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2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: DO PENSAMENTO À PRAXIS POLÍTICA

2.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO E FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS: UM PERCURSO HISTÓRICO

Kant viveu em um momento ímpar na história européia, marcado pelo aprofundamento dos debates políticos que culminariam, no final do século XVIII, com grandes transformações sociais, políticas e econômicas. Nesse cenário tempestuoso, a Revolução Francesa foi o ponto culminante e decisivo para a reformulação dos fundamentos do poder político e do próprio Estado.

Lançando um olhar sobre esse processo histórico do qual resultou o fim do absolutismo na Europa, a implantação da primeira república liberal nos Estados Unidos e as revoluções libertárias na Europa do século XIX, é possível afirmar que a busca da igualdade de condições tornou-se uma via comum pela qual as sociedades lutaram para se livrar das amarras de regimes retrógrados, rumo a modelos democráticos, acompanhando um processo paralelo de crescimento da economia sob as instâncias do capitalismo, incompatível com a rigidez dos controles monárquicos tradicionais.

A cultura da legalidade48, formatada a partir da preocupação crescente da sociedade com um espaço amplo de liberdade de pensamento e expressão, e em especial, da possibilidade de livre escolha dos representantes no governo, não foi construída de maneira direta pelo consenso de todos.

48 Comentando sobre a repercussão desse vínculo entre público e privado no âmbito capitalista,

Grau (2002, p. 173) afirma: “A legalidade consubstancia extensão da teoria da soberania popular e da apresentação parlamentar. A Constituição contém a ação do Estado e a burguesia encontra, no quadro da separação dos poderes, condições adequadas à defesa de seus interesses econômicos; qualquer ‘atentado’ à liberdade econômica e à propriedade somente poderia ser consumado com o consenso dos representantes da burguesia, isto é, através de uma lei. A legalidade assume desde logo sua dupla face, como supremacia e reserva da lei. [...] à legalidade atribui-se o desempenho de duplo papel: o de instrumento ancilar dessa preservação e o de substituto da legitimidade.”

Pelo contrário, o desenvolvimento do Estado do Direito foi um processo lento, marcado por contradições e conflitos, inerentes à passagem das sociedades sob o jugo autoritário dos Estados, para sistemas democráticos de maior ou menor grau de participação política do conjunto da população.

A garantia de direitos não foi decorrência de atos voluntariosos do Estado, cedendo de bom grado às pressões da sociedade civil organizada. Do mesmo modo, a democracia não pode ser vista como um mero processo de adensamento dos direitos que culminou, de imediato, em maior liberdade política e na sujeição absoluta do Estado aos ditames constitucionais.

Nesse contexto, continuidades e descontinuidades caracterizaram a evolução das instituições políticas49, imbricadas em um contexto social e cultural, culminando com o reconhecimento e a garantia de certos direitos, que assumiram, por força da lei, o caráter de fundamentais.50

Conexa aos direitos humanos está a cidadania, podendo esta ser dissecada enquanto resultado dos avanços históricos no reconhecimento daqueles, em um processo marcado por sucessivas mudanças no pensamento e na práxis política ocidental.

Das relações calcadas na imperativa vontade do Estado, passou-se a uma reversão das posições até então inconciliáveis entre o ente estatal e os cidadãos.

49 “[...] os Direitos Humanos, referidos à pessoa humana historicamente considerada, acompanharam

as vicissitudes do desenvolvimento da humanidade, desde tempos imemoriais. Em outras palavras, impossível falar-se em Direitos Humanos sem reconhecer seu caráter histórico e contingente, ligados que são ao próprio desenvolvimento cultural da humanidade” (CORRÊA, 2008, p. 23).

50 Distinguem-se os direitos humanos dos direitos fundamentais. Apesar de serem empregados

indistintamente, “[...] a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fundamentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional)” (SARLET, 2006, p. 35-36).

