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AUTONOMIA E UNIVERSALIDADE DO SER COMO REFERÊNCIAS PARA O ESTADO: O INDÍVUO COMO FULCRO DO DIREITO

Fazendo um recorte no processo histórico de afirmação do Estado e da limitação constitucional dos seus poderes para a garantia dos direitos do cidadão, é oportuno adentrar no pensamento kantiano, centrado numa visão racional que definiu uma nova base na relação entre o homem e o Direito.

Kant postula uma ética que não é produto de uma intuição moral, mas da própria razão. O pensamento kantiano desconfiou de tudo o que foi erigido antes em dogma, tanto no campo religioso, como político. Por isso sua forma de pensar foi rotulada de crítica37. O filósofo não negava a realidade, mas defendia o emprego da razão para ir além das aparências criadas por modos não-racionais de pensamento.

O sentido finalístico da sua filosofia tornou Kant um pensador típico da era da subversão das instituições políticas e morais do seu tempo38. A visão kantiana do mundo estava ancorada na superação de toda irracionalidade, por meio do que chamava de “razão pura”, recurso essencial para atingir a realidade, despindo-a de tudo aquilo que a cultura e as crenças e superstições humanas haviam estabelecido como supostos retratos da realidade.

Em Kant não há lugar para a metafísica39. Ele postulou uma regra moral universal que se desdobraria de uma razão universal, comum a todos, mas que não

37 “Somente a crítica é capaz de “[...] cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, a

incredulidade dos espíritos fortes, o fanatismo e a superstição, que podem tornar nocivos a todos e, por último, também o idealismo e o ceticismo, que são sobretudo perigosos” (KANT, 1994, p. 30).

38 Kant prefacia sua obra “Crítica da Razão Pura” observando que “Nossa época é, essencialmente,

uma época de crítica à qual tudo deve submeter-se. A religião, por conta de sua santidade, e a legislação, por conta de sua majestade, tentam manter-se à margem do espírito crítico. Ao assim procederem, contudo, despertam suspeitas contra si mesmas e não podem reivindicar aquele respeito sincero que a razão confere a quem quer que consiga resistir a seu exame livre e aberto.”

39 O conhecimento só pode alcançar o que está no mundo sensível, nada além dele pode ser objeto

do conhecimento ou da demonstração racional. Mas Kant não refuta totalmente a metafísica, apenas entende que ela não é o instrumento adequado para se chegar ao conhecimento da realidade, que somente pode ser acessada pela via da razão.

seria produto de determinações anteriores ao sujeito enquanto ser dotado de razão, sendo o homem, portanto, apto a fazer escolhas a partir dela.

Segundo o modo de pensar kantiano a moral não é externa, e sendo intrínseca a cada homem apenas o Direito pode alcançar o propósito de estabelecer condutas socialmente válidas e uniformes. O Direito, como produto da razão, é direcionado para o foro exterior e não perquire sobre as intenções, mas apenas sobre o concreto vivido através das ações dos homens(BERGEL, 2001).

Foi também na razão pura que Kant buscou uma explicação para o poder do Estado. Nesse sentido, se afastou do naturalismo dos iluministas. Ele não se valeu de supostas leis naturais justificadoras do poder estatal, mas tomou a razão universal como referência para a compreensão da relação entre indivíduo e Estado.

Partindo do pressuposto que a razão não está nas coisas, mas no sujeito que conhece, o pensamento kantiano concebe as bases da liberdade em sua relação com a intencionalidade do sujeito:

A liberdade, de fato, indica que os motivos da ação provêm da razão, e, portanto, só surge a partir do exercício da vontade. Esta, enquanto origem e fonte da liberdade, não pode ser, por sua vez, qualificada como livre. Se assim fosse, significaria que ela receberia seus motivos de uma instância que lhe é superior, ao passo que ela mesma é a instância donde se originam os motivos com base nos quais é possível qualificar algo como ‘livre’ (RAMETTA, 2005, p. 261).

Portanto, a idéia de liberdade40 em Kant tem na razão um fundamento determinante, ou seja, o agir individual somente pode ser entendido como realmente livre quando há a mobilização para a ação pautada em motivos apoiados pela razão.

