• Nenhum resultado encontrado

OS DIREITOS HUMANOS E SUA FORÇA NORMATIVA: A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL E A PRIMAZIA DO DIREITO INTERNACIONAL

3 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

3.1 OS DIREITOS HUMANOS E SUA FORÇA NORMATIVA: A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA ESTATAL E A PRIMAZIA DO DIREITO INTERNACIONAL

Numa definição preliminar, um tratado, nos termos do artigo 2º, § 1º, “a”, da Convenção de Viena de 1969, é

[...] acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja sua denominação específica (BRASIL, 2009, p. 59).

A tese da superioridade do direito emanado dos tratados internacionais sobre as Constituições pode ser delineada a partir da fundamentação positivista de Kelsen que, ao abordar a questão, observou:

[...] partindo-se da idéia da superioridade do direito internacional frente às diferentes ordens jurídicas estatais [...], o tratado internacional aparece como uma ordem jurídica superior aos Estados contratantes [...] Desse ponto de vista, o tratado em face da lei e mesmo da Constituição tem uma preeminência, podendo derrogar uma lei ordinária ou constitucional, enquanto que o inverso é impossível. Segundo as regras do direito internacional, um tratado não pode perder sua força obrigatória senão em virtude de outro tratado ou de certos fatos determinados por lei, mas não por um ato unilateral de uma das partes contratantes, especialmente por uma lei. Se uma lei, mesmo uma lei constitucional, contradiz um tratado, ele é irregular, a saber, contrária ao direito internacional. Ela contraria imediatamente o tratado, e mediatamente o princípio pacta sunt servanda (KELSEN, 1928, p. 211-212).66

Embora não tratando dos direitos humanos, a questão da força normativa dos tratados em relação à pacta sunt servanda procede, e está vinculada diretamente à

66 Tradução livre do original: “[...] si l'on part de l'idée de la supériorité du droit international aux

différents ordres étatiques [...], le traité international apparaît comme un ordre juridique supérieur aux Etats contractants [...] De ce point de vue, dit-il, le traité a vis-à-vis de la loi et même de la Constitution une prééminence, en ce qu'il peut déroger à une loi ordinaire ou constitutionnelle, alors que l'inverse est impossible. D'après les règles du droit international, un traité ne peut perdre sa force obligatoire qu'en vertu d'un autre traité ou de certains autres faits déterminés par lui, mais non pas par un acte unilatéral de l'une des parties contractantes, notamment par une loi. Si une loi, même une loi constitutionnelle, contredit un traité, elle est irrégulière, à savoir contraire au droit international. Elle va immédiatement contre le traité, médiatement contre le principe pacta sunt servanda.”

necessária subordinação das vontades nacionais ao pactuado em atenção ao princípio pro homine, como leciona Gomes (2008, p. 499):

O princípio pro homine ainda encontra apoio em dois outros elementares princípios do Direito internacional: princípios da boa-fé e da interpretação teleológica. Por força do primeiro, os tratados de direitos humanos são assumidos pelos Estados para que eles sejam cumpridos (pacta sunt

servanda).

Acerca das ponderações kelsenianas antes transcritas, Schuelter (2003, p. 63) entende que não é o pacta sunt servanda propriamente que confere obrigatoriedade ao direito internacional no campo dos direitos humanos, pois o seu fundamento de validade está no

[...] reconhecimento dos atores sociais, dos Estados e das organizações internacionais, sujeitos a esta ordem jurídica que aceitam e aplicam esse direito. É o consenso social que valida e torna obrigatório o direito internacional.

Trata-se de comentário pertinente, pois o núcleo central da matéria relativa aos direitos humanos e a sua satisfatividade está na legitimidade, não na hierarquia normativa.

A obrigatoriedade da observância das normas nascidas do Direito Internacional não decorre propriamente de uma vinculação por hierarquia, mas da acolhida e consenso coletivo sobre a sua aplicação no âmbito interno do Estado, o que se faz por via transversa, não com a mediação deste, mas a sua revelia como entende Manes (2011).

