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4 AS NORMAS TRIBUTÁRIAS COMO NORMAS DE DIREITOS HUMANOS

4.2 A IMPOSIÇÃO FISCAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO CONTRIBUINTE

A maneira como a relação tributária se apresenta hoje pode ser compreendida como resultado da evolução conceitual dos tributos, que permeia a trajetória do desenvolvimento social, político e econômico a partir do século XVIII, culminando com um período de maximização da garantia e tutela dos direitos fundamentais.

A fundamentalidade dos princípios e valores a eles vinculados, como fulcro das decisões no campo das relações entre Fisco e contribuinte, definiu um novo caminho para a construção das bases da imposição tributária. Foi um produto de mudanças no campo político-jurídico, entre os séculos XVIII e XIX, tendo como eixo central o desenvolvimento econômico capitalista e como desdobramento o desenvolvimento de um sistema de tributação moderno.

A legalidade tributária tem origem na história da constitucionalização dos direitos, em especial da liberdade e da propriedade privada, que marcaram a superação do estado absolutista pela afirmação dos valores políticos e socioeconômicos ancorados no liberalismo.

Como assevera Teixeira (2006, p. 32):

De outra sorte, com o Estado fiscal, as liberdades individuais tomam maior importância frente ao Estado, pois, nesta nova ordem, o tributo necessita de limitações em nome do respeito à liberdade do indivíduo e à propriedade privada deste, conforme propugnavam as declarações de direitos do homem e o constitucionalismo, que se desenvolvia a passos largos.

O Direito passou a representar um arcabouço racional de organização e manutenção da coesão social, sem eliminar a supremacia das vontades individuais, dentro dos limites necessários para a manutenção da integridade do corpo coletivo.112 A relação entre o Fisco e o contribuinte foi construída em torno de uma modernidade racionalizadora, considerada por Foucault (2006, p. 53) como o desenvolvimento de mecanismos sutis de exercício do poder visando a manutenção da ordem capitalista e sua afirmação frente aos indivíduos:

Podemos ver que a razão de Estado, no sentido de um governo racional capaz de aumentar a potência do Estado de acordo com ele mesmo, passa pela constituição prévia de um determinado tipo de saber. O governo só é possível se a força do Estado for conhecida; só assim poderá ser mantida. A capacidade do Estado e os meios para aumentar devem também ser conhecidos, assim como a força e a capacidade de outros Estados.

A lei tornou-se o instrumento racionalizador por excelência da atuação do Estado, e por extensão, das suas estratégias de arrecadação tributária, no contexto de um sistema político pautado no interesse privado e na maximização da iniciativa individual:

Para o devido entendimento acerca da legalidade no direito tributário, deve-se analisá-lo inserido na idéia de Estado de Direito e em sua feição liberal. A legalidade surge justamente diante do esforço de ascensão política por parte da burguesia, no contexto do século XVIII, e de sua necessidade de impor mais controle à atuação estatal, para permitir a livre fruição de bens e a segurança das relações jurídicas privadas (ANDRADE, 2006, p. 71).

Os direitos constitucionais da propriedade individual e da liberdade, erigidos em garantias indissociadas do indivíduo como forma de contrapor-se á

112 Interessante reflexão sobre o Direito entrelaçado às condições sociais de existência e às regras do

poder e legitimação do seu exercício por um grupo é feita por Morrison (2006, p. 619): “Kafka situa os sujeitos do seu conto num dilema sutil: o estado de direito é dado por certo, mas em termos práticos isso significa que o domínio da nobreza é inquestionável. Uma vez que o segredo do direito só é conhecido pela nobreza, só eles podem alegar saber o que é preciso fazer e, na verdade, o que deve ser feito; a população – como admitiu Hart (1961) só precisa, em última instância, confiar na integridade com que as autoridades desempenham sua tarefa. (É tentador substituir a nobreza de Kafka por ‘especialistas’, obtendo a imagem de dominação numa modernidade supostamente racional fundada sobre a mais profunda irracionalidade).”

discricionariedades da autoridade estatal, não significaram irrestrita concessão de privilégios.

No que se refere à reserva de um campo possível e específico de ação conferido ao Estado, este se manteve, ainda que sob a égide do Direito, em posição superior enquanto poder soberano.

A soberania é o fundamento da imposição tributária e, portanto, base da existência e continuidade do Estado. O constitucionalismo estabeleceu os limites e espaços possíveis de atuação estatal, inclusive na criação e cobrança de tributos, ampliando e consolidando um conjunto de direitos.

Não foi, todavia, nos primórdios do constitucionalismo, mas apenas há poucas décadas que se desenvolveu a compreensão da indissociável relação entre tributação e direitos humanos.

