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4 AS NORMAS TRIBUTÁRIAS COMO NORMAS DE DIREITOS HUMANOS

4.1 O PODER ESTATAL DE TRIBUTAR

Na seara da tributação, o reconhecimento dos princípios e valores conexos representa uma ruptura com um modelo dogmático de aplicação do Direito, e também reflete uma questão histórica de buscar soluções ao embate entre Estado- arrecadador e indivíduo como sujeito-cidadão contribuinte.

A tributação é fenômeno intersistêmico, abrangendo elementos na seara da Política, da Economia e do Direito. Diz respeito a um aspecto do poder, mais especificamente à relação decorrente do caráter impositivo da norma tributária (CALIENDO, 2009).

Intermediando o vínculo entre indivíduo e Estado, o poder tornou-se o elemento basilar na criação de um campo obrigacional, do qual emergem questões relevantes quanto à natureza e sentido dessa relação.

No Estado de Direito, as decisões no campo tributário encontram limites na lei, mais precisamente na Carta Constitucional, e em particular no campo normativo dos direitos fundamentais: "[...] o poder de tributar nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por ele é totalmente limitado” (TORRES, 1995, p. 13).

O poder de tributar em princípio não se confunde com o poder do Estado, mas, sendo competência deste segundo a lei, sua materialização se dá segundo o que o ente estatal está autorizado a fazer.

Em sentido amplo, pode-se considerá-lo como parte do poder do Estado, destacando Valadão (2000, p. 22) que “À parte de discussões que podem ser suscitadas, parece que a capacidade impositiva do Estado, a priori, é ampla, e não há porque não entendê-la como um ‘poder’ do Estado, inerente à sua soberania.”

O exercício do poder tributário conduz à questão da relação contraditória entre Estado e sociedade civil, particularmente porque se trata, historicamente, de uma trajetória marcada por embates constantes entre os interesses do fisco e as garantias legais conferidas aos cidadãos. Nesse sentido, como afirma Machado (2010, p. 33), “[...] a relação de tributação não é simplesmente relação de poder como alguns têm pretendido que seja. É relação jurídica, embora seu fundamento seja a soberania do Estado.”

O Leviatã107 fiscal foi diversas vezes confrontado pelos indivíduos, por meio de uma resistência organizada, nascida não do desassombro heróico de um momento, mas de uma consciência coletiva, que se desenvolveu em razão de recorrentes injustiças e dos excessos da vontade estatal em sua voracidade arrecadatória.

Os exemplos mais importantes são a Revolução Americana e a Revolução Francesa, no final do século XVIII, para as quais contribuíram motivações de ordem tributária, com a mobilização da sociedade disposta a afrontar o poder supremo do Estado absolutista.

Nesse sentido, Schama (1989, p. 360) destaca a preocupação com a capacidade contributiva, corolário da igualdade, presente nos debates dos revolucionários franceses que tomaram o poder em 1789, e que se tornou um princípio fundamental do moderno Direito Tributário, acolhido na Magna Carta brasileira com a previsão do artigo 145, § 1°:

107 Monstro bíblico que Hobbes (1588-1679) utilizou para representar o Estado e o seu poder em razão

de um cenário de liberdade irrestrita, no qual se instalaram o caos e a violência, somente superados com o pacto social, dando origem ao ente estatal soberano, em relação assimétrica de poder para com seus súditos.

O tumulto foi imprevisível, pois a Assembléia discutia a necessidade urgente de manter – não suspender – as taxas vigentes até que se legislassem novas. O visconde de Noailles, cunhado de Lafayette, transformou então um debate específico numa peça de oratória revolucionária. O reino, disse, ‘oscila entre as alternativas de uma completa destruição da sociedade e um governo que fosse admirado e seguido em toda a Europa’. Para concretizar a segunda alternativa era preciso tranqüilizar o povo mostrando-lhe que a Assembléia se preocupava ativamente com sua felicidade. Com isso em mente propôs a obrigação formal de todos os cidadãos pagarem impostos de acordo com seus recursos, a abolição de todas as obrigações feudais e a eliminação de quaisquer remanescentes de servidão pessoal, como a

mainmorte e a corvée.108

Nesse processo de ruptura com a ordem instituída, redefiniram-se os rumos da vida política e social, lançando-se os fundamentos da cidadania, reconhecida como princípio maior de organização da vida social e política e uma das bases da constitucionalização dos direitos.

A construção de marcos legais regulatórios da relação entre contribuinte e Estado definiu-se inicialmente com base na preocupação de assegurar os objetivos arrecadatórios do ente estatal. Com o alargamento das bases de proteção dos direitos humanos e maior adensamento dos direitos fundamentais com a sua constitucionalização, também se desenvolveram mecanismos e instrumentos para vincular a tributação à observância e garantia desses direitos.

Liberdade e igualdade foram, essencialmente, os dois eixos originários sobre os quais foi construída a nova ordem político-jurídica tendo em vista a necessidade de redefinir as bases da relação entre Estado e indivíduo, com repercussão sobre as bases legais de construção dos modernos sistemas tributários.