No seio desse processo, destaca-se, originariamente, uma assimetria de poder em desfavor do indivíduo, como observa Dal Ri Júnior (2002, p. 53) ao sintetizar o pensamento hobbesiano:

O soberano em Thomas Hobbes é já absoluto, tendo dizimado todos os vínculos patrimoniais, corporativos e familiares que poderiam interferir na sua relação direta com os cidadãos e com a cidade. Com o desaparecimento destas interferências, o cidadão se vê sozinho de fronte ao soberano.

Partindo desse raciocínio, pode-se afirmar que a cidadania, e a afirmação dos direitos humanos, estão intrinsecamente conectadas a determinações de ordem histórica. O conteúdo semântico do conceito se confunde com o sentido que, na prática e na vivência dos homens, constitui o fundamento das suas relações, na condição de seres coletivamente vinculados em um sistema político. Sintetiza Silva (2007, p. 345-346) o conteúdo imanente da cidadania, em sua direta relação com a mobilização do sujeito enquanto co-participante ativo, ao lado do Estado, no processo de efetivação de direitos. Qualificando os participantes da vida do Estado, representa o “[...] atributo das pessoas integradas na sociedade estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela representação política.”

No mesmo sentido, Nabais (2007, p. 190) considera a cidadania como uma qualidade dos indivíduos, enquanto membros ativos de um Estado, sendo titulares ou destinatários “[...] de um determinado número de direitos e deveres universais e, por conseguinte, detentores de um específico nível de igualdade.”

A fundamentalização dos direitos do homem, portanto, não representa apenas o adensamento de valores e princípios como normas. Tem, também, um caráter instrumental, assegurando a coerência interna do sistema jurídico, conferindo ao Estado de Direito uma relação direta com cada indivíduo que dele faz parte.

Bobbio (1986, p. 34-35) deixa explícita essa relação entre afirmação de direitos e consolidação da democracia, ao afirmar que

A partir do momento em que o voto foi estendido aos analfabetos tornou-se inevitável que estes pedissem ao estado a instituição de escolas gratuitas; com isto, o estado teve que arcar com um ônus desconhecido pelo estado das oligarquias tradicionais e da primeira oligarquia burguesa. Quando o direito de voto foi estendido também aos não-proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham como propriedade tão-somente a força de trabalho, a conseqüência foi que se começou a exigir do estado a proteção contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais contra as doenças e a velhice, providências em favor da maternidade, casas a preços populares, etc. Assim aconteceu que o estado de serviços, o estado social, foi agrade ou não, a resposta a uma demanda vinda de baixo, a uma demanda democrática no sentido pleno da palavra.

Não se pode excluir, nesse processo histórico de emergência da práxis política e sua consolidação como expressão dos diferentes interesses e grupos sociais, a força das idéias enquanto substrato da ação.

O pensamento político construído por Rousseau, Montesquieu e Locke51, entre outros, dirigiu os debates sobre o fim do Estado baseado em privilégios e do exercício do poder alheio à vontade da coletividade, colocando em evidência a necessidade de um sistema político baseado na vontade geral.

Especial atenção foi dada ao tema por Rousseau, ao tratar do poder constituinte, como corpo político soberano. Analisando a sua obra, Duso (2005, p. 211) observa que a “vontade geral representativa” na visão do pensador francês deve ser entendida não apenas no sentido do exercício do poder constituído, mas, também, “[...] no nível mais alto do poder constituinte, uma vez que o povo, para se

51 Barberis (2005, p. 217) comenta que “Um velho lugar comum pretende que o liberalismo e

constitucionalismo – ou seja, teoria e práxis da limitação do poder – sejam oriundos da Inglaterra, e que a contribuição continental, notadamente francesa-revolucionária, seria ou puramente negativa – como no caso de Emmanuel Joseph Sieyès – ou amplamente tributária da tradição inglesa – como no caso de Montesquieu, Benjamin Constant e Madame de Staël [...] O lugar comum em questão, porém, possui, pelo menos, dois graves defeitos: um geral e outro particular. O defeito geral consiste, obviamente, em subestimar a contribuição francesa-revolucionária ao liberalismo e ao constitucionalismo; o defeito particular consiste em ocultar a derivação francesa-revolucionária de algumas doutrinas atualmente consideradas liberais e/ou constitucionalistas por excelência, como as de Constant e Madame de Staël.”

expressar, precisa sempre de um núcleo de pessoas, que é justamente a Assembléia Constituinte.”