40 A liberdade em Kant não é o produto de um direito natural, tampouco encerra uma origem

metafísica, proveniente de vontade divina superior. Também não é produto da princípios inferidos racionalmente, mas o arbítrio, como expressão do sujeito autônomo. “Não é simples excogitação de possibilidades para a ação, mas consciência da capacidade de realizar concretamente estas possibilidades agindo em sentido causal sobre o mundo exterior” (RAMETTA, 2005, p. 260).

A razão prática é a própria vontade, da qual derivam tais motivos para a ação. Não sendo determinada por eles, não pode ser “qualificada como livre”. Somente o arbítrio expressa a liberdade.

Kant partiu de certas regras da moralidade, de validade universal, pelas quais o livre arbítrio pode levar o indivíduo a agir, ou abster-se de agir, sintetizadas em uma lei válida para todos, um imperativo categórico: “Age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 1993, p. 50).

Da leitura dessa máxima universal, pode-se identificar como pressuposto kantiano para a liberdade como direito inato, anterior a qualquer outro, a liberdade dos demais: “A liberdade, na medida em que pode coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo uma lei universal, é este direito único, originário, que corresponde a todo homem em virtude de sua humanidade” (KANT, 2003, p. 83).

É possível identificar uma relação entre a liberdade kantiana e a liberdade segundo o entendimento de Locke e Rousseau, enquanto direito inato, não criado por normas humanas ou pela simples vontade de uma autoridade.

No pensamento kantiano essa liberdade assumiu um tom profundamente humanístico, o que é compreensível ao centrar-se na questão do ser em si, e não do objeto do conhecimento, postulando assim uma liberdade da qual nascem todos os outros direitos. A liberdade para Kant é anterior a eles, confunde-se com o próprio sujeito que, dotado de razão, pode compreender o real significado da sua liberdade e exigir a sua garantia pelo Estado, devendo este, por todos os meios, assegurar esse direito natural originário41.

41 Sendo originário como direito, a liberdade é direito a priori, portanto Kant opõe-se a Hobbes quanto

à cessão plena de direitos a um soberano ou ao Estado, já que este não é superveniente à liberdade enquanto “idéia a priori da razão prática” (RAMETTA, 2005, p. 277).

Por sua vez, centrando-se no homem, a verdadeira liberdade está na sua “[...] sujeição à lei moral que ele próprio se outorga e atinge seu ponto mais alto quando o homem reconhece a necessidade dessa lei e sua absoluta autoridade sobre as ações do agente racional” (MORRISON, 2006, p. 179).

Kant aproximou-se do pensamento de São Tomás de Aquino42, ao considerar o valor moral do ser humano, ou seja, ao entender que a liberdade é a base sobre a qual se erigiu o sentido e significado de “ser humano”. Subvertendo as teses deterministas, para ele a liberdade confere ao homem a autodeterminação.

Apesar disso, Kant não aceitou a possibilidade de uma insubordinação civil frente ao Estado. Embora isso não signifique que o direito à liberdade seja por este alienado, entende esse pensador que:

É contraditório atribuir a um povo um direito de resistência contra quem detém o poder de governo, porque só a existência deste último torna possível a vigência concreta e a eficácia do direito; sustentar que o povo possui o direito de rebelar-se contra um poder do Estado é absurdo, porque o poder do Estado é a condição de que depende a possibilidade de exercitar todo e qualquer direito (RAMETTA, 2005, p. 271).

Essas afirmações deixam evidente o rigor do pensamento kantiano e a sua preocupação em colocar a razão como fundamento de tudo, inclusivo no plano político. Em Kant identifica-se uma excessiva crença no Estado-razão, a quem nada pode ou deve resistir por ser ele o mais apto a conduzir os destinos da coletividade. Portanto, o pensador alemão postula um dever absoluto enquanto produto da razão, devendo ser esta a gênese e a fonte de todas as ações43.

42 A dignidade do homem, para São Tomás de Aquino, está em sua transcendência, com ser dotado

de livre arbítrio, sendo criatura de Deus e que, tendo sido por ele criado à sua imagem, “[...] é princípio de suas ações enquanto possui um livre-arbítrio e poder sobre suas ações” (ANZENBACHER, 2009, p. 119).