À luz da imperiosa necessidade de arrecadação do Estado, firmou-se uma perspectiva manifestamente centrada na vontade soberana do ente estatal para estabelecer as bases e instrumentos arrecadatórios, ainda que sob a exigência constitucional da previsão prévia em lei. Todavia, como lembra Ergec (2005, p. 5):

[...] atos e normas fiscais podem atingir seriamente os direitos dos contribuintes no seu patrimônio, na sua atividade profissional, em sua reputação e honra, na sua vida privada e na sua liberdade individual. À medida que a imposição fiscal se intensificou e se diversificou, envolvendo quase todas as facetas da atividade humana, a necessidade de apelar aos direitos do homem gradualmente ganhou força.113

A fundamentalização dos direitos, porém, não impediu que, na seara tributária, se observasse a sobreposição do interesse da arrecadação, da

113 Tradução livre do original: “Pourtant, les actes et normes fiscaux peuvent gravement affecter les

droits des particuliers dans leur patrimoine, dans leur activité professionnelle, dans leur reputation et honneur, dans leur vie privée et dans leur liberté individuelle. Á mesure que la pression fiscal s’est accrue et s’est diversifiée, embrassant presque toutes les facettes de l’activité humaine, la nécessité de faire appel aux droits de l’homme a graduellement gagné les esprits.”

consecução de metas fiscais, finalística essa que tem sido priorizada e exacerbada em detrimento dos direitos do cidadão.

Um exemplo atual é a criação de sistemas de tributação padronizantes ou de massa114, pela média, desconsiderando situações individuais, deixando-se de observar a pessoalidade, e até mesmo a capacidade contributiva.

Em nome da praticidade, a eficácia e eficiência da Administração Pública, cada vez mais são adotadas sistemáticas de tributação centradas em presunções, em critérios não objetivos, num “[...] modo de raciocinar administrativamente padronizante [...]” (DERZI, 2010, p. 1271).

Evita-se assim o tratamento individual dos casos, no intuito de tornar mais rápida e operante a atuação do Fisco, o que, todavia, acaba por subverter a relação tributária, transformando-a em relação assimétrica de poder, centrada no interesse arrecadatório do Estado, e não no princípio da justiça fiscal. Como explica Derzi (2010, p. 1269):

Essa tensão entre princípios básicos e contrários tende a se acentuar com a crescente elevação dos custos administrativos, o progresso econômico e o aumento em escala geométrica da massa de contribuintes. O processamento dos dados tributários e o lançamento do tributo por meio de computadores na aplicação da lei em massa são necessidades que pressionam no sentido de uma simplificação da execução.

Continuando suas reflexões, assevera Derzi (2010, p. 1275) que:

114 Derzi (2010, p. 1262-1263) observa que a simplificação encerra pensamento padronizante: “O ‘tipo’,

esquema ou padrão – quer resulte de características comuns, médias ou freqüentes de uma multiplicidade de fenômenos, quer de um caso isolado erigido como modelo do normal – nesse processo, altera o programa da norma e substitui os fatos isolados por uma presunção. Daí resultou a expressão, atribuída pela doutrina estrangeira, de modo de ‘pensar tipificante’, que serve para designar essa técnica de simplificar a execução da lei [...] Entretanto, desse modo de pensar não resultam verdadeiros tipos jurídicos, como ordens abertas, graduáveis, transitivas, de características renunciáveis. Nesse processo, ao contrário, são produzidos rígidos padrões, esquemas fixos, em regra numericamente definidos, não raro funcionando como presunções iuris et de iure. A criação de tipos propriamente ditos é meio que abstrai e generaliza [...] o objetivo da padronização simplificadora é exatamente evitar a aplicação individual do Direito (que o tipo, no sentido próprio do termo, propicia), estabelecendo, através da uniformidade rígida e fixa, a aplicação da lei a milhares de casos.”

[...] a abstração, o universalismo, a unidade da razão, a axiomatização, a simplicidade e a segurança não são características modernas? O que não se pode admitir é a objetivação extrema, que tais fórmulas abrigam, com desprezo pelo subjetivismo, pela capacidade contributiva individual e pessoal. Sobretudo não se pode admitir a sobreposição da praticidade sobre a justiça, o abandono dos compromissos do Estado Democrático de Direito.

Infere-se das ponderações da referida doutrinadora que a tributação tende cada vez mais a utilizar estratégias subreptícias, as quais possibilitam, mesmo sob a legalidade imperante, estabelecer vantagens para a máquina fiscal, a despeito dos direitos assegurados aos contribuintes.

Esse cenário evidencia um acirramento da relação assimétrica de poder, com repercussão sobre a possibilidade de desenvolvimento de uma democracia substancial, em substituição à democracia formal.

Desconstruída a idéia de alteridade115, que nasce do reconhecimento de uma posição equivalente no jogo de forças e relações entre o Estado e o indivíduo, substitui-se a noção de responsabilidade moral do ente estatal pela consecução da justiça fiscal e social, por uma justificava de “estado de necessidade administrativa”, como denomina Derzi (2010, p. 1270), o que permite tornar o discurso do “Leviatã tributário” dotado de aparente legitimidade e conformidade com os interesses da sociedade.

A aparência, no discurso político, é fundamental ao Estado na contemporaneidade como assevera Lyotard (2002), pois é preciso cada vez mais recorrer à força dos argumentos para assegurar uma via de consenso no mundo pós-moderno, no qual se instalou a descrença nas grandes narrativas do passado.

A utilização de instrumentos de persuasão é parte essencial do discurso político, e isso tem sido utilizado pelo Estado para atingir certos propósitos,

115 A alteridade refere-se ao reconhecimento do outro como igual; a consciência de si é, também, a

consciência acerca do outro, fundamento de toda relação ética e, nesse sentido, delimita a posição do Estado frente ao indivíduo cidadão.

inclusive no campo da tributação, quando o objetivo primordial é assegurar o aumento da eficácia e da eficiência arrecadatória.

O discurso é mais do que um jogo de palavras, uma estrutura lógica aparentemente dotada de coerência e relação objetiva com certa realidade, “[...] não podendo ser entendido como um fenômeno de mera expressão de algo: apresenta regularidades intrínsecas a si mesmo, através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é própria” (FISCHER, 2001, p. 200).

No propósito maximizar a eficácia e a eficiência do modelo de tributação, justifica-se a criação de novas sistemáticas arrecadatórias como, por exemplo, o emprego da tipificação na simplificação tributária, consoante as críticas de Derzi (2010).

Em nome do interesse público definem-se os instrumentos pelos quais a finalística da arrecadação é alcançada, mesmo que em detrimento dos direitos elementares dos contribuintes.116

Ressalta-se que o termo “interesse público” encerra múltiplos sentidos, o que facilita a sua apropriação pelo discurso estatal, para construir justificativas coerentes com a racionalidade exigida para as decisões administrativas, e também, com uma perspectiva democrática de vínculo entre as ações do Estado e a vontade coletiva.

Não se está atacando a utilização de instrumentos essenciais à gestão moderna, em razão da necessidade de se adaptar o ente estatal ao cenário de maior complexidade do mundo pós-moderno, no qual se apresentam mais diversificadas e

116 Rothbard (2010, p. 239) refletindo sobre o papel da ideologia na construção de discursos

legitimadores do Estado, afirma: “O teor específico das ideologias tem obviamente mudado com o passar do tempo, de acordo com as mudanças das condições e culturas. Nos despotismos orientais, o imperador era freqüentemente sustentado pela Igreja sob o argumento de ele próprio ser divino; em nossa época mais profana, o argumento inclina-se mais para ‘o bem público’ e o ‘bem estar geral’. Mas o propósito é sempre o mesmo: convencer o público de que o que o Estado faz não é, como alguém poderia pensar, crime em uma escala descomunal, mas uma coisa necessária e vital que deve ser apoiada e obedecida.”

imprecisas as relações e interesses exigindo novas sistemáticas de tributação, como é o caso da simplificação tributária, que possibilita a melhor execução da lei fiscal.

Todavia, inafastável também é a preservação do direito individual, como pressupõe a relação de alteridade que deve permear a tributação, pois mesmo o propósito da arrecadação de tributos, vinculado à satisfatividade do interesse público, não pode ser argüido como justificativa para construção de assimetria relacional em detrimento do respeito à primazia dos direitos fundamentais, base do Estado de Direito.

Como sintetiza Derzi (2010, p. 1275):

De modo algum se nega que o legislador possa criar presunções jurídicas por razões as mais diversificadas (praticidade, prevenção da sonegação etc.). Mas nunca iuris et de iure, contra o princípio da realidade e da capacidade econômica. O que se afirma apenas é que, em qualquer caso, seja nas ficções e presunções, seja no estabelecimento de somatórios, pautas, tipos ou conceitos fechados, o legislador tem de ser fiel à Constituição, aos seus valores e princípios. Sua liberdade está restringida por aqueles valores e princípios, sua discricionariedade não se confunde com o arbítrio de um querer qualquer que não encontra justificação naquelas normas superiores da Constituição. A praticidade não tem primazia sobre a justiça (que é sempre individual). (grifos da autora)

Nesse caso, para transpor a fronteira entre o dito e o não-dito, é necessário definir mais precisamente o que se pode entender por “interesse público”, tomando como referência o conceito basilar de cidadania.

O recurso a noções carregadas de sentido e significado no contexto das relações sociais caracteriza-se como a produção de um discurso, no qual o Estado aparece como o ator mais capacitado a determinar o que é bom ou não para a sociedade.

Transformam-se assim as bases da cidadania e da representatividade, excluindo os indivíduos do processo decisório, embora o núcleo do discurso que permeia as decisões políticas, inclusive as que tratam da tributação, esteja centrado na consecução do interesse público.

Deve-se resgatar o sentido da relação tributária e a sua vinculação originária a direitos fundamentais do indivíduo considerado em sua singularidade, e não

enquanto mero integrante da massa indistinta do coletivo, condição essencial para assegurar a efetividade dos direitos humanos em todos os campos, inclusive na seara tributária.

Para isso deve-se adotar uma perspectiva centrada nos valores universais, como substrato axiológico e força imanente dos direitos de todo ser humano, que também fundamenta a busca da sua satisfatividade para além do campo do direito formal interno.

4.3 A SUPERAÇÃO DO LEGALISMO E A GARANTIA DOS DIREITOS DO