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3 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

3.2 A SUPRACONSTITUCIONALIDADE: REVERBERAÇÕES NO DIREITO PÁTRIO

Existem muitas divergências interpretativas quanto à aplicação do Direito Internacional derivado dos tratados no plano interno, em razão de um viés dogmático-legalista no que se refere à aplicação das normas internas.

Por muito tempo ficou relegada a um segundo plano a corrente que defendia que a aplicação dos tratados internacionais sobre os direitos humanos teria status constitucional, ou se estariam eles formal e hierarquicamente acima do direito ordinário, possuindo então, valor supralegal.

Dentre os argumentos lançados para opor-se à tese, afirmava-se que a natureza constitucional dos tratados de Direitos Humanos minimizaria a soberania brasileira, e que os tratados internacionais não podiam, nem deviam, impedir o Parlamento de legislar (GALINDO, 2006).

Essa posição foi superada, com o apoio dos aplicadores do Direito, como se depreende da exposição da matéria por Gomes; Mazzuoli (2009, p. 12):

[...] examinando a matéria sob a perspectiva da supralegalidade, tal como preconiza o eminente Ministro Gilmar Mendes que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permita qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição da República.

A adoção da tese da supralegalidade das normas derivadas dos tratados internacionais pode ser entendida como a superação de um viés positivista, limitador da garantia dos direitos fundamentais, observando Sarlet (2006, p. 390) que:

[...] não há mais que se falar em direitos fundamentais na medida da lei, mas, sim, em leis apenas na medida dos direitos fundamentais, o que – de acordo Gomes Canotilho – traduz de forma plástica a mutação operada nas relações entre a lei e os direitos fundamentais.

A plasticidade acima referida diz respeito às contingências da aplicação das normas internas nos casos em que se vislumbra a impossibilidade de dar ampla efetividade aos direitos humanos, inviabilizando não somente o sentido idealístico contido na sua afirmação e previsão constitucional, mas, sobretudo, o seu caráter finalístico, que é garantir a fruição desses direitos em qualquer lugar e momento, conforme a sua natureza universal e imanência a todo ser humano.

O campo normativo criado pelo Estado, como observa Ferrajoli (2000, p. 35-36), não perfaz todas as exigências para a materialidade dos direitos humanos. O reconhecimento e a garantia dos direitos humanos, por meio da sua normatização interna, estão sendo alcançados por meio da qualificação dos indivíduos, conforme o critério político do pertencimento ou não ao Estado (condição cidadã), criando-se assim parâmetros inclusivos ou excludentes que delimitam as possibilidades da satisfatividade ou concretude de tais direitos:

Nos ordenamentos internos dos Estados liberal-democráticos, os antigos direitos naturais são consagrados e positivados pelas Constituições como “universais” e, portanto, como base da igualdade de todos os seres humanos. E, todavia, coincidindo seu “universo” jurídico-positivo com o do ordenamento interno do Estado, os direitos do “homem” acabam de fato por se achatar sobre os direitos do “cidadão”. Dessa forma, a cidadania, se internamente representante da base da igualdade, externamente age como privilégio e como fonte de discriminação contra os não-cidadãos. A “universalidade” dos direitos humanos resolve-se, consequentemente, numa universalidade parcial e de parte: corrompida pelo hábito de reconhecer o Estado como única fonte de direito e, portanto, pelos mecanismos de exclusão por este desencadeados para com os não-cidadãos; e, ao mesmo tempo, pela ausência, também para os cidadãos, de garantias supra-estatais de direito internacional contra as violações impunes de tais direitos, cometidas pelos próprios Estados.

A defesa da supraconstitucionalidade das normas de direitos humanos derivadas de tratados internacionais constitui uma afirmação de que o direito pro

homine depende do reconhecimento de que as normas ordinárias ou

constitucionais não são baluartes exclusivos para plasmar um campo normativo amplo o suficiente em termos satisfativos.

Não se trata de um entendimento eivado de implicações doutrinárias e legais, uma vez que nega a possibilidade de limites à força normativa dos tratados internacionais sobre direitos humanos em razão da soberania estatal que se materializa no direito interno.