Vislumbra-se em Rousseau, e nos expoentes franceses da idéia da vontade geral, os traços do racionalismo que conduziu à perspectiva de centralidade na vontade do indivíduo e da coletividade, de modo que a Constituição seria sempre um produto intencional.

Por outro lado, a tradição inglesa orientou-se pela idéia de que a constituição seria o resultado de uma evolução natural, decorrência de uma “força invisível”, a mesma encontrada na teoria de Adam Smith como base do equilíbrio econômico do mercado.52

Compreende-se a divergência das duas correntes em razão dos diferentes rumos que a relação entre Estado e sociedade tomaram na Inglaterra e na França, em decorrência da forma como o poder estatal se estruturou em cada um desses países.

Como expõe Barberis (2005), os franceses em geral se mostraram reticentes e contrários à adoção do modelo inglês parlamentarista. O que pode ser sido motivado pelo temor da substituição do poder absoluto de um monarca, por um modelo de separação dos poderes que, na prática, podia resultar em fortalecimento excessivo do Legislativo, e por extensão, na situação contraditória de uma nova forma de concentração de poder.

Os franceses também viam como excessiva e inadequada a interpenetração dos interesses corporativos no sistema inglês, principalmente no caso dos nobres que formavam a Câmara dos Lordes, parte do corpo legislativo. O que era

52 No livroTheory of Moral Sentiments (1759), Smith sugere que os indivíduos, ao buscarem a

satisfação de seus interesses e objetivos, promovem sem querer um interesse coletivo, em um processo não-intencional que se transforma na base do progresso geral da sociedade (BARBERIS, 2005).

incompatível com os termos da mobilização revolucionária francesa53, exigindo o fim das diferenças sociais no espaço da representação política, ou seja, o extermínio dos privilégios da nobreza e clero.

Por isso a ênfase dos franceses numa Constituição escrita, como produção racional e intencional, delimitando de forma precisa o espaço da representação política, ao contrário da estrutura normativa inglesa, baseada apenas na tradição, o que, na ótica francesa, seria um desvirtuamento da vontade geral do corpo político54, pois a existência de um regramento superior seria essencial para fixar garantias de direitos e limites ao exercício do poder que, sendo representativo, tinha como titular o povo.

A trajetória de emergência do constitucionalismo francês, através do embate violento entre as forças sociais, mais precisamente o “Terceiro Estado”, de um lado, e os privilegiados do outro (nobreza e clero), definiu o maior rigor na utilização de um instrumento de controle preciso dos poderes, por meio de uma carta constitucional.

A soberania da nação, como expressão da vontade geral, encontra-se nessa lei superior, da qual todas as outras leis devem nascer, definindo também o modo de estruturação do Estado e das suas instituições.

A soberania nacional fundamenta a titularidade do poder constituinte, que se encontra no povo. Mas por este é exercido, ganhando assim legitimidade para representá-la na elaboração da carta constitucional:

53 Barroso (2010) refere que o constitucionalismo tem como elemento comum a revolução. Não

considera desta natureza a “Revolução Gloriosa” de 1688 na Inglaterra, não tendo criado um novo Estado, e tampouco dela derivou uma carta escrita.

54 Para Sieyès (1988), uma carta constitucional justa, assegurando direitos fundamentais como

liberdade e igualdade de seus tutelados, não pode dar lugar a relações de força imperativamente construídas em privilégio de um grupo ou certa classe.