Consoante o ensinamento de Torres (1995, p. 3):

108 “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a

capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (art. 145, § 1°, da CF/1988). O princípio da capacidade contributiva já estava inserido no ordenamento constitucional desde a Constituição do Império de 1824: “Art. 179 – A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: [...] 15) Ninguém será isento de contribuir para as despesas do Estado em proporção dos seus haveres”.

Com o advento do Estado Fiscal de Direito, que centraliza a fiscalidade, tornam-se e até hoje se mantêm, absolutamente essenciais as relações entre liberdade e tributo: o tributo nasce no espaço aberto pela autolimitação da liberdade e constitui o preço da liberdade, mas por ela se limita e pode chegar a oprimi-la, se o não contiver a legalidade.

Embora o reconhecimento dos limites e alcance da tributação esteja associado ao desenvolvimento das sociedades democráticas, tendo como núcleo um sistema de direitos expresso nesses dois princípios basilares, da liberdade e da igualdade, Tocqueville (2005) vislumbrou na ênfase da liberdade uma via contraditória, porque, segundo ele, estimularia a passividade dos indivíduos, preocupados em seu bem-estar material.

Para esse pensador, a sociedade democrática das massas, firmando a primazia do privado, desconstrói os liames essenciais da consciência coletiva, ao oferecer segurança e condições para a livre iniciativa e o resguardo das liberdades individuais.

Na visão tocquevilleana a democracia das massas representa o triunfo de uma liberdade aparente, pois o homem acaba sendo aprisionado em seu próprio mundo egoístico, perdendo-se os valores essenciais ao regime democrático, como o desprendimento pessoal e o interesse em participar ativamente da vida política, deixada a cargo de seus representantes.

Reis (2004, p. 76) sintetiza as críticas de Tocqueville ao homem comum, dito “cidadão”, o qual, tendo-lhe sido assegurados certos direitos, torna-se politicamente passivo, fechando-se no mundo que lhe é assegurado pelo sistema do qual faz parte:

[...] a análise de Tocqueville nos leva a compreender que o individualismo acomoda-se perfeitamente à fraqueza dos sentimentos cívicos: o homem da sociedade democrática é como um estranho aos seus concidadãos; o destino público acredita, não lhe concerne. Deseja a proteção do estado para o gozo tranqüilo de seu bem-estar, mas nega-se a compartilhar a responsabilidade sobre o que diz respeito à coletividade como um todo. Existe apenas em si mesmo e para si mesmo.

O temor de Tocqueville era que o foco na individualidade resultasse numa cidadania negativa, com a crescente passividade dos indivíduos em razão do superdimensionamento das liberdades, em detrimento da participação comunitária.

Apontava, portanto, uma contradição no modelo de amplas liberdades das democracias representativas, decorrente da força e da permeabilidade das idéias e estratégias do sistema capitalista ao privilegiar esforços individuais e a busca da satisfação pessoal no consumo ou na obtenção de riquezas.

As idéias de Tocqueville continuam atuais. Contraditoriamente, ao lado da valorização da diversidade e da proteção das diferenças, que tem sido priorizada nas sociedades democráticas, há um estímulo aberto ao individualismo, por parte do modelo capitalista voltado para o consumo de massa. Centrado na valorização do indivíduo, a partir da posse ou capacidade aquisitiva, daí emerge um espaço propício para a construção de um insidioso, e eficaz, modelo tributário sobre o consumo.

O êxito do sistema capitalista, retratado nos avanços na ciência e na técnica, na produção em massa e no amplo acesso aos bens e serviços, tem sido propugnado como prova inconteste da sua superioridade em relação a quaisquer outras escolhas ou vias possíveis de organização da sociedade. Sugere-se que somente o capitalismo permite ao indivíduo maximizar sua liberdade de escolha e, ao mesmo tempo, aproveitar as oportunidades em prol de seu bem-estar e desenvolvimento como ser livre.

Pondera, porém, Lorenz (1986), que há tão somente uma ilusão de liberdade, que torna aceitável o sistema no qual o sujeito vive, ao sugerir-se que este é livre e pode fazer escolhas em razão da sua consciência e

autodeterminação, quando, na verdade, os mecanismos subreptícios de dominação estão plenamente operantes.

Para esse autor, a partir de uma ampla aceitação social desse discurso, bem adequado à idéia de “consenso”, onipresente nos debates sobre a democracia, a individualidade perde seu valor, substituída pela noção imprecisa do coletivo e sua necessária preponderância.

No campo da tributação, esse fenômeno é perceptível. O tributo incidente sobre o que é consumido permite travestir o contribuinte em participante ativo, mas inconsciente, do processo de captação de recursos para financiamento das atividades estatais.

