RÖHR, 2010, p. 3, grifo nosso).

Essa realidade original não é apenas o ponto de partida da caminhada humana, mas é, ao mesmo tempo, a base que a orienta (RÖHR, 2013a; 2014; VON ZUBEN, 2004). Em um sentido muito íntimo ao dessa argumentação buberiana, Policarpo Júnior (2010, p. 84) – teórico que também concebe a Educação como processo de formação humana – afirma que “cada um de nós tem um modo específico e sagrado de estar no mundo que precisa ser descoberto e exercido pessoalmente. Aproximar-se de, reconhecer e confiar em tal dimensão é o propósito de nossa vida”.

Outro aspecto pouco abordado nos estudos pesquisados foi a compreensão buberiana que entende a formação humana como um processo de atualização, no qual o homem atualiza- se na medida em que se aproxima de sua essência, de sua realidade original, de tudo aquilo que lhe é fundamental em cada situação concreta. As consequências pedagógicas que depreendemos do imbricamento dessas compreensões (a realidade original e o processo de atualização do homem) nos encaminham à seguinte reflexão: tendo em vista essa realidade original que nos guia – que é o ponto de partida do processo educacional (ou de atualização) do homem –, cabe ao educador conhecer as duas forças (atualizadoras e contrárias) presentes nesse processo e agir a partir delas, favorecendo aquelas que nos encaminham à nossa singularidade e combatendo as que nos desviam de nosso caminho próprio.

Compreendida a importância dessa realidade original no processo de atualização pelo qual nos aproximamos de nós mesmos, passamos às reflexões complementares sobre o papel que cabe ao educador.