• Nenhum resultado encontrado

4 AS NORMAS TRIBUTÁRIAS COMO NORMAS DE DIREITOS HUMANOS

4.3 A SUPERAÇÃO DO LEGALISMO E A GARANTIA DOS DIREITOS DO CIDADÃO CONTRIBUINTE

Se a constitucionalização foi crucial para o reconhecimento da fundamentalidade dos direitos humanos, outro marco para sua garantia e efetividade é o reconhecimento dos valores no Direito, com o pós-positivismo que, na exposição de Neves (1995, p. 32), expressa um “[...] profundo cepticismo quanto à autonomia do direito e à capacidade materialmente regulativa da juridicidade.”

Nessa concepção hodierna, a carga valorativa é tão importante quanto o conjunto normativo concretamente efetivado no sistema jurídico. O reconhecimento dos princípios e valores influencia cada vez mais a forma como é pensada a relação entre o Estado e os cidadãos, inclusive na sua condição de contribuintes.

A relação entre Estado e contribuinte, sob o ponto de vista principiológico, não pode se resumir a regras de imperatividade, nas quais o dever-ser tem objetivo arrecadatório, gerando a obrigação consequente de contribuir.

No Direito ancorado nos princípios e no reconhecimento da sua força normativa, a relação tributária não tem mais um caráter absoluto e inquestionável, no sentido de obrigação que se justifica por si mesma porque nascida da determinação legal.

Nogueira (2008, p. 42) observa que “No campo específico do direito tributário, os ‘princípios’ têm, em todas as épocas, servido de suporte para a estruturação do

sistema jurídico como um todo e, ainda, para preencher o conteúdo das normas jurídicas.”

O fortalecimento dos princípios de proteção tributária, inseridos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e abraçados fortemente pelas Constituições, permitiram, por corolário, a robustez da cidadania tributária, muito embora seja um processo doloroso, vagaroso e de constante sentinela.

Com o reconhecimento da força normativa dos princípios cria-se uma ponte entre o valor e a norma em seu sentido positivo, superando-se a interpretação juspositivista, segundo a qual todo valor encontra-se num campo puramente especulativo e subjetivo, e a norma é objetiva e aplicável, pois deriva não de posição interpretativa, mas do que é concreto e determinado.

Toda imposição tributária supostamente está ancorada em metodologia racional, com o emprego de instrumentais estatísticos e cálculos que conferem adequada determinação dos valores devidos pelo contribuinte. A própria estrutura do sistema tributário, as regras de incidência, alíquotas e outras especificidades relativas à cobrança dos tributos apresentam-se segundo uma organização lógica e racional, supostamente apta a assegurar a justa arrecadação do que é devido ao Fisco.

Todavia, confunde-se eficiência com justiça fiscal117, segundo a ótica distorcida dos paradigmas tributários construídos pelo Estado, os quais, mesmo se amparados na observância de requisitos legais, tendem a ser definidos segundo o viés unilateral do ente estatal em sua voracidade arrecadatória.

117 Segundo Aveline (2007, p. 253) “[...] se o objetivo da tributação é também o de possibilitar a

ampliação da liberdade, com o conseqüente aumento da riqueza da nação, não parece haver qualquer incompatibilidade entre eficiência e justiça fiscal. Ao contrário, a eficiência parece ser atributo inerente à idéia de liberdade em um Estado Fiscal.” Obviamente o autor refere-se a uma situação ideal, que está longe de ser a realidade brasileira no momento. A crítica feita aqui sobre a identificação da justiça fiscal com eficência é no sentido de que o Estado brasileiro, ao priorizar o emprego de instrumentos e mecanismos fiscais tendo em vista tão somente seus objetivos arrecadatórios, tem buscado apenas maximizar a entrada de recursos por meio da tributação, sem uma real contrapartida, com o atendimento das necessidades individuais e sociais baseado na observância da finalística que lhe é inerente como agente concretizador das demandas coletivas.