Ao combinar poder constituinte com sistema representativo, Sieyès admitiu que a Constituição fosse elaborada não diretamente pelo povo (que via como uma entidade puramente numérica), mas por uma assembléia constituinte, cujos órgãos representantes eram eleitos e que expressava a vontade da nação. Sendo soberana a assembléia, a Constituição por ela elaborada não precisava ser submetida à ratificação popular (BARROSO, 2010, p. 108).

Os limites ao exercício do poder constituinte derivado têm sua gênese nos escritos de Locke, Rousseau e Montesquieu. Justificam-se pela própria natureza do poder constituinte, que não se confunde com o poder originário que lhe dá forma, que está no povo55 e não pode ser transferido como observa Sieyès (1988, p. 117):

As leis constitucionais são consideradas fundamentais, não no sentido de que elas possam se tornar independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem e agem por elas não podem tocá-las. Em cada uma de suas partes, a constituição não é uma obra do poder constituído, mas do poder constituinte.56

O poder constituinte originário tem, portanto, a sua gênese na comunidade civil, sendo essa fonte soberana que define as condições pelas quais ele deverá ser exercido.57

É Importante determinar qual era a posição do indivíduo, na condição de cidadão, nesse momento histórico da constitucionalização. Remete-se às análises de Tocqueville58 (2005, p. 277), para quem

55 O povo não é um significado abstrato, mas um “complexo de forças políticas plurais” (CANOTILHO,

2011, p. 75).

56 Tradução livre do original: “Les lois constitutionnelles dont dites fondamentales, non pas en ce sens

qu’elles puissent devenir indépendantes de la volonté nationale, mais parce que les corps qui existent et agissent pour elles ne peuvent point y toucher. Dans chaque partie, la constitution n’est pas l’ouvrage du pouvoir constitué, mais du pouvoir constituant”.

57 “Essa concepção de poder constituinte surgiu primeiramente na experiência política norte-americana

ao final do século XVIII. Conforme o preâmbulo da Carta Constitucional dos Estados Unidos, o povo adota uma Constituição e se apresenta como a única autoridade legítima capaz de definir as condições e termos de exercício do poder. Essa apropriação da função constituinte pelo povo encontrou guarida na França revolucionária de 1789. Com a diferença de que, nesse país, o rei foi associado ao processo constituinte, pois no momento em que os Estados Gerais elaboravam a Declaração de Direitos não havia sido ainda o soberano destituído de seus poderes” (LAVROFF, 1999, p. 101-102).

58 A. de Tocqueville (1805-1859) ficou conhecido pelos estudos sobre o modelo democrático norte-

americano, tendo visitado os Estados Unidos entre 1831 e 1832, e nos anos seguintes outros países europeus. O conhecimento da realidade política norte-americana deu origem à obra “De la démocratie

em Amérique” (1835). Foi um teórico político e analista da nova era instalada com a

constitucionalização possibilitando a participação política, embora marcada pela estratificação social, gerada não mais pelas forças arcaicas do feudalismo, mas pelo contexto econômico do liberalismo e do capitalismo industrial.

Foi com a idéia dos direitos que os homens definiram o que eram a licença e a tirania. Esclarecido por ela, cada qual pode mostrar-se independente sem arrogância e submisso sem baixeza. O homem que obedece a violência se dobra e se rebaixa; mas quando se submete ao direito de comandar que reconhece a seu semelhante, eleva-se de certa forma acima daquele mesmo que o comanda. Não há grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos não há grande povo - pode-se dizer que não há sociedade, pois o que e uma reunião de seres racionais e inteligentes cujo único vínculo é a força?

O “espírito de cidadania” de que fala Tocqueville pode ser entendido como o resultado de um processo de dinamização da vida política, consolidando o papel de cada indivíduo na organização da sociedade. Tendo posto fim ao sistema absolutista, a Revolução Francesa desencadeou uma nova tendência política na Europa, rumo à constitucionalização de direitos,

O debate desse historiador francês, tratando das bases de uma sociedade democrática, expressa a preocupação com o exercício do poder baseado na substituição do despotismo dos reis por um sistema de governo orientado pela lei, dela emanando o espaço simbólico e prático das relações entre Estado e indivíduo.