Esse autor comenta acerca da afirmação da supraconstitucionalidade e da força da Convenção Européia dos Direitos do Homem frente às normas internas e às Constituições nacionais, tendo papel essencial a atuação pretoriana em instância supranacional, mas voltada à construção de um direito pro homine sem fronteiras. Trata-se de uma

[...] inversão gestáltica da imposição tradicional que quer a produção do direito estalinista, positivista, monológica e declinada segundo a modalidade

top-down, porque o delineamento dos direitos humanos mostra-se sempre

mais desterritorializado, policêntrico e reticular: parte da base da pirâmide das fontes, e não de um ato de “concessão” do absolutismo estatal; [...] é confiado, em grande parte ao “protagonismo positivo” dos juízes – os terminais mais próximos, de resto,do tecido conjuntivo da sociedade civil – e a sua capacidade “universalizante”. (MANES, 2011, p. 92).

Lançando um olhar sobre o caso europeu, a supremacia das normas internacionais de direitos humanos tem se firmado a partir da emergência de circunstâncias alheias aos sistemas jurídicos fechados em si mesmos, conduzindo à estruturação de um sistema normativo internacional de caráter mais inclusivo no que se refere ao seu objeto, isto é, o ser humano. Categorias como nacionalidade e limites espaciais de aplicação da lei são desconstruídas, a partir de normas de validade irrestrita, aplicáveis em todos os lugares.

A pretensão universalizante, é certo, depende da manifestação expressa dos Estados. Nesse caso, a pacta sunt servanda, consubstanciando acordos entre as partes, não deixa de ser um ato personalístico do ente estatal.67 Mesmo sob o pressuposto de que atua na condição de representante da vontade nacional, o Estado toma decisões segundo a lógica e propósitos definidos no contexto do exercício do poder.

Todavia, a afirmação da supraconstitucionalidade dos direitos humanos não encontra limites na vontade dos Estados, na sua condição de entes dotados de personalidade e autonomia no plano internacional.

A primeira justificativa para firmar as bases de um Direito Internacional dos Direitos Humanos e a sua supremacia sobre as Constituições dos países signatários encontra-se em um pressuposto lógico, considerando a natureza sistêmica do Direito, da qual se extrai a necessária vinculação do direito interno a normas situadas em um plano imediatamente superior. Como explica Virally (1964, p. 497):

67

Toda ordem jurídica confere aos destinatários de suas normas direitos e poderes jurídicos [...] ele lhe impõe obrigações, que lhes vinculam [...] toda ordem jurídica se afirma como superior a seus sujeitos [...] O direito internacional é inconcebível senão sendo superior aos Estados, seus sujeitos. Negar a sua superioridade implica negar a sua existência.68

Sob o pressuposto de uma hierarquia normativa, a questão da supremacia do Direito Internacional sobre o Direito interno, inclusive as normas constitucionais, não é matéria recente. Consoante Carreau (1991, p.43):

O princípio da superioridade das normas de direito internacional sobre as leis constitucionais foi firmado muitas vezes pela prática arbitral e judiciária internacional. No que concerne à prática arbitral pode-se citar o caso Montijo (1875). Nesse caso a Colômbia, pretendendo que as disposições da sua Constituição a impediam de respeitar os termos de um tratado regularmente concluído com os Estados Unidos, afirmou a superioridade de sua Constituição sobre o direito internacional. A sentença arbitral condenou essa concepção e afirmou claramente que “um tratado é superior à Constituição”.69

Outro precedente histórico foi o caso Georges Pinson (1928), envolvendo a inobservância, por parte do México, das disposições de tratado firmado com a França. O Estado mexicano recusou-se a reconhecer a superioridade desse instrumento frente às disposições da sua Constituição. Todavia, ressalta Carreau (1991, p. 43):