Mas tanto a interpretação que postula a equivalência das normas do direito internacional às normas constitucionais, quanto a que advoga o seu caráter supraconstitucional, encontram seu fundamento no conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, consagrado no artigo 5º, § 2º, da Magna Carta brasileira de 1988, que dá margem ao desvendamento de um amplo campo de materialização dos direitos humanos, pois permite a

[...] identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes de outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais (SARLET, 2006, p. 101).

Se a satisfatividade é o objeto de convergência das duas correntes, não há, todavia, consenso no que concerne à resolução de antinomias na seara da proteção e concretude dos direitos humanos.

A interpretação sobre a equiparação às normas constitucionais pode ser considerada como a reverberação, na Corte Suprema do nosso país, das teses que preconizavam a indispensável revisão das bases dogmáticas e positivas do Direito pátrio, para reconhecer a primazia dos direitos humanos e a sua força normativa de modo mais abrangente.

Após reiteradas divergências manifestas pelos membros do Superior Tribunal Federal em sucessivos julgamentos73, emergiu a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, que, em consonância com o art. 60, § 2°, da CF, adicionou o § 3° ao artigo 5°, dispondo que:

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Com as novas regras estabelecidas pela referida Emenda, firmou-se a aplicabilidade da tese da constitucionalidade dos tratados internacionais versando sobre direitos humanos.

O Ministro Gilmar Mendes, que antes havia advogado reiteradas vezes a tese da supralegalidade dessas normas, mudou seu entendimento, alinhando-se a essa nova orientação constitucional na solução das antinomias relativas às normas sobre direitos humanos:

[...] em decorrência do advento da EC n° 45/2004, e ressalvadas as hipóteses a ela anteriores – considerado, quanto a estas a regra do § 2° do art. 5° da Constituição – tornou-se possível atribuir, formal e materialmente, aos tratados de direitos humanos, hierarquia jurídico- constitucional, desde que observado o “iter” procedimental prescrito no § 3° do mesmo art. 5° (DIÁRIO DA JUSTIÇA, HC 90.172 SP – 17 ago. 2007 – Rel. Min. Gilmar Mendes).

Porém, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello Filho foi mais além74, entendendo terem status constitucional também os tratados aprovados antes da referida emenda constitucional, citando para isso renomados doutrinadores nacionais que sustentavam essa interpretação:

73 Sobre os tratados como equivalentes às normas internas – norma infraconstitucional: RE nº

80.004/SE, julgado em 01 jun. 1977; ADI nº 1.480-3/DF, julgada em 04 de setembro de 1997; HC nº 72.131/RJ, julgado em 22 nov. 1995; RE n° 206.482-3/SP, julgado em 27 maio 1998; HC n° 81.319- 4/GO, julgado em 24 abr.2002).

74 O Ministro Celso de Mello posicionou-se pela equiparação às normas constitucionais no julgamento

do HC 87.585/TO; prevaleceu, todavia, a tese do Ministro Gilmar Mendes, apoiado pelos votos dos Ministros Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Carmén Lúcia e Menezes Direito, pela supralegadidade, (BASTOS JÚNIOR; CAMPOS, 2001).

[...] há expressivas lições doutrinárias – como aquelas ministradas por Antônio Augusto Cançado Trindade (‘Tratado de Direito Internacional de Direitos Humanos’, vol. 1/513, item n. 13, 2ª ed.m 2003, Fabris), Flavia Piovesan (‘Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional’, p. 51/77, 7ª ed., 2006, Saraiva), Celso Lafer (‘A internacionalização dos Direitos Humanos: Constituição, Racismo e Relações Internacionais’, p. 16/18, 2005, Manole) e Valerio de Oliveira Mazzuoli (‘Curso de Direito Internacional Público’, p. 682/702, item n. 8, 2ª ed., 2007, RT), dentre outros eminentes autores – que sustentam, com sólida fundamentação teórica, que os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional, acentuando ainda, que as convenções internacionais em matéria de direitos humanos, celebradas pelo Brasil antes do advento da EC n. 45/2004, como ocorre com o Pacto de São José da Costa Rica, revestem-se de caráter de materialmente constitucional, compondo, sob tal perspectiva, a noção conceitual de bloco de constitucionalidade (HC n. 87.585/TO, julgado em 12 mar. 2008, voto do Ministro Celso de Mello Filho).

Comentando o tema, posiciona-se a doutrinadora Piovesan (2005, p. 72):

[...] todos os tratados de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do § 2° do art. 5°, e agora, poderão, a partir do § 3° do mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucionais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal.

Com esse entendimento, firmou-se a validade das normas

infraconstitucionais segundo um duplo controle vertical: devem ser compatíveis com as normas constitucionais e com os tratados internacionais sobre direitos humanos, aprovados consoante o rito previsto no § 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal, e também com os tratados internacionais sobre direitos humanos internalizados antes da Emenda Constitucional n° 45/04 (GOMES, 2008).

Todavia, Mazzuoli (2009, p. 764) mantém outra interpretação quanto à exigência de quorum consoante o §3º do artigo 5º, da Constituição Federal:

Tecnicamente, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil já têm status de norma constitucional, em virtude do disposto no § 2.º do art. 5.º da Constituição. Portanto, já se exclui, desde logo, o entendimento de que os tratados de direitos humanos não aprovados pela maioria qualificada do § 3.º do art. 5.º equivaleriam hierarquicamente à lei ordinária federal, uma vez que os mesmos teriam sido aprovados apenas por maioria simples (nos termos do art. 49, inc. I, da Constituição) e não pelo quorum que lhes impõe o referido parágrafo. [...] O que se deve entender é que o quorum que tal parágrafo estabelece serve tão-somente para atribuir eficácia formal a esses tratados no nosso ordenamento jurídico interno, e não para atribuir-lhes a índole e o nível materialmente constitucionais que eles já têm em virtude do § 2.º do art. 5.º da Carta de 1988.

Embora avançando no reconhecimento sobre a aplicação das normas internacionais de direitos humanos no direito interno, a posição dos Ministros do Supremo Tribunal Federal manteve-se refratária à supraconstitucionalidade. Ficou evidente a recusa em admitir normas com força superior à Constituição, o que implicaria transformá-las em instrumentos externos de controle da constitucionalidade, não somente das normas derivadas, mas também das produzidas pelo constituinte originário.

Todavia, para Vedel (1993) a supraconstitucionalidade não está nem no campo do direito natural, apenas nele se inspira, e tampouco situa-se no campo do direito positivo. Ela evoluiu em um campo extrajurídico, podendo ser considerada uma “perversão latente da lógica jurídica.” Em razão dessa natureza, é admissível que a supraconstitucionalidade imponha limites materiais à intervenção do constituinte, limites que não podem ser equiparados às regras do direito interno pelos juristas de orientação positivista.

No mesmo sentido, comenta com perspicácia Torcol (2005, p.7):

O que é dificilmente concebível – e até mesmo suportável – para um jurista constitucionalista, é constatar a desconstrução do poder constituinte. Todavia, os diferentes tipos de internacionalização têm colocado o poder constituinte ‘sob tutela’ e mesmo o confiscado definitivamente.75

A recusa em aceitar a supraconstitucionalidade tem sido feita a partir de uma lógica jurídica, a qual se apresenta como dotada de razoabilidade suficiente para embasar esse entendimento refratário. Nada mais falacioso, todavia. Por trás da tese da supremacia do Direito interno, como sustentáculo da soberania e da

75 Tradução livre do original: “Ce qui est difficilement concevable – voire même supportable – pour un

juriste constitutionnaliste, c’est d’avoir à constater la dépossession du pouvoir constituant. Et pourtant, les différents types d’internationalisations aboutissent toujours à mettre le pouvoir constituant «sous tutelle» voire à le confisquer définitivement.”

própria existência do Estado, há um viés político-ideológico que permeia o sistema jurídico.

É preciso sempre considerar a carga de subjetividade envolvida na decisão judicial, no sentido de que encerra um substrato ideológico que impregna a formação, as experiências, o modo de pensar do julgador, o qual não está isolado no mundo, mas vivendo nele. Conseqüentemente a sua decisão nunca pode subtrair-se a isso. Como assevera Azevêdo (2009, p. 66), a decisão judicial provém de um ator comprometido com a dogmatização do Direito. Esse ato representa um

[...] elemento constitutivo do subsistema social do direito, e que deve se prestar a reproduzi-lo dentro do sistema social e, ao mesmo tempo, diferenciá-lo dos demais subsistemas sociais, a exemplo da economia. Quanto maior a diferenciação do subsistema social do direito, maior a aparência da imparcialidade do ato de decisão judicial. Quanto maior a reprodução do subsistema social do direito, maior a importância do ato de decisão judicial, à medida que aumenta sua disseminação em meio ao tecido social.