Assim, por exemplo, o discurso da justiça social tem sido construído pelo Estado a partir da tributação progressiva, preocupando-se em destacar que os ricos pagam mais tributos, mas o que se verifica é cada vez mais o emprego do subterfúgio do imposto invisível, que incide sobre todos, não sendo percebido pelos mais pobres como uma carga tributária que lhes é muito mais onerosa.

Sobre a questão, Reichman; Planté (2012, p. 1) afirmam:

Tal é a regra da maior parte das democracias ocidentais. Ela tem por nome ‘justiça social’ e apresenta, para os homens do Estado, a imensa vantagem de ocupar os sentimentos do povo, dispensando-o de se questionar sobre o que não vai bem no país, começando pelos impostos que ele paga evidentemente, mas de modo tão pouco visível quanto possível, pois é necessário que nossos príncipes e seu Estado vivam.118

Seguindo essa linha de pensamento, há apenas uma ilusão de justiça social, satisfazendo o sentimento coletivo de inveja.119 O que se entende por consenso, ou vontade da maioria, segundo a idéia tradicional de democracia, é, na verdade, a manifestação da inveja transformada em mobilização coletiva (SCHOEK, 1969). Nasce de um sentimento de inferioridade, da impossibilidade de usufruir as mesmas benesses que os ricos em razão de sua capacidade econômica. E assim, confunde-se a justiça com uma imposição tributária mais gravosa para os níveis de renda mais altos.

Apesar dos avanços na vinculação da vontade estatal à vontade geral da sociedade, estabeleceram-se novas formas de assimetria do poder na relação entre o Estado e indivíduo, marcando também o campo da tributação.

118 Tradução livre do original: “Telle est la règle de la plupart des ‘démocraties’ occidentales. Elle a

pour nom ‘justice sociale’ et présente, pour les hommes de l'État, l'immense avantage d'occuper les sentiments du peuple, le dispensant de s'interroger sur ce qui va mal dans le pays, en commençant par les impôts qu'il paie évidemment, mais de façon aussi peu visible que possible, car il faut bien que nos princes et leur État vivent.”

119 “Calcadas num sentimento de injustiça pelas diferenças (sejam elas quais forem: financeiras, estéticas,

filosóficas) e na idéia de que todos deveriam ser igualmente contemplados, muitas políticas de expropriação foram conduzidas. Desde o sec. XVIII, com o emblemático lema da revolução francesa ‘igualdade, fraternidade e liberdade’ até as revoluções socialistas (sec. XIX e XX) apregoa-se esta filosofia da igualdade, um ópio para o sentimento de inveja, que ganha força demagógica nesta, aparentemente justa, indignação.” (COUKIER, 2011, p. 14).

O poder de tributar passou a ser um produto de discursos racionalizadores, os quais transformaram a idéia de representatividade do regime democrático em um suposto consenso geral que dá “cartas brancas” à atuação dos governantes.120

Todavia, a racionalidade pretendida se esvai em fumaça ao ser contraposta a um conjunto de elementos axiológicos, intrínsecos ao sistema jurídico como um todo, os quais, uma vez considerados, evidenciam um conflito inexorável entre os dois eixos da relação tributária: a intenção ou busca da praticidade fiscal, e a preservação dos direitos do contribuinte.

O subsistema tributário não está fechado em si mesmo, mas interrelaciona- se com outros subsistemas, integrando-se ao sistema jurídico como um todo. De forma que os aplicadores do Direito não podem deixar de adotar essa perspectiva, sob pena de denegarem direitos elementares, pois tal postura implica em visão fragmentada do real, substituindo-se a realidade mesma pela ficção, como ocorre, por exemplo, no emprego da presunção tributária para a determinação do valor arrecadatório.