43 Deleuze (1976) observa que a ênfase kantiana numa razão suprema acaba por tornar essa mesma

Embora Kant tenha destacado que não é o Estado em si, mas a razão que lhe dá origem que justifica o dever inescapável, é possível estender seu pensamento a certas condutas políticas dos tempos contemporâneos44, como já comentaram outros autores com relação ao ‘espírito alemão’, baseado na observância estrita da norma, na preocupação com o dever e no respeito à autoridade.45

Não admite Kant que o povo se oponha ao Estado no sentido de retirar-lhe o poder supremo que detém; pode sim apresentar as suas queixas, sempre que os interesses ou demandas da sociedade não estejam sendo adequadamente respondidos pela autoridade.

Não há que se falar, para o filósofo, em insurreição, pois Estado foi escolhido racionalmente pelos homens, e desde então se tornou o mediador dos interesses individuais, realizando os fins para os quais essa mesma razão lhe deu origem e lhe conferir poderes superiores à vontade de cada indivíduo:

Se o Governante ou Regente, como órgão do Poder Supremo, age violando as Leis, como ao impor tributos, recrutar soldados, e assim por diante, de forma contrária à Lei da Igualdade na distribuição dos encargos políticos, o Súdito pode apresentar queixas e objeções a essa injustiça, mas não pode opor-lhe resistência ativa. [...] É só pela submissão à Vontade Legislativa Universal que é possível uma condição de lei e de ordem. Por isso não existe qualquer Direito de Sedição, e menos ainda de rebelião, pertencente ao Povo [...] é dever do Povo suportar qualquer abuso do Poder Supremo, mesmo quando seja considerado insuportável [...] (MORRIS, 2002, p. 255).

44 Arendt (1999) ao discorrer sobre a conduta do oficial nazista Eichmann, responsável pela execução

das ordens de extermínio dos judeus na Segunda Guerra Mundial, comenta sua postura “kantiana”, cujo discurso atribuiu a sua determinação e as suas escolhas pessoais à necessidade de cumprir as ordens do Führer, fonte superior e inquestionável de toda lei.

45 Nietzsche (1844-1900), filósofo alemão, foi crítico contumaz do racionalismo, do iluminismo e das

idéias de Kant. Descreve o ‘imperativo categórico’ como uma forma de acorrentar o espírito humano, diluir a liberdade verdadeira disfarçando-se em única via para sua efetividade. Entende que Kant na verdade coloca o primado da razão e a torna um “senhor” acima de todas as existências individuais. É possível antever nas suas críticas a esse “modo alemão de pensar e viver” uma contraposição ao próprio regime nazista, marcado pela supervalorização do coletivo, do dever absoluto e anulação do indivíduo. Apesar de ter sido celebrado pelo regime nazista, Nietzsche na verdade não era anti-semita e criticava o regime político da Prússia (um dos estados alemães da sua época) por essa orientação Mais do que ser um niilista, como muitos o interpretam, preocupou-se em fazer uma crítica acirrada contra qualquer rigorismo de pensamento e conduta alçada em valores absolutos, destituindo a subjetividade, daí ter se tornado um pensador polêmico, até mesmo desprezado, mas que de qualquer forma continua atual por sua posição firme sobre a importância de resgatar o indivíduo, que entendia ter sido destruído pelo racionalismo e pelas teorias de valor moral.

Da leitura de Kant fica evidente a preocupação na primazia da razão frente a qualquer interpretação que se oponha à autoridade constituída, o que significa que, nascendo o Estado da razão, não mais pode ser negada sua autonomia, como condição necessária para preservar a liberdade de cada um. Essa autonomia tem sua fonte na própria razão universal. Portanto, não há mais como retroceder.

O pensamento kantiano postula a validade da lei universal, que com o contrato social (chamado pelo filósofo de “contrato original”) se torna imperativo comum46 e, por extensão, assegura a liberdade de todos a partir da ordem social a ser garantida pelo Estado.

Nesse sentido, é oportuno destacar que, a despeito das críticas sobre o pensamento kantiano e sua relação com o nazismo, antes comentadas, um olhar mais atento sobre o seu trabalho mostra que Kant não defendeu um Estado totalitário ao colocar a necessidade da submissão irrestrita à vontade universal, representada pelo ente estatal.

Pelo contrário, o dever moral para ele importa sempre em fazer com que cada um e todos orientem as suas condutas pela razão, a fonte para a compreensão do necessário respeito ao outro.

A constituição civil, como norma jurídica, não contraria a liberdade do indivíduo pela supremacia da autoridade estatal, pelo contrário, ela apenas garante que essa liberdade não resulte em abuso, contrariando o propósito da sociedade ao dar origem ao Estado, que foi a superação das vontades individuais fazendo-as convergir para

46 Fichte (1762-1814), como Kant, uma lei moral nasce da consciência interna do sujeito, o que o leva a

reconhecer o outro como ser igualmente livre. “Na medida em que se reconhecem como livres, os homens devem reconhecer reciprocamente também a possibilidade de decidir se instituem ou não entre eles uma comunidade. Neste se está contido o caráter condicionado da lei, cuja obrigatoriedade funciona somente a partir da hipótese de que os homens tenham efetivamente decidido estabelecer uma forma de convivência recíproca e, portanto, de fazer parte de uma comunidade de seres racionais. Por outro lado, se tal condição é possível, então a obrigatoriedade da lei deve necessariamente se fazer presente. Ela é, com efeito, a condição a priori, isto é, universal e necessária, com base na qual unicamente se torna possível uma convivência entre seres racionais [...]” (RAMETTA, 2005a, p. 287).

uma “[...] vontade universalmente válida de modo que todos possam ser livres” (KANT, 2003, p. 11-12).

De qualquer forma, a preocupação de Kant com a afirmação da razão superior no plano das relações entre Estado e sociedade traz o inconveniente de ser usada como justificativa para a negação do próprio indivíduo, numa sociedade que supervaloriza a autoridade em si mesma.

Por outro lado, o próprio pensamento kantiano fornece as bases para a compreensão desse tipo de comportamento, pois Kant apontou dois elementos decisivos para determinar a condição de liberdade em uma sociedade: a massa de indivíduos (ein grosser haufen), que não prima pelo uso da razão, vivendo passivamente, sob a tutela do Estado; e o homem esclarecido, pode concretizar a sua liberdade e dar sentido a sua existência de forma plena.

O esclarecimento, para Kant, é a base de uma sociedade futura mais livre, e nesse ponto ele faz referência a um progresso moral da humanidade, que tem na razão superior a base de sua existência47.

Para isso, os Estados-nacionais devem ser substituídos por um Estado universal, que seria o produto natural da evolução do homem ao encontro de uma existência pautada na razão e no abandono dos antigos valores, crenças e limitações impostas por práticas e costumes retrógrados.

Trata-se de uma idéia importante e de certo modo atual, pois pode ser relacionada à temática da relativização da soberania dos Estados na era pós- moderna e à emergência das idéias sobre a supraconstitucionalidade na aplicação

47 Pode-se compreender essa visão kantiana sobre um futuro para a humanidade a partir do seu

entendimento sobre uma disposição moral existente em todo homem, que lhe permite subtrair-se de fazer o mal. De modo que, ao contrário de Hobbes, não é pessimista em relação ao homem. Se este é capaz de comportar-se de modo extremamente cruel, também tem dentro de si a possibilidade de escolher o bem, ou uma disposição moral para subjugar o mal em seu interior (LUTZ-BACHMANN, 2004, p. 102).

dos tratados internacionais frente às determinações internas de cada Estado, tema que será oportunamente abordado mais adiante.

O conceito de pacto social por ele apresentada não pressupõe, como em Rousseau, um contrato no sentido de determinação entre partes de direitos e obrigações, mas é antes uma idéia que tem origem na vontade universal.

Para Kant, o Estado nasceu de uma obrigação moral de cada indivíduo como ser dotado de razão, sendo a Constituição “[...] o ato da vontade geral através do qual a multidão torna-se povo” (RAMETTA, 2005, p. 273).

O racionalismo kantiano teve grande repercussão nas críticas sobre o absolutismo, emergindo num cenário marcado por novas tendências políticas e sociais que exigiam a reformulação das bases de governo e das relações entre o Estado e os indivíduos.

Pode-se afirmar que em Kant estão os fundamentos da relativização do poder estatal, diante da ênfase do valor da liberdade e da autonomia do sujeito como fulcro de uma sociedade sob o império da razão modernizadora. O teor desse pensamento foi crucial para a constitucionalização dos direitos e os desdobramentos que culminam na emergência de questões contemporâneas acerca do homem e do Estado.

2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO PENSAMENTO