O referido autor ampara-se na teoria dos sistemas de Luhmann (1983), para daí extrair fundamentos sobre a interrelação entre o Direito e outros subsistemas, de modo que não se pode atingir uma isenção absoluta: a atuação do julgador nunca é totalmente neutra.

Para Azevêdo (2009, p. 66),

[...] não se deve inferir destas ponderações que o fechamento operacional do subsistema social do direito implique, necessariamente, isolamento do direito autopoieticamente organizado e, por conseqüência, do ato de decisão judicial em relação aos demais subsistemas sociais, como a política, a economia, dentre outros. Fechamento operacional não significa isolamento, mas estabelecimento de critérios para admissão das influências desses outros subsistemas sociais. Critérios que são impostos pelo próprio direito positivo ‘mediante seus procedimentos de modificação e de adaptação, tais como novas legislações, jurisdição constitucional e concretizações jurisprudenciais em geral.

Nesse contexto, pode-se ressaltar a natureza político-ideológica da Constituição, como expõe Carvalho (2011, p. 16), afirmando que esse caráter

[...] torna difícil, senão impossível, estabelecer critérios absolutos de interpretação. As normas constitucionais contêm uma plasticidade muito grande, adequando-se às mutações sociais sem perder o seu caráter de normas de orientação política do Estado. As considerações políticas na interpretação constitucional são de importância bem maior do que na interpretação das normas infraconstitucionais com necessidade de a hermenêutica auxiliar na tarefa da interpretação constitucional de consagrar os valores políticos insculpidos na Lei Maior.

Não se pode negar a influência ideológica de um conjunto de determinações às quais o Direito, e seus aplicadores, não podem subtrair-se em razão da permeabilidade entre os subsistemas nos quais estão inseridos.

Por outro lado, Dworkin (2007) não nega a possibilidade de um Direito que se aproxima da sociedade, superando o problema de uma postura presa ao passado, influenciada por situações e idéias cristalizadas. Sua perspectiva de aplicação dos princípios é de uma prática em constante mutação, acompanhando as novas tendências e necessidades sociais, num processo de comunicação constante.

Na exposição de Arêas (2005, p. 581):

O juiz, portanto, que aceita o direito como integridade está sempre apto a abandonar princípios já seguidos no passado, pois, ora, é justamente esse argumento que diferencia a tese de Dworkin do pragmatismo e do convencionalismo. Nesse diapasão, o direito como integridade estaria a consagrar que os juízos formulados no passado possam ser futuramente modificados, conforme a melhor interpretação a ser no presente seguida.

O rigor formalista e conservador no Direito remete a um caráter utilitarista das normas, que tem delimitado o sentido da aplicação das normas dos direitos humanos, seguindo uma lógica segundo a qual eles “[...] devem ser respeitados se isto convier à promoção do bem-estar geral – identificando-se este com os interesses prevalecentes em cada sociedade” (SARMENTO, 2005, p. 62).

Por interesses prevalecentes entende-se aqueles pertinentes a uma parte substancial da sociedade, não no sentido da maioria, mas da porção mais influente, política, econômica ou por alguma outra via determinante no contexto das relações no interior dessa sociedade.

Nesse sentido, Sarmento (2005) crítica a despersonalização do indivíduo, numa sociedade que se diz pluralista, pautada na afirmação dos direitos da pessoa humana, mas que, no contexto sociopolítico e, por extensão, jurídico, tem como regra a negação de um efetivo centramento no indivíduo, superado pela sociedade e o Estado.

Observa-se, tanto na doutrina, como nos julgados, a preocupação com a construção de uma base racional-legal para a “supremacia” da Constituição, segundo a justificativa da necessidade (“manutenção do Estado” enquanto representante da vontade geral), daí derivando uma interpretação dogmática, porque entendida como suficiente em si mesma. Essa “verdade incontestável” nega a possibilidade de normas internacionais se sobreporem às normas constitucionais.

Todavia, a despeito da tese da supremacia do Estado, e da soberania que lhe é imanente como qualidade fundamental, trata-se de axioma76 de caráter apriorístico, não se verificando nos julgados, e tampouco na doutrina pátria, uma substancial fundamentação para validar de forma inquestionável o entendimento de que as normas do Direito Internacional não podem transcender a supremacia da Constituição.

Entende-se como axiomática essa posição que refuta a

supraconstitucionalidade das normas do Direito Internacional no campo dos direitos humanos, porque se apresenta como óbvia ou autodemonstrável, excluindo previamente quaisquer outras vias de raciocínio que possam tomar como ponto de partida uma idéia oposta, ou seja, questionar se é possível a existência de normas do Direito Internacional supraconstitucionais.

76 O axioma ou postulado denota “[…] uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que

Analisando-se o conteúdo dos julgados e da doutrina, o que se observa é um vazio argumentacional, para empregar os termos de Habermas (2003), caracterizando um processo circular de argumentação, tautológico, construído em torno da autosuficiência do conceito de norma constitucional originária, do qual emerge como corolário a supremacia das normas constitucionais, como se não houvesse nenhuma possibilidade de construir um raciocínio diferente, apto a justificar a relativização da soberania estatal e admitir a superioridade de normas supranacionais sobre as Constituições.

Todavia, à luz de uma análise mais acurada, o que se constata é uma indeterminação semântica em razão da imprecisão do conceito de soberania:

[...] trata-se de uma daquelas idéias pelas quais os homens muito combateram. Para obtê-la ou para defendê-la, tanto no seio da comunidade nacional como nas relações internacionais [...] Tantos usos não contribuíram em nada para precisar em que consiste: seu sentido é nebuloso, suas origens são esquecidas, seu titular é incerto. Quanto aos seus limites, eles variam segundo o interesse em questão; e é mesmo preciso questionar porque os indivíduos e os Estados se prendem a esse conceito?77

Desconstruindo o referido raciocínio axiomático, Vedel (1993, p. 80) observa com perspicácia que:

[...] não há, a nosso ver, objeção verdadeira a que certas regras de direito internacional sejam superiores à Constituição nacional. [...] Que essa superioridade da norma internacional sobre a norma nacional seja considerado como abrangido pelo conceito de ‘supraconstitucionalidade’ é gramaticalmente aceitável.78

77 Tradução livre da resenha da edição n. 67 da revista francesa “Pouvoirs”, jan. 1993: “La

souveraineté est de ces idées pour lesquelles les hommes se sont beaucoup battus. Pour l’obtenir ou pour la défendre, au sein de la communauté nationale comme dans les relations internationales [...] Tant d’utilisations n’ont guère contribué à préciser la notion : son sens est brouillé, ses origines sont oubliées, son titulaire est incertain. Quant à ses limites, elles varient au gré des intérêts en présence ; et il faudrait peut-être se demander pourquoi les individus et les Etats y sont rattachés?

78 “[…] qu’il n’y a pas, à nos yeux, d’objection véritable à ce que certaines règles de droit international

soient supérieures à la Constitution nationale. […] Que cette supériorité de la norme internationale sur la norme nationale soit regardée comme relevant du concept de « supraconstitutionnalité » est grammaticalement acceptable.”

As observações de Ávila (2007, p. 4) sobre a indeterminação do conceito de “interesse público” também podem servir para desconstruir esse dogmatismo positivista, estruturado em torno de uma lógica fechada em si mesma e sobre a qual repousa a refutação da supraconstitucionalidade das normas internacionais de direitos humanos em favor da exclusividade jurisdicional interna:

A dogmática jurídica, em vez de descrever e explicar o ordenamento jurídico, passa, em virtude da equivocidade dos seus enunciados, a encobri-lo ou não desvendá-lo. As teorias jurídicas passam a padecer de

inadequação sintática, na medida em que utilizam termos iguais para

explicar fenômenos desiguais, instalando, na ciência do Direito, o germe da ambigüidade. A interpretação e a aplicação do Direito, com a finalidade de explicar aquilo que o ordenamento determina, proíbe ou permite, passa a explicar, também, aquilo que não encontra sequer referibilidade indireta ao objeto descrito. A teoria jurídica padece, nesse caso, de inadequação semântica.

Confunde-se soberania e Direito nacional com dimensões basilares de construção da normatividade garantidora dos direitos humanos, como se