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2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO PENSAMENTO À PRAXIS POLÍTICA

2.2 A EFETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: QUESTÕES HODIERNAS

A superação de um viés racionalista, que serviu como fio condutor do pensamento e do Direito64 desde o século XIX, contraditoriamente, conduziu à negação do próprio homem, ao dissociá-lo dos valores, tornando-o, por outro lado, objeto e fim do Estado como instituição “racional”, portanto supostamente capacitada a guiar os destinos da coletividade.

Como resultado, os direitos humanos foram esvaziados de seu significado e importância, num mundo em que o racionalismo, sob a proposta iluminista, tornou-se a única e mais adequada via para conduzir a humanidade a uma existência plena e feliz.

Todavia, desfez singularmente essa possibilidade, alçando o Estado à condição de ente com o qual a sociedade deve se confundir, porque nele estaria a representação da vontade geral, ou nele se encontrariam os espíritos e valores coletivos superiores e realmente indispensáveis ao avanço da civilização.

A sobreposição da consciência e vontade individual por um poder superior ganhou força indiscutível ao vincular-se à razão, podendo assim mostrar-se apto a conferir um sentido valoroso ao viver de cada indivíduo.

A preocupação com a lógica e a objetividade da perspectiva científica do mundo levou à desconstrução das idéias sobre a necessidade de se considerar a dimensão axiológica ou metafísica da vida. No campo político, legitimaram-se as ações e propostas do Estado, o qual passou a atuar segundo uma racionalidade

64 Faz-se referência ao Direito enquanto produto dos legisladores. Nesse sentido, remete-se aos

comentários de Pontes (2004, p. 53-54): “Direito é aquilo que o Estado estabelece como direito, é o que é a lei, é o que está na Constituição [...] com essa centralização normativa, o direito operou a centralização da racionalidade. A modernidade assenta a sua organização cultural e social na racionalidade do legislador. Quer dizer, os princípios jurídicos, as normas, elas serão o produto da racionalidade do legislador. A lei, na visão dos oitocentistas, é a própria encarnação da razão; a razão, o racional é aquilo que a lei estabelece, aquilo que a lei estabelece é o normativo. Portanto, havia uma triangulação entre razão, normatividade e racionalidade.”

na qual não cabiam mais os valores e as referências da tradição humanista, passando a serem anulados pelos propósitos “superiores” do poder estatal.

Contraditoriamente, como mostra Frankl (1989, p. 45), esse modelo racional de Estado se tornou um devorador de homens e consciências:

Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo- saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente.

É possível antever na recente afirmação de um Direito Internacional dos Direitos Humanos uma reverberação das vozes dissonantes acerca do ente estatal, mesmo no Estado de Direito, como legítimo e exclusivo representante do indivíduo.

Trata-se de uma continuidade de um processo de reflexão e questionamento sobre as bases legais e morais da sociedade contemporânea, o qual pode ser compreendido ao se considerar a sociedade como um sistema complexo, no qual diferentes atores sociais e políticos coexistem, entram em conflito, descobrem vias de consenso ou de afirmação de suas vontades perante os demais. Nessa ótica, a luta pelo reconhecimento e a garantia dos direitos por parte do Estado pode ser considerada um ponto de equilíbrio sistêmico.

Recorrendo à teoria de Luhmann (1983), a democracia pode ser entendida como um sistema capaz de autodefinir-se, em um processo de mudanças no qual ajustes continuados entre os atores no espaço político conduzem a novas possibilidades65, rumo a estruturas menos marcadas pelas divergências e

65 “As expectativas normativas possibilitam, pelo menos em sociedades mais complexas e mais ricas

em alternativas, uma mais acentuada redução da complexidade e da contingência” (LUHMANN, 1983, p. 141).

adaptadas a novas condições definidas dentro do próprio sistema que lhes deu origem:

À idéia tradicional de uma sociedade centrada sobre a política Luhmann contrapõe a idéia de uma sociedade mental, capaz de auto-reflexão constante que visa a assegurar a evolução de sistemas sempre mais inteligentes, isto é, com sempre mais capacidade de selecionar e reduzir complexidades (GIACOMINI, 2005, p. 482). (destaque da autora)

Partindo desse entendimento, o reconhecimento e a garantia dos direitos humanos derivam de uma capacidade de mudança presente nas sociedades democráticas. As condições que operam internamente no sistema democrático atuam como mobilizadoras de formas de legitimação da vontade social, delas resultando a maior funcionalidade do sistema democrático.

No retrospecto da emergência das sociedades democráticas, é possível distinguir uma pretensão ética na política, preocupada com a superação da perspectiva individualista, entendida como nefasta e contrária à igualdade de oportunidades, da qual emergiram os direitos de segunda e terceira geração.

Tratando da relação entre democracia e individualidade, entende Touraine (2009, p. 358) que:

Se a democracia é possível, é porque os conflitos sociais opõem atores que, ao mesmo tempo que se combatem, referem-se aos mesmos valores, aos quais eles procuram dar formas sociais opostas. Em lugar de se entregar a um racionalismo generalizado, tentativa para retornar ao reino da razão objetiva e estender o espírito das luzes, é preciso voltar-se para o sujeito como princípio fundador da cidadania e definir os conflitos sociais como um debate sobre o Sujeito – aposta cultural central – entre os atores sociais opostos e complementares.

As críticas ao capitalismo, no que diz respeito à desqualificação do indivíduo, não são recentes, mas se inserem nesse processo histórico, do qual emergiram a democracia moderna e a Era dos Direitos.

Não foi algo isento de ilusões, anseios e decepções, vivenciando-se experiências inéditas, caminhar este que muitas vezes convergiu para rotas sem

saída, tornando inconclusivos os propósitos mobilizadores dos embates que visavam a busca de um mundo melhor.

Essa é a questão que pode ser discernida no processo histórico da evolução do pensamento, resultando em variados modelos políticos e sociais: a inspiração que se encontra no cerne da trajetória das idéias, em todas as suas variantes, está na dificuldade de conciliar o propósito do progresso material de cada sujeito, e a igualdade como aspiração maior coletivamente construída.

Morrison (2006, p. 533) sintetiza a ambigüidade desses dois objetivos, materializada em diversificada produção teórica expressando os mais variados pontos de vista, na busca de uma resposta satisfatória ao problema:

A modernidade envolve a ideia de que o homem pode assumir o controle dos processos do mundo para criar as condições favoráveis a uma sociedade progressista e feliz neste planeta. Uma questão da qual temos nos ocupado é: ‘o que vai guiar o homem nesse projeto quando as bases que forneceram a síntese medieval, isto é, a religião e o costume, foram descartadas?’ ‘O que é que torna o empreendimento individual compatível com um empreendimento geral?’ Vimos que Weber era extremamente pessimista quanto a isso, e apresentamos a resposta do positivismo jurídico – a saber, o utilitarismo -, bem como seus problemas. [...] a busca de um princípio condutor de justiça social que substitua o utilitarismo (perseguido de diversas maneiras nas obras de Marx, John Stuart Mill, John Rawls e Robert Nozick, por exemplo), não resultou em nenhum consenso estável.

Nos tempos atuais, a idéia de um mundo transcendendo as desigualdades, por intermédio de um compromisso moral comum, contrapõe-se firmemente ao liberalismo e ao individualismo, cujos resultados, cada vez mais questionados, parecem evidenciar que a sociedade chegou numa encruzilhada.

A questão é qual o caminho a seguir. Pela ótica de Habermas (2002), uma aproximação entre as diferenças é possível a partir do adensamento do processo de comunicação no interior da sociedade democrática, adquirindo importância as relações intersubjetivas para a formação de uma via consensual ou crescente aproximação e interface de vontades e pensamentos.

Por outro lado, entende Luhmann (2005) que as sociedades mais complexas tornam mais difícil a manutenção da democracia. No espaço plural e multivariado da sociedade pós-moderna, o que se verifica é um campo de tensões, no qual se entrechocam normas e valores pertinentes à representatividade política; interpretações da realidade transformadas em perspectivas político-ideológicas; questões controversas quanto à maneira de atingir a legitimidade das propostas e modos de operar do Estado, entre outros aspectos cruciais do nosso tempo.

Contradições levantadas por Touraine (2009, p. 353) quando fala da relação entre a consolidação da democracia e modernidade, não necessariamente convergindo para uma adequada solução dos problemas, mas, pelo contrário, contribuindo para seu acirramento, em diferenciações mais agudas e evidentes:

[...] esta identificação com a sociedade liberal, isto é, com uma sociedade de desenvolvimento endógeno onde a ação modernizadora confunde-se com o exercício da própria modernidade, com a aplicação do pensamento racional à vida social, através da maior diferenciação possível dos subsistemas – econômico, político, judiciário, religioso, cultural – não traz nenhuma resposta à dominação da vida política pelos donos da sociedade civil, notadamente pelos donos do dinheiro, e não impede a sociedade liberal de ser, ao mesmo tempo que uma sociedade de integração, uma sociedade de exclusão.

Situações contraproducentes no espaço democrático não significam, necessariamente, a inviabilidade ou a recusa da validade e importância da democracia, como espaço indispensável tanto para a garantia de direitos, como para o exercício da cidadania, elo inafastável entre o sujeito e a possibilidade instrumental de se concretizarem esses direitos.

É justamente nesse ponto que o pensamento de Touraine (2009) parece mais próximo e coerente com a perspectiva de uma transformação construída a partir do retorno ao Sujeito, como ser do qual emana a vontade e a determinação para dar sentido e significado ao seu viver individual e, na interface com os demais, à existência coletiva.

Ao contrário de Habermas (2002), que se volta para uma idéia de democracia consubstanciando a convergência de vontades, o que equivale à superação da subjetividade por uma ordem que, mesmo respeitando o indivíduo, se transforma em entidade principal e superior a ele em certo sentido.

Em Touraine (2009), não é o coletivo, mas o Sujeito que deve ser valorizado e fortalecido, para que a democracia se consolide e supere suas contradições. O que significa compatibilizar a força imanente do coletivo, como base e sustentação do sistema democrático, com as particularidades e distinções que persistem no grupo, emanadas do indivíduo como ente único, insubstituível, condição essa que é a própria essência do humano. Respeitá-la é dar atenção ao valor dignidade, que constitui, também, o direito mais elementar do homem.

A posição desse autor é importante para se colocar em questão da força superior dos direitos humanos e a sua fundamentalidade, como arcabouço a partir do qual devem se definir as formas e as instâncias de exercício do poder, não somente ao nível interno, mas internacional.

Sob esse ponto de vista, a cidadania pode ser entendida não como simples participação num jogo comunicativo para a construção de relações consensuais, mas como afirmação da liberdade e individualidade a partir da construção de um Direito supranacional, ao mesmo tempo em que coexiste com a pluralidade e um senso coletivo que expressa a vontade geral no interior das nações.

Por essa via de pensamento, a cidadania confunde-se com o sujeito, por isso materializa-se no respeito à liberdade e à subjetividade, e não numa suposta vontade superior e exclusiva de um ente coletivo indistinto.

Nesse último enfoque, a cidadania acabou travestindo-se em modo de ser autoritário, transformando a democracia em “ditadura da maioria”, pois baseia-se na

idéia de que ser cidadão é participar, fazer parte de um todo maior, resultando, como observa Touraine (2009), em um culto à coletividade política.

A exaltação de uma da sociedade nacional, como pressupõe a idéia comum de cidadania “[...] traz em si mesma mais perigos do que apoios para a democracia. Ela produz a rejeição do outro, justifica a conquista, exclui as minorias ou aqueles que se apartam do ‘nós’ ou o criticam” (TOURAINE, 2009, p. 349).

Se a questão primordial dos tempos atuais é uma sociedade apta a reduzir as desigualdades sociais e garantir a efetividade dos direitos de cada um, é necessário adotar uma perspectiva de cidadania centrada no Sujeito, como entende esse autor.

A sua proposta é interessante porque não adota a visão reducionista do Sujeito a simples ator do sistema democrático, cuja importância emerge somente quando considerado como parte do todo, segundo pressupõe a idéia de participação política.

Pelo contrário, mantém o Sujeito como ator primordial que, preservando a individualidade e identidade, pode utilizar a sua criatividade, expandir as suas idéias, desenvolver conhecimentos críticos e portar-se segundo o seu entendimento, contribuindo para que não sejam diluídas as múltiplas possibilidades de ação e decisão. Estas existem em razão da diversidade de Sujeitos, porém, se reduzem e se homogeneizam, transformando-se em algumas poucas opções, quando a subjetividade é posta de lado, em nome de uma vontade coletiva transformada na única expressão possível da sociedade democrática.

A via transversa das relações entre sociedade e indivíduo, rumo a uma democracia plena passa pela valorização do Sujeito, não pela sua desconstrução, como ocorre com a idéia de cidadania ancorada na visão estrita de participação e integração a um grupo visando a formulação de consensos, dos quais emerge como figura inconteste o Estado soberano e distinto daqueles sob seu governo.

Como expõe em sua vigorosa crítica Lorenz (1986), a personalidade do indivíduo é desprezada pelos sistemas de governo, independentemente da sua orientação ideológica. Não há lugar para decisões independentes, tomadas pelo indivíduo, pois se tornam tanto mais indesejáveis quanto maior é o agrupamento que dá forma ao Estado. O critério do pertencimento social é definido por certos tipos de comportamentos, que devem se alinhar com um certo “padrão” considerado “normal” e adequado para a vida em sociedade, sob o discurso que prioriza o coletivo.

Importa considerar aqui Garcia (2004, p. 259), para quem “O exercício da cidadania requer, pois, mais e atualizadas formas de participação no poder de decisão, o que equivale a dizer, mais e atualizados direitos e formas de garantia.”

A cidadania deve emergir da valorização do Sujeito, como ser livre e não desconstruído pelo coletivo. Os direitos fundamentais precisam ser entendidos não como produto de uma vontade política desenvolvida de cima para baixo, a partir do eixo Estado-corpo político representativo, mas nascendo e se concretizando no indivíduo. A cidadania confunde-se com a subjetividade, tendo a mesma importância que os grupos no sistema democrático.

A valorização do Sujeito não significa priorizar o indivíduo em si mesmo, mas resgatar o seu significado, a partir daquilo que se reconhece como o mais essencialmente humano.

No momento em que estão sendo refutadas as idealizações de um progresso material e de um homem superior, nascido das cinzas da derrocada de uma era das trevas, como propunham o Iluminismo e o Modernismo; quando a ciência não parece mais ter todas as respostas, e os caminhos para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna parecem ser um discurso vazio e irreal, mais do que uma via de luta revolucionária, tudo o que resta é voltar-se para o Ser em si, redescobrindo o homem.

Trata-se de uma idéia de progresso, mas não no sentido clássico elaborado segundo os ideais iluministas que lastrearam o discurso racional-capitalista. Rorty (2007, p. 316) refere-se ao progresso moral, que se desenvolve rumo

[...] à maior solidariedade humana, mas essa solidariedade não é vista como o reconhecimento de um eu nuclear – a essência humana – em todos os seres humanos. É vista, antes, como a capacidade de considerar sem importância um número cada vez maior de diferenças tradicionais (de tribo, religião, raça, costumes, etc.), quando comparadas às semelhanças concernentes á dor e à humilhação – a capacidade de pensar em pessoas extremamente diferentes de nós como incluídas na gama do “nós”.

Nesse sentido, a valorização do Sujeito na sociedade democrática implica fazê- lo descobrir a “[...] obrigação moral de nutrir um sentimento de solidariedade com todos os outros seres humanos” (RORTY, 2007, p. 313).

Para isso, o caminho mais acertado é reconhecer a superior transcendência das normas de direitos humanos frente a quaisquer ordenamentos jurídicos nacionais. Somente a adoção de instrumentos dotados de uma efetiva e superior normatividade, de caráter universal ou supranacional, não-estatal mas vinculando os Estados nacionais, poderá concretizar os valores mais essenciais da condição humana, garantindo que sejam integralmente respeitados e tutelados.

Nesse mesmo sentido Garcia (2004, p. 261) fala em “repensar o Estado”, o que implica numa outra concepção de cidadania, uma nova práxis política e novas formas de exercício do poder estatal.

O reconhecimento da supraconstitucionalidade dos tratados sobre direitos humanos, como será demonstrado, é uma via que possibilita maximizar a sua efetividade, por meio da superação do entendimento positivista e reducionista imperante, no qual perde-se de vista o homem como fim primeiro da tutela jurídica diante da preocupação de resguardar a posição e papéis do Estado segundo os paradigmas político-jurídicos elaborados nos últimos séculos.