A obstinada imposição tributária torna evidente a vulnerabilidade do cidadão contribuinte, e imprescindível a proteção da confiança, basilar na relação tributária. Sobre o tema, explana Derzi (2009, p. 397-398):

120 Comentando a conduta do Estado perante os indivíduos, Rothbard (2010, p. 238-239) ressalta que

a legitimação do exercício do poder faz-se por meio de argumentos próprios da democracia, com base numa suposta representatividade, o que possibilita a aceitação inconteste do seu poder, mesmo quando fundada em atos coercitivos, como na imposição de tributos: “Mas o Estado, em contraste com uma quadrilha de ladrões de estrada, não é considerado uma organização criminosa; ao contrário, seus subordinados em quase toda parte tem lhe assegurado as posições de status mais elevados da sociedade. Este é um status que possibilita que o Estado se alimente de suas vítimas enquanto faz com que pelo menos a maioria delas o apóie, ou ao menos aceite este processo explorador. Este apoio é obtido com o Estado sendo uma ‘democracia’, uma ditadura ou uma monarquia absolutista. Pois o apoio depende da disposição da maioria (e não, novamente, de todos

os indivíduos) de acompanhar o sistema: de pagar os impostos, de ir sem muita reclamação lutar as

A fundamentação mais recente do princípio da proteção da confiança não se satisfaz com a invocação difusa da segurança jurídica, da estabilidade das relações e da previsibilidade inerentes ao Estado de Direito. Ela ainda se enriquece com os seguintes argumentos: a) a relação de dependência das pessoas privadas em relação ao Estado tem sido cada vez mais invocada. Já há mais de quarenta anos, O. Bachof [...] profetizou uma ‘quase total dependência do indivíduo ao Estado todo poderoso’, o que projeta os deveres do Estado de transparência, lealdade, publicidade, constância e continuidade com muito mais força do que antes.

Evidentes, portanto, as contradições na relação tributária, pois o propósito da praticidade que tem levado a novas e variadas estratégias fiscais que não se adequam às exigências da garantia e da efetiva concretização dos direitos fundamentais do contribuinte. Pelo contrário, a assimetria relacional resulta em quebra da confiança, sendo inobservadas as garantias121 constitucionais, de modo que deixa a tributação de pautar-se na alteridade.

Quando se fala em relação de alteridade, faz-se referência à confiança e à boa-fé objetiva122, que devem ser observadas na relação tributária, a ser construída de modo a garantir a certeza123 ou a segurança jurídica para o contribuinte, tanto quanto buscar a certeza ou praticidade por parte do Fisco. Qualquer outro modo de construção dessa relação implica em desconstrução da cidadania. Pode-se afirmar, portanto, que este representa a própria essência da relação tributária.

121 Como explica Garcia (2004), garantias não se confundem com direitos, mas são instrumentos

assecuratórios destes, constituindo assim bases da sua efetividade; o direito, para concretizar-se não depende apenas do seu reconhecimento com a previsão normativa que o estabelece, sendo necessário instrumentos que lhe conferem possibilidade de concretude, para além da declaração formal. Ainda segundo Bastos (1986, p. 231-232), “Enquanto os direitos individuais asseguram bens da vida (a liberdade, a igualdade, a propriedade) [...] as chamadas garantias individuais cingem-se ao asseguramento, à proteção jurídica daqueles bens, mas não podem ser valorados senão a partir do sistema jurídico.” Por outro lado, em sentido amplo, garantias não deixam de ser direitos, uma vez que “[...] todos são direitos por se caracterizarem na outorga de prerrogativas ou na proteção de interesses tutelados pela ordem jurídica.”

122 Derzi (2008) comenta acerca das ações da Fazenda Pública no intuito de ameaçar e constranger o

contribuinte, por meio da divulgação de listas de supostos devedores, pedidos de prisão e de falência, caracterizando má-fé e evidente desrespeito à confiança do contribuinte.

123 O Estado de Direito está fundado em padrões estruturantes e princípios, sendo dois deles

elementares a sua preservação: o princípio da segurança jurídica e o princípio da confiança do cidadão (CANOTILHO, 2011).

Sob o ponto de vista principiológico, a relação entre Estado e contribuinte não pode se resumir a regras de imperatividade, nas quais o dever-ser tem objetivo arrecadatório, gerando a obrigação consequente de contribuir.

No Direito ancorado nos princípios e no reconhecimento da sua força normativa, a relação tributária não tem mais caráter absoluto e inquestionável, no sentido de obrigação que se justifica por si mesma porque nascida da determinação legal da autoridade estatal. Acima desta se encontram os princípios e valores a eles conexos, irradiando-se por todo o sistema jurídico e, portanto, com inflexão direta sobre o conjunto normativo tributário, delineando as bases de concretização dos direitos do cidadão contribuinte e os limites da imposição fiscal.

A indivisibilidade e a fundamentalização dos direitos fundamentais do contribuinte têm como alvo imediato a dignidade humana, princípio e valor constitucional basilar.

O termo “dignidade humana” é polissêmico, o que dá ampla margem à discussão quando se trata da construção de conceito objetivo e sua relação com os direitos fundamentais.

Na concepção de Sarlet (2006, p. 60), a dignidade da pessoa humana é

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Também é considerada como fundamento de validade universal dos direitos humanos, concepção segundo a qual, a despeito da relativização dos valores derivada das diferenças culturais, existe um substrato irredutível e comum a todos os homens, que é a sua dignidade. Não se admite nenhuma afronta a esse valor

universal e inerente ao ser humano, ainda que sob a justificativa de estar sendo observada prática associada à cultura elaborada por determinada sociedade e que se apresenta com a sua própria essência identitária.

Independente de ser a dignidade humana um conceito difuso situado na vasta dimensão axiológica, no campo dos ideais e de interpretação carregada de subjetividade, é certo que tem um papel importante na discussão da conformação do Direito Tributário à essencialidade do homem, ontologicamente124 considerado.

Enquanto princípio, a dignidade representa a

[...] elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial, devendo garantir-lhe um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para lhe proporcionar vida com dignidade (FARIAS, 2005, p. 96).

Em sua dimensão principiológica, a dignidade tornou-se referencial da busca de efetivação dos direitos fundamentais. Representa a ruptura com a ênfase na centralidade do direito positivo, alargando as possibilidades de estabelecer critérios para a clarificação da aplicabilidade das garantias constitucionais, diante da diversidade e complexidade de situações vivenciadas pelo homem contemporâneo.

Comentando sobre a consagração do universalismo sobre as peculiares e intransigentes posições relativistas quanto aos direitos humanos, Piovesan (2010) aponta a Declaração de Direitos Humanos de Viena (1993), como um marco no reconhecimento de um mínimo ético universal, a partir do qual não se pode transigir quando se trata da proteção e garantia aos direitos do indivíduo, mesmo que seja necessário reconhecer a existência da diversidade cultural e das diferenças de interpretação sobre os direitos humanos em sentido amplo.

124 A Ontologia é a parte da filosofia que se dedica ao estudo do ser enquanto objeto do

No campo do Direito Tributário é importante adotar essa perspectiva do “mínimo ético” como critério de análise da flexibilização das garantias aos direitos fundamentais, que tem sido imposta pela afirmação da vontade soberana do Estado no campo tributário, a despeito das garantias constitucionais que visam proteger o cidadão do arbítrio tributário.

O Estado tem utilizado uma retórica que serve tanto para justificar, como para conferir aparente legitimidade a suas estratégias arrecadatórias, e para isso tem sido útil a associação entre sua soberania e a capacidade de assegurar o bem-estar comum. Apresenta-se então como aquele que pode realizar as melhores escolhas para o indivíduo, dotado das necessárias competências para a consecução do bem- estar geral.

A referência ao “interesse público” tem servido para justificar uma gama de ações e decisões estatais, apresentando-se o Estado como a real expressão do interesse geral e, por extensão, aquele que pode concretizar o que, inicialmente, situa-se na dimensão puramente subjetiva dos anseios e expectativas individuais.

Portanto, transforma-se o que seria o fim ou o objeto das ações estatais em essência do próprio Estado, caracterizando-o como a personificação do coletivo, o que dá margem para a imposição fiscal sob a justificativa da inafastável consecução do interesse público.

Nada mais enganador, todavia. Moraes (1999), ao tratar da questão da indeterminação conceitual na seara jurídica, vislumbra na vaguidade semântica125 a possibilidade de interpretações diversas, caracterizando o que denomina de

125 Como explica Di Pietro (2001, p. 97), conceito indeterminado é o termo relativo aos vocábulos ou

expressões jurídicas “[...] que não têm um sentido preciso, objetivo, determinado, mas que são encontrados com grande freqüência nas normas jurídicas dos vários ramos do direito. Fala-se em boa-fé, bem comum, conduta irrepreensível, pena adequada, interesse público [...].”

“intelecções diferentes” (p. 23), “[...] sem que, por isto, uma delas tenha de ser havida como incorreta, desde que quaisquer delas sejam igualmente razoáveis”.

Quando se fala em supremacia do interesse público, portanto, é necessário clarificar em que consiste tal “interesse”. A intelecção do conteúdo da norma nesse caso precisa ser feita de modo a realizar o que Andrade (2009) considera um processo cognitivo, por meio do qual, numa dinâmica de criação e reconstrução da situação factual chega-se a um pressuposto normativo de caráter abstrato, mas vinculando-se a certas referências definidas a partir da escolha do agente entre diferentes alternativas, que definem uma valoração própria.

Meirelles (1996, p. 81) apresenta o interesse público como fim primeiro da Administração Pública, o qual se concretiza nas “[...] aspirações ou vantagens licitamente almejadas por toda a comunidade administrada, ou por uma parte expressiva de seus membros”.

À primeira vista, o interesse público remete à força imanente da sociedade, todavia, com brilhante acuidade, ressalta Mancuso (2000, p. 29) que, “Quando se lê ou se ouve a expressão ‘interesse público’, a presença do Estado se nos afigura em primeiro plano”.

Tratando do tema, Lambert (1985, p. 111) afirma que a Administração é “[...] intrinsecamente baseada na força: ela organiza e age em uma perspectiva global – onde o motor é a ideologia do interesse geral que justifica tudo e explica tudo - sem jamais definir seu conteúdo.”126

O ente estatal emerge com toda a sua força quando se fala em interesse público porque este remete a uma aspiração que não está no plano puramente

126 Tradução livre do original: “L'administration intrinsèquement contraint; elle classe et agit dans une

perspective globalisante - dont le moteur est I'idéologie de l’intérêt général qui justifie tout et explique tout - sans jamais définir son contenu [...]”

metafísico, mas constitui uma vontade coletiva a ser efetivada, o que, todavia, depende essencialmente da mediação do Estado.

Buscando apoio nas reflexões de Mazzilli (2000), o conceito de interesse público não se encontra numa dimensão abstrata, generalista, mas na realidade relacional que contrapõe dois entes elementares, o Estado e o indivíduo.

Mello (2009), seguindo a linha de pensamento da doutrina italiana, aponta duas dimensões distintas do termo: o interesse público primário, que remete à vontade geral, e o interesse público secundário, pertinente ao campo restrito da vontade do ente estatal.

Diferentes quanto ao sentido, mas não excludentes, de forma que a supremacia do interesse primário é condição sine qua non para definir o alcance e limites da discricionariedade127 da Administração Pública.

Trazendo para este campo a ponderação necessária para resolução de conflitos interpretativos, não é admissível a sobreposição do interesse secundário sobre o primário porque isso implica desvirtuar todo o arcabouço sobre o qual repousa a Administração Pública, como observa com acurácia Mello (2009).

O interesse primário, como interesse geral ou manifesta vontade coletiva, não exclui a fundamentalidade do ser em si a quem ela diz respeito, ou seja, não existe um grupo senão na somatória de indivíduos. De modo que o interesse primário, em sua essência, é o interesse de cada indivíduo enquanto elemento heterogêneo e distinto no conjunto a que se denomina coletividade.

Observa Mello (2009, p. 60) que, apesar de haver um interesse público

127 “[ ...] embora seja comum falar em ‘ato discricionário’, a expressão deve ser recebida apenas como

uma maneira elíptica de dizer ‘ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou compõem’. Com efeito, o que é discricionária é a competência do agente quanto ao aspecto ou aspectos tais ou quais [...]. O ato será apenas o ‘produto’ do exercício dela. Então, a discrição não está no ato, não é uma qualidade dele; logo, não é ele que é discricionário, embora seja nele (ou em sua omissão) que ela haverá de se revelar”