Embora essas relações passassem a ser mediadas pelo Direito, isso não significou de imediato o amplo reconhecimento dos direitos humanos e a sua integração e ampliação no interior do sistema jurídico.

As teorias elaboradas por Rousseau, Montesquieu, Locke, entre outros, não trataram dos direitos humanos, embora tenham contribuído para as mudanças políticas que favoreceram a consolidação do constitucionalismo, base para o reconhecimento e a salvaguarda de tais direitos.

Em razão de uma visão política ancorada, principalmente, no interesse econômico da burguesia em ascensão, direitos individuais, como a liberdade, a igualdade e a propriedade, foram os primeiros a serem firmados e tutelados.

A despeito de ser erigida em um ideal e motor das lutas político-sociais no espaço democrático emergente ao longo do século XIX, a igualdade, em sentido

político, não foi acompanhada da igualdade material, em termos de acesso a bens e recursos essenciais a uma vida digna.

Como observa Scaff (2007), o constitucionalismo reconheceu primeiramente os direitos de primeira geração (civis e políticos, liberdade), os quais se caracterizam pela sua subjetividade e por serem oponíveis ao Estado. Apenas posteriormente os direitos sociais, culturais e econômicos, ou direitos de segunda geração receberam a garantia constitucional.

Houve, portanto, uma mudança de foco, passando-se do subjetivismo para o coletivismo, substituindo-se a concepção de um Estado não-interventor tendo em vista a plena liberdade individual, pela ídéia de um ente estatal com responsabilidade na efetivação de direitos de relevante teor social.

Esse desenvolvimento de um pensamento coletivista sobre os direitos não ocorreu senão a partir da emergência de uma consciência coletiva que exigia a mediação do Estado para o atendimento a necessidades humanas essenciais, e isso representou um avanço importante no reconhecimento de novos direitos.

A superação do viés restritivo sobre os direitos humanos deu-se em razão do desvalor do indivíduo pela ordem capitalista emergente, atingindo a sua essência, que é a dignidade humana, sendo esta a qualidade intrínseca do ser.

Ficou evidente a negação da dignidade quando o capital reduziu a existência dos indivíduos a um sentido puramente econômico, somente sendo considerados enquanto parcela indistinta do todo que constitui o objeto e o fim das estratégias e relações definidas no interior do sistema capitalista de produção e consumo, ou seja, como parte de um mercado e como motores do próprio capitalismo.

Num plano histórico, o século XIX desnudou as relações contraditórias entre o capitalismo e o ser humano que lhe dava sustentação. Como resultado, não

tardou a se desenvolver uma perspectiva crítica sobre a necessidade de mudanças na relação entre o Estado e o indivíduo, em dois campos distintos, porém interrelacionados: do pensamento e da práxis política.

A ação deu-se com a organização e a mobilização dos trabalhadores. Nesse cenário, foi a economia centrada no trabalho assalariado, explorado em proveito do capitalismo, que conduziu ao desenvolvimento de uma identidade de grupo, conduzindo a uma atuação política centrada na melhoria das condições de vida e na defesa de direitos coletivos.

Como explana Pagliarini (212, p. 7):

[...] o desejo da classe trabalhadora e da grande massa de indivíduos residentes num território estatal não era o de um Estado abstêmio, que deixasse fazer ou que deixasse passar, pois só faziam os burgueses, só passavam os burgueses. O que se queria era um Estado que fizesse, que agisse, que não se omitisse.

A consciência e a mobilização dos trabalhadores conduziu a um progressivo alargamento da previsão legal dos direitos humanos. Esse devir histórico do seu reconhecimento e tutela jurídica pode ser entendido como um processo de transformação do próprio Direito, associado às condições materiais de vida e à existência dos indivíduos.

Por isso entende Bobbio (1992, p. 5) que é preciso buscar a gênese dos direitos humanos não no campo metafísico, do direito natural, mas em situações concretas e objetivas:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi - e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos - que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades