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2 OS IMBRICAMENTOS ENTRE A VIDA E A OBRA DE MARTIN

2.2 REFLEXÕES GERAIS SOBRE A FILOSOFIA DE BUBER

2.2.5 O tornar-se mais humano: uma aproximação a si mesmo, à sua

Só pode estar preparado para encontrar o outro aquele que ocupa o terreno de sua singularidade e o aprofunda com cada encontro (FRIEDMAN, 1993, p. 63).

Para concluir a apresentação dos elementos teóricos que destacamos na filosofia dialógica de Buber, apresentamos aquele que se refere à essência humana, à compreensão de como nos tornamos mais humanos. Já vimos que, na perspectiva de Röhr, o simples nascimento e a maturação biológica não garantem a humanização do homem: tal processo requer algo a mais.

Influenciado pela tradição judaica, o filósofo do diálogo enxergava o homem como uma criação divina que foi enviada a esse mundo com uma função específica, a qual somente ele pode saber. Nessa concepção, cada individualidade existente deve sua autoria a Deus. Na prática, isso implica dizer que cada ser humano traz algo específico, exclusivo e novo ao mundo. Buber entende que esses aspectos envolvem o ser humano em toda a sua existência, configurando, em seu percurso existencial, uma espécie de chamado ao exercício de sua

singularidade, de sua forma pessoal nesse mundo (BUBER, 2011). Como vimos nos subtópicos anteriores, não se trata de uma condição efetiva a priori, mas de uma potencialidade sempre latente na concretude de sua existência, de um caminho que pode ser encontrado e vivenciado.

Compreendemos que é importante ressaltar uma característica do pensamento buberiano: a íntima relação que ele enxerga entre o mundo no qual vivemos e o mundo divino. Essa ênfase se explica a partir da compreensão de que tal relação entre esses mundos não é concebida sob o viés dos dogmas religiosos ou das visões voltadas para o além-mundo: ela é regida e realizada na concretude de cada hora mortal. Para o chassidismo, os dois mundos são – em sua essência mais profunda – um só; eles apenas se encontram afastados (BUBER, 2011).

É exatamente a partir desse afastamento que podemos compreender a essência humana na perspectiva buberiana: cumprir a tarefa de unir os dois mundos; esse é o motivo de sua existência. Entendemos que a assunção de tal compreensão sobre a natureza humana pode parecer, numa primeira vista, uma compreensão apenas teológica do mundo; mas, enfatizamos que a filosofia buberiana tem um teor antropológico muito forte. A essência religiosa que acompanha seu pensamento é extremamente exigente no que diz respeito à concretude cotidiana que acompanha os seres humanos e suas interrelações. Situar, portanto, o ser humano na concretude complexa de sua existência e de suas interrelações representa o teor antropológico de sua filosofia, elemento que pode ser comprovado quando buscamos suas principais categorias: dialogicidade, imediatez, mutualidade, presença, inclusão, esfera inter- humana.

A unificação dos mundos é melhor entendida quando nos voltamos à realidade apontada por Buber: a tarefa especial do Ser pode ser caracterizada, de um modo geral, na forma de uma vida santa, concretizada exatamente no local onde estamos inseridos; na forma de uma existência voltada para o outro, para o Tu que se faz presente para nós em cada momento de nossa existência – seja uma pessoa, outro ser vivo ou coisa.

Essa foi a exigência ontológica que Buber identificou no mundo e nos apontou através de sua filosofia e vida pessoal: santificar nossas ações cotidianas através da assunção de nossa singularidade. Nela, Deus quer chegar ao nosso mundo, quer fazer-se presente em nosso cotidiano, quer a unificação dos dois mundos; mas quer fazer isso através de sua criação, o homem (BUBER, 2011). Entendemos que essa concepção contém uma força vital e nos devolve ao que, de fato, temos de concreto em nossas vidas: a realidade compartilhada de uma existência que só é possível na mutualidade e na oportunidade diariamente renovada de

escutar quem pede e de respondê-lo, de dirigir-se ao mundo que o cerca e de ver-se acolhido por ele em forma de resposta.

[No ensinamento judaico e, em particular, no chassídico] Acreditamos que exatamente isso é a misericórdia de Deus, que Ele quer ser vencido pelo homem, que Ele, por assim dizer, se coloca na mão do homem. Deus quer chegar ao seu mundo, mas quer fazer isso por meio do homem. Esse é o mistério de nossa existência, a chance sobre-humana do homem. Certa vez, o rabi Mendel de Kozk surpreendeu alguns homens cultos que o visitavam com a pergunta: “Onde mora Deus?”. Eles riram dele: “O que você está falando? O mundo está cheio de seu esplendor!”. Mas ele respondeu à própria pergunta: “Deus mora onde permitimos que entre”. No final, é isso que importa: deixar Deus entrar. Mas só podemos deixá- lo entrar no lugar onde estamos, onde estamos de verdade, lá onde vivemos, onde vivemos uma vida de verdade. Se mantemos um convívio sagrado com nosso pequeno mundo, que nos é familiar, se estamos ajudando, no âmbito da criação na qual vivemos, que a substância sagrada do espírito alcance a completude, então estamos promovendo, no lugar onde vivemos, uma moradia de Deus, estamos permitindo que Ele entre (BUBER, 2011, p. 48-49).

Essa compreensão ontológica mais geral do homem nos encaminha para a sua realidade cotidiana e, consequentemente, para a reflexão sobre a sua formação. É aqui que o debate educacional em Buber começa a assumir seus contornos, uma vez que a tarefa principal de cada ser humano é “a concretização única e específica de suas potencialidades, e não a repetição de algo que um outro, ainda que seja o maior, já tenha feito” (BUBER, 2011, p. 17). É assim que Martin Buber encara a realidade humana: na forma de uma exigência constantemente renovada de encontrar e assumir a si mesmo, em sua essência singular. É dessa forma que sua especial tarefa do Ser pode ser cumprida e os mundos podem se aproximar. Trazemos mais uma citação elucidativa sobre tal afirmação, encontrada nos ensinamentos chassídicos:

Certa vez, o sábio rabi Bunam, idoso e quase cego, disse: “Não quero trocar de lugar com o patriarca Abraão. Qual a vantagem para Deus se o substituto do patriarca Abraão fosse como o cego Bunam e o cego Bunam fosse como Abraão?”. E o mesmo foi dito, com uma ênfase ainda maior, pelo rabi Sussja, ao falar pouco antes da morte: “No próximo mundo, ninguém vai me perguntar: ‘Por que você não foi Moisés?’ Vão me perguntar: ‘Por que você não foi Sussja?’” (BUBER, 2011, p. 17).

Dessa forma, o “humanamente correto é, pois, o serviço do indivíduo que realiza a verdadeira individualidade” (BUBER apud SANTIAGO, 2008, p. 207). O humanamente correto, a essência que nos caracteriza como humanos, reside justamente nessa aproximação e assunção cotidiana de nossa singularidade. É assim que Buber entende que nos tornamos mais humanos. Portanto, algumas questões nos auxiliam a cada momento de nossa existência: como posso ser mais eu mesmo em minha singularidade? O que identifico como primordial nas diversas situações que a vida me proporciona? Qual é a resposta essencial do meu ser ao presente momento/contexto?

Esse processo de tornar-se mais humano – mais próximo à sua própria essência – é denominado por Buber de processo de atualização. Ou seja, por alguns motivos, afastamo-nos de nossa essência singular, mas podemos – e devemos – buscar nos atualizar diante de nós mesmos, atualizar a nossa essência, encontrarmos conosco mesmos, atualizarmo-nos com nossas características pessoais, com o nosso eu profundo (RÖHR, 2001). Independente do quanto um homem esteja distante de si mesmo, ou seja, que viva de acordo com uma aparência ou com os impulsos mais superficiais, Buber (2011) defende que há sempre a possibilidade de que ele seja redimido, que ele encontre o seu caminho próprio. Basta que ele identifique e se comprometa, a cada momento, com aquilo que é mais humano a ser feito. Isso significa corresponder à sua essência mais íntima, concretizar sua existência singular onde quer que se encontre. Resumidamente, esse é o processo de formação humana para Buber. No próximo capítulo, abordamos o seu pensamento educacional e nos aproximamos da relação pedagógica que emerge a partir do imbricamento dos elementos apresentados.