O árbitro fez triunfar o tratado franco-mexicano sobre a Constituição desse último pais. Ele afirmou que “é incontestável e inconteste que o direito internacional é superior ao direito interno [...]. As disposições nacionais não são sem valor para os tribunais internacionais, mas eles não estão vinculados a elas.”70

68 Tradução livre do original: “[...] est inhérente à la définition même de ce droit et s'en déduit

immédiatement. Tout ordre juridique confère aux destinataires de ses normes des droits et pouvoirs juridiques [...]; il leur impose des obligations, qui les lient. Par là même, tout ordre juridique s'affirme supérieur à ses sujets, ou bien il n'est pas [...] Le droit international est inconcevable autrement que supérieur aux Etats, ses sujets. Nier sa supériorité revient à nier son existence.”

69 Tradução livre do original: “Le principe de la supériorité des normes de droit international sur les lois

constitutionnelles a été affirmé maintes fois par la pratique arbitrale et judiciaire internationale. En ce qui concerne la pratique arbitrale on peut citer l'affaire du “Montijo” (1875). Dans cette affaire la Colombie, en prétendant que les dispositions de sa Constitution l'empêchaient de respecter les termes d'un traité régulièrement conclu avec les Etats-Unis, a affirmé la supériorité de sa Constitution sur le droit international. La sentence arbitrale a condamné une telle conception et affirmé clairement qu’ un traité est supérieur à la Constitution.”

70 Tradução livre do original: “L'arbitre a fait triompher le traité franco-mexicain sur la Constitution de

ce dernier pays. Il a affirmé qu'«il est incontestable et incontesté que le droit international est supérieur au droit interne [...] Les dispositions nationales ne sont pas sans valeur pour les tribunaux internationaux, mais ils ne sont pas liés par elles.”

Aos precedentes das decisões de arbitramento de disputas entre os Estados envolvendo questões pertinentes à inobservância de tratados por eles firmados, o Direito Internacional avançou, o que pode ser considerado um processo natural de fortalecimento das bases pactuais entre os Estados, baseado em garantias de um compromisso efetivo com as disposições consensualmente firmadas nos instrumentos internacionais.

Hodiernamente, a supremacia do Direito internacional sobre o Direito interno tem sido justificada com base no artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito de Tratados de 1969, segundo o qual “[...] uma parte não pode invocar as disposições do seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado” (BRASIL, 2009).

Para Carreau (1991, p. 42) “[...] esse princípio de superioridade significa que o direito internacional [...] se impõe sobre o conjunto normativo interno, sejam as normas constitucionais, legislativas, regulamentares ou decisões judiciais.”71

Com base nesse dispositivo tem sido defendida a superioridade da norma internacional em relação à “[...] ordem interna dos Estados onde ela viesse a vigorar ou por ratificação ou como costume internacional” (PEREIRA; QUADROS, 2001, p. 120).72

A partir do entendimento sobre o alcance das normas derivadas de tratados internacionais firma-se a tese da supraconstitucionalidade dos direitos humanos, que exaurem a sua força normativa maior e mais completa fora dos sistemas jurídicos nacionais.

71 Tradução livre do original: “[...] ce principe de supériorité signifie que le droit international [...]

l'emporte sur l'ensemble du droit interne, qu'il s'agisse des normes constitutionnelles, législatives, réglementaires ou des décisions judiciaires.”

72 Os doutrinadores portugueses Pereira; Quadros (2001) ressaltam que, para o Direito comunitário

vigorar no âmbito interno dos Estados-membros da União Européia. e se impor sobre o Direito interno, não é necessária previsão expressa das Constituições nacionais, pois, uma vez que o Estado adere à ordem comunitária a ela vinculando-se por meio dos instrumentos constitutivos da União, implicitamente aceita a ordem jurídica que dela emana com todas as suas características basilares, dentre elas o princípio do primazia do Direito Comunitário.

Todavia, a ela se contrapõem outros entendimentos, definindo um campo de debate doutrinário e de controvérsias com importantes inflexões na jurisprudência nacional e internacional, bem como nas relações internacionais entre os Estados.