No Brasil, como em muitos outros países, a partir da criação de inúmeros impostos de valor agregado, modelo transplantado da Europa e aqui transformado em mecanismo substancial de constituição dos fundos arrecadatórios do Estado, paga-se tributos sem ter consciência disso e, sobretudo, sem saber precisamente o quanto é arrecadado e qual a destinação dos recursos tributários.

Por via reflexa, a necessidade de controle e participação ativa dos cidadãos, pela visibilidade, é condição para reverter um quadro sintomático de denegação do necessário comedimento na pretensão arrecadatória, a qual se estabelece em razão da impossibilidade dos cidadãos conhecerem precisamente o quanto estão contribuindo, e de que forma são aplicados os recursos.109

109 Rothbard (2010, p. 260) comenta que "[...] em uma democracia, o público só pode decidir sobre

questões públicas e votar em representantes públicos se eles tiverem total conhecimento das operações do governo; e (2) que uma vez que os pagadores de impostos pagam as contas do governo, eles deveriam ter o direito de saber o que o governo está fazendo. O argumento libertário acrescentaria que, uma vez que o governo é uma organização violadora dos direitos e das pessoas de seus cidadãos, logo a completa transparência de suas operações seria no mínimo um direito que seus súditos poderiam arrebatar do Estado, e que eles poderiam utilizar para resistir ou reduzir o poder do Estado.”

O valor do tributo é embutido no preço da mercadoria, e como tal se torna praticamente invisível, tornando o ato de consumir politicamente alienado110, no sentido de que, sem perceber o ônus que deve suportar no consumo com o tributo agregado ao valor da compra, o consumidor também não tem consciência de que aquilo que lhe traz prazer é, também, uma forma de contribuição para a constituição dos fundos estatais.

Torres (1995, p. 7) sintetiza essa situação contraditória, observando que “[...] o relacionamento entre liberdade e tributo é dramático, por se afirmar sob o signo da bipolaridade: o tributo é garantia da liberdade e, ao mesmo tempo, possui a extraordinária aptidão para destruí-la [...].”

A tributação sobre o consumo, por ser inconsciente, é uma pérfida forma de manipulação do sujeito, estabelecendo uma relação indireta com o Estado, de modo que o indivíduo deixa de ter consciência da sua condição de contribuinte. A consciência do ser passa a ser determinada pela relação direta e imediata com a coisa consumida enquanto objeto e fim da sua existência.

A dissociação entre a consciência de ser contribuinte, e o ato de consumir, possibilita o mais eficiente dos mecanismos de arrecadação, fundado na condição pós-moderna do existir, segundo a qual, para ser feliz, é preciso adquirir coisas.

O hiperconsumo não é apenas substrato ou condição para o desenvolvimento de uma nova etapa do capitalismo, sob as instâncias do processo de globalização econômica, mas também um meio paradoxal de oferecer sensação de liberdade, controle de si pelo livre exercício da vontade, através da possibilidade de múltipla escolha de bens e serviços.

110 Nabais (2007) chama isto de anestesia fiscal, entendendo que a tributação sobre o consumo faz-

Pelos mecanismos subreptícios da oferta, são fixadas as condições ideais do mercado, com a maximização do consumo, sob o pressuposto de que quanto mais se consome, maior é o nível de satisfação pessoal - felicidade, ou gozo do consumo111 como denomina Ramos (2007). E, obviamente, isso tem repercussões favoráveis para o Estado: quanto maior o consumo, maior a arrecadação do Fisco.

Por essa ótica, o consumismo tem sido utilizado pela retórica desenvolvimentista liberal, como expressão de um progresso material, confundido com prosperidade e identificado com a possibilidade de redução das desigualdades: incrementar o consumo, incorporar novos grupos de consumidores à economia de mercado.

Ao lado das estratégias e do discurso capitalista-liberal, a redução do indivíduo cidadão à condição de consumidor opera também por outros mecanismos sutis, mais especificamente, e contraditoriamente, no campo do Direito, no qual, supostamente, deveriam ser reforçadas e estimuladas as bases de exercício da cidadania ativa.

Esse embate de forças e interesses torna-se mais evidente atualmente, em razão de novas situações e cenários. Os mecanismos que o Estado utilizava para concretizar seus fins ou objetivos já não servem mais, em razão da crescente complexificação das relações intersubjetivas e sociais do mundo pós-moderno. Os desafios de uma economia globalizada, com atores e atividades diversificadas, não mais limitadas ao espaço local, mas muitas vezes dispersos geograficamente, impõem novas sistemáticas de controle, fiscalização e de incidência tributária.

111 Segundo Ramos (2007, p. 1) “[...] a sociedade do consumo produz um saber sobre o gozo que

Em função desse cenário em mutação, é interessante enfocar o contexto histórico no qual se definiram as bases da relação tributária, convergindo para novas formas de articulação das estratégias e interesses do Estado frente à sociedade em razão do alcance e dos limites impostos aos objetivos arrecadatórios pela ampliação das bases legais de garantia dos direitos humanos.

4.2 A IMPOSIÇÃO FISCAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO