• Nenhum resultado encontrado

2. FATO JURÍDICO EM SENTIDO AMPLO

2.1. OS TRÊS PLANOS DA FENOMENOLOGIA JURÍDICA

2.1.3. A eficácia

O último dos três planos é o da eficácia. Eis a parte do mundo jurídico em que os fatos que nele ingressam produzem os seus efeitos, nesse plano operam as situações jurídicas em sentido amplo.

Deve-se distinguir, pois, a eficácia da lei e a eficácia jurídica. A eficácia da lei é a incidência sobre os fatos previstos no suporte da norma jurídica. Isso desencadeia o processo de juridicização dos fatos, transformando-o de fato social (político, econômico etc) em fato

jurídico. A eficácia jurídica diz respeito às situações jurídicas em sentido amplo que

decorrem do fato juridicizado (portanto, fato jurídico), segundo o que a norma diretamente prevê como conseqüência ou, nos limites definidos normativamente, segundo o que a vontade manifestada pelos sujeitos envolvidos no ato indicar. A eficácia legal (incidência) delimita o campo do mundo jurídico, ao passo em que a eficácia jurídica se contém dentro desse mundo68.

Nessa linha de raciocínio, adverte-se que a norma jurídica, isoladamente, não produz eficácia jurídica alguma. A eficácia jurídica, pois, é a produzida pelo fato jurídico, que sua causa; a eficácia legal resume-se à incidência sobre o suporte fático com o desiderato de juridicizá-lo. Este, o suporte fático, por sua vez, isoladamente, também não produz efeito jurídico; somente produzi-lo-á quando se concretizar no plano fenomênico e sofrer a incidência da norma jurídica69-70.

Para o plano da eficácia, pressupõe-se a passagem pelo plano da existência, onde o fato recebe, pela incidência normativa, a qualidade de fato jurídico; não se exige, entrementes, que o fato tenha essencialmente passado pelo plano da validade. Equivale a dizer, para ser eficaz,

a priori, fato jurídico em sentido amplo tem de existir juridicamente; não se exige

68 Cf. ARAÚJO, Clarice von Oertzen. Incidência jurídica: teoria e crítica. São Paulo: Noeses, 2011, p. 100-1. 69 Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. ―Contribuição ao estudo da incidência da norma jurídica tributária‖. In.

Direito tributário moderno. José Souto Maior Borges (coordenador). São Paulo: José Bushatsky editor, 1977, p. 26.

70

No mesmo sentido Paulo Roberto Lyrio Pimenta: ―...infere-se que a eficácia dos fatos não equivale à das normas-regras. A primeira é a produção de situação jurídica; a segunda, a possibilidade ou a produção de efeitos sobre o suporte fático‖ (O controle difuso de constitucionalidade das leis no ordenamento jurídico brasileiro: aspectos constitucionais e processuais. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 23) (―Sobre a eficácia das regras, dos fatos e dos princípios jurídicos‖. In: Revisitando a teoria do fato jurídico — homenagem a Marcos Bernardes de

necessariamente que o ato jurídica seja válido, para que tenha algum tipo de eficácia jurídica, ou mesmo para que produza os efeitos que lhe são próprios.

O plano da eficácia diz respeito à criação de situações jurídicas em sentido estrito e relações jurídicas, por motivo da ocorrência do fato descrito na norma. O plano da eficácia é ditado pela norma jurídica, porém condicionado pela concretização do fato; dito de outro modo, a norma descreve o fato relevante para o direito e prescreve as conseqüências de sua ocorrência. Daí porque todos os fatos jurídicos serem capazes de produzir efeitos e, portanto, submeterem-se também ao estudo sob o prisma da eficácia, sejam eles fatos submetidos ao plano da validade ou não (fatos jurídicos diversos dos atos jurídicos em sentido amplo lícitos), ou mesmo atos anuláveis ou, em alguns casos, nulos71. Os efeitos dos fatos são aqueles impostos por lei; ou, quando o sistema permite, os ditados pela vontade dos sujeitos que o praticam, dentro do espectro eficacial permitido pela norma jurídica (como ocorre no caso do negócio jurídico) 72.

Resta saber se, em último plano de análise, o fato jurídico é, pois, única fonte de eficácia jurídica.

Parte da doutrina chegou a registrar que a lei seria a única fonte de eficácia jurídica73; outra parte, no sentido de que o contrato (a rigor, a vontade livremente manifestada de obrigar-se) e a lei (máxime para as obrigações que nasceriam sem que houvesse vontade manifestada neste sentido, tal como é o caso daquelas decorrentes de atos ilícitos e de atos-fatos jurídicos, bem como as obrigações tributárias principais) seriam as únicas fontes de eficácia jurídica74.

Mello. Fredie Didier Jr. E Marcos Ehrhardt Jr. (Coordenadores). São Paulo: Saraiva, 2010, p. 504).

71

Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da existência. 12.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 101.

72 Antônio Junqueira de Azevedo72, tratando especificamente da eficácia nos negócios jurídicos, afirma que

―[n]esse plano, não se trata, naturalmente, de todo e qualquer possível eficácia prática do negócio, mas sim, tão- só, da sua eficácia jurídica e, especialmente, da sua eficácia própria ou típica, isto é, da eficácia referente aos efeitos manifestados como queridos‖ (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4.ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49).

73 Cf. por todos GOMES, Orlando. Obrigações. 17ª ed. rev., atual e aum. Edvaldo Brito (atualizador). Rio de

Janeiro: Forense, 2007, p. 33 e seg.

74 Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.214. NONATO,

Orosimbo. Curso de obrigações – generalidade e espécies. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 202: ―E, assim, e à derradeira, com esses esclarecimentos, possivel é aceitar como fonte das obrigações — um fato do homem e a lei‖.

Marcos Bernardes de Mello aponta imprecisões de três ordens para a doutrina que se inclina nesse sentido: i) confinamento do estudo apenas às obrigações que nascem no campo do direito das obrigações, as quais poderiam ser denominadas de obrigações em sentido estrito, deixando de fora, por conseguintes as obrigações que surgem em outros ramos do direito, como, e.g., direito de família, direito das sucessões, direito constitucional, direito administrativo e, sobretudo, no direito tributário; ii) a circunstância de um enunciado analítico acerca das fontes implicar tanto impropriedade como o risco de omitir alguma delas, pecando, portanto, pela insuficiência; iii) inclusão da vontade e da lei dentre as fontes representar, em verdade, uma visão parcial do fenômeno, eis que cada uma delas, por si, isoladamente e sem a integração da outra, não gera qualquer efeito jurídico: vontade sem a previsão normativa que lhe confira alguma sorte de eficácia jurídica é anódina, ao passo em que a lei, somente, sem a manifestação da vontade (para aquelas hipóteses em que a manifestação de vontade é determinante para a eficácia jurídica) ou ao concretização de seu suporte fático, também não produz eficácia jurídica75.

Fonte de toda e qualquer eficácia jurídica é, portanto, o fato jurídico, porquanto exprima a concreção no mundo fenomênico do suporte fático descrito no antecedente normativo — em que a vontade humana pode ou não ter relevância — juridicizada pela incidência dessa norma jurídica, fazendo surgir os efeitos previstos diretamente pela lei, ou regulados pela vontade do sujeito, no campo de permissão daquela (lei).

No plano da eficácia encontram-se as situações jurídicas em sentido amplo. André Fontes fornece uma breve evolução em torno do conceito de situação jurídica que se iniciou por enquadrá-la como uma expectativa juridicamente fundamentada — hoje caracterizada como uma outra categoria: a situação pré-jurídica —, após, como uma categoria substituta do direito subjetivo — seria a situação jurídica subjetiva ativa —, segundo defendeu uma corrente niilista capitaneada por Diguit; por fim, a concepção atual de situação jurídica, como a

75 Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da eficácia — 1ª parte. São Paulo: Saraiva,

2003, p 27-30. Eis a explicação desse autor ―Portanto, a vontade sem lei que a tenha como suporte fático e a juridicize pela incidência é mero fato do mundo dos fatos e, assim, não pode engendrar qualquer conseqüência jurídica. Do mesmo modo, a lei por si só não cria efeito jurídico algum; define-os, é verdade, mas para atribuí-los a fatos (volitivos ou não) quando ocorrem; se os fatos a que os imputa não se materializarem, efeitos jurídicos não haverá‖ (p. 29).

consistente na prescrição derivada de uma descrição normativamente realizada, sendo um

posterius em relação ao fato que constitui seu antecedente, sendo resultado da subsunção76.

Estas, as situações jurídicas, sofrem uma divisão em: a) situação jurídica simples (ou unissubjetiva) — dizem respeito a uma única esfera jurídica77 e seu conteúdo se limita a atribuir ao titular uma qualidade ou uma qualificação no mundo jurídico, sendo oponível erga

omnes e dotadas de impositividade (ex.: as capacidades jurídicas: capacidade de direito,

capacidade de exercício etc); e b) situação jurídica complexa (ou intersubjetiva) — quando de fatos jurídicos resulta o envolvimento de mais de um sujeito de direito. Esta última comporta ainda uma subdivisão em: b‘) situação jurídica complexa unilateral — quando, malgrado tenham a intersubjetividade como pressuposto necessário de existência, a eficácia não se estende a todas as esferas jurídicas dos sujeitos que intervêm no fato, mas exclusivamente a uma esfera (ex.: oferta ao público); e b‖) relação jurídica — quando o envolvimento de dois ou mais sujeitos irradia efeitos para mais de uma esfera jurídica, criando direitos e deveres co- respectivos78.

As situações jurídicas amiúde integram o suporte fático de incidência de outras normas. A começar pelas situações jurídicas unissubjetivas, todo e qualquer ato jurídico em sentido amplo a tem como componente do suporte fático eis que, para o ato ser reconhecido juridicamente, é necessário que o sujeito que o pratica tenha capacidade de direito, i.e., seja sujeito de direito, tenha aptidão para titularizar direitos e deveres.

Para a perfectibilização do ato e, portanto, para que ele seja válido, faz-se mister que esse sujeito que o pratica tenha capacidade de exercício — ou, caso não tenha, haja o suprimento dessa incapacidade pela intervenção de outrem que a tenha e que o ordenamento autorize para tanto (representante ou assistente). Essas duas situações jurídicas subjetivas — capacidade de direito e capacidade de exercício —, por conseguinte, integram o suporte fático de incidência de qualquer ato jurídico em sentido amplo; a primeira, capacidade de direito, dizendo respeito

76 Cf. FONTES, André. A Pretensão — como uma situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.

90-2.

77

Pode-se compreender a expressão de esfera jurídica, de modo simplório, como o conjuntos das situações jurídicas em sentido amplo das quais o sujeito de direito possa ser titular. (Cf. FONTES, André. A Pretensão — como uma situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 115).

78

Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. Plano da eficácia — 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003, p 78-163, passim.

à suficiência do suporte fático, como pressuposto para a existência jurídica do ato; a segunda, a capacidade de exercício, como requisito da estrutura executiva do ato, influenciando na sua perfeição e, por conseqüência, na validade. O mesmo seja dito quanto às situações jurídicas complexas, dentre elas as relações jurídicas79.

Campo fértil para a observação desse fenômeno é, exatamente, a seara tributária. Isso se deve à circunstância de o direito tributário valer-se, recorrentemente, de realidades que, ou já foram objeto de qualificação jurídica por outras normas, ou surgem como categorias eficaciais de fatos jurídicos (situações jurídicas).

A começar pela própria repartição de poder tributário por intermédio da Constituição Federal, ao se atribuir parcela daquele a cada ente político, a competência tributária alude, frequentemente, a realidades já qualificadas juridicamente pelas normas jurídicas; a guisa de exemplo, tem-se a propriedade (art. 153, inciso VI, art. 155, inciso III, e art. 156, inciso I, da CF/88), a transmissão onerosa de bens imóveis (art. 156, inciso II, da CF/88) e a transmissão gratuita causa mortis ou por ato inter vivos (art. 155, inciso I, da CF/88).

O CTN, ao dispor sobre normas gerais sobre o direito tributário, no exercício da competência reservada à lei complementar (art. 146, inciso III, da CF/88), trata de hipóteses em que a norma jurídica tributária põe em seu suporte fático de incidência como necessário e suficiente a irradiar a eficácia jurídica tributária específica concernente à situação jurídica subjetiva da obrigação tributária eventos que já são objeto de qualificação por outras normas jurídicas — i.e., são suporte fático de outras normas jurídicas —, bem como situações jurídicas subjetivas oriundas de fatos qualificados por outras normas jurídicas, integrantes de outros ramos do direito. Com efeito, o art. 116, inciso II, do CTN — que será objeto de análise mais detida mais adiante —, alude à circunstância de o fato gerador da obrigação tributária referir-se a situação jurídica, tal como ocorre nas hipóteses em que o fato gerador é a propriedade (ITR, IPVA e IPTU). O art. 117 do CTN dispõe acerca da circunstância de atos ou negócios

79 ―...também as relações jurídicas podem ser elementos de previsão legal; sucede que a existência de uma

relação jurídica determinada num determinado período não é um fato da natureza, que, como tal, fosse acessível em princípio à percepção, mas, antes, um ‗fato‘ dentro do mundo do juridicamente vigente aqui e agora; por isso, o que é de si uma conseqüência jurídica, decorrente da aplicação de normas jurídicas a certos eventos da vida, pode por sua vez atuar como elemento da previsão de uma outra proposição jurídica‖ (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 5.ª ed. Tradução de José Lamego. Lisboa: 2009, p. 400-401).

jurídicos a partir dos quais surgem as situações jurídicas que integraram o suporte fático de incidência da hipótese tributária estarem submetidos a uma condição.

Aqui calha registrar que, não raro, a norma jurídica qualifica certos fatos jurídicos atribuindo- lhes — com o perdão do trocadilho — a eficácia específica de influenciar no plano da eficácia de outros atos jurídicos, seja para determinar a produção de efeitos, seja para suspendê-los ou para extingui-los. Esses fatos são qualificados como termo, modo ou encargo e condição; sucintamente: a) termo: evento futuro e certo de que dependerá a eficácia do ato, quer seja para operar-se quer seja para cessar; b) condição: evento futuro e incerto com o mesmo efeito do termo; c) modo ou encargo: ônus imposto a uma liberalidade, que não modifica os efeitos típicos do negócio, mas influencia na sua concretização80.

Assim, acerca dos planos da fenomenologia jurídica, calha frisar que o fato há de ser analisado sob esses três planos, de forma progressiva. Se ele é reconhecido juridicamente, porque se subsume ao antecedente de alguma norma jurídica que o qualifica e, portanto o juridiciza, diz-se que o ato é existente; caso o evento careça de algum elemento que a norma jurídica ponha como pressuposto de sua incidência, o fato será inexistente, não-jurídico por conta da insuficiência de suporte fático, e, portanto, não se cogitará de análise sob o prisma da validade ou da eficácia. Uma vez existente, se o fato (lato sensu) é daqueles em relação aos quais a norma jurídica pôs o elemento volitivo com alguma relevância, pode-se cogitar de examiná-lo no tocante à validade. Caso não haja nenhuma irregularidade no suporte fático, reputar-se-á válido o ato e, portanto, apto a ser analisado no plano da eficácia. Se, porém, o suporte fático denotar-se deficiente, será o caso, de ordinário, da aplicação da sanção

invalidante (sob a modalidade cominada pelo direito positivo — nulidade ou anulabilidade),

não se cogitando, de regra81, da produção de efeito jurídico82. Caso o fato jurídico seja daqueles em cuja formação o elemento volitivo não tenha qualquer relevância, do exame da existência passar-se-á, de imediato, para o exame da eficácia. Por fim, neste plano, os fatos existentes (e válidos) serão avaliados quanto à aptidão para a produção de efeitos jurídicos; poderão ser, portanto, eficazes ou ineficazes.

80 Cf. GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19ª ed. rev., atual e aumentada. Edvaldo Brito e Reginalda

Paranhos de Brito (atualizadores). Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 364-5.

81 Cf. AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4.ª ed. atual. São Paulo:

Saraiva, 2002, p. 49: ―Às vezes, pode ocorrer que, por exceção, um negócio nulo produza efeitos jurídicos (são os chamados efeitos do nulo), embora nem sempre esses efeitos sejam os efeitos próprios, ou típicos‖.

A essa linha de investigação, preconizada por Pontes de Miranda, Antônio Junqueira de Azevedo conferiu a denominação de técnica da eliminação progressiva83. Esses elementos

comportam uma classificação em pressupostos, requisitos e condições, conforme digam respeito à existência jurídica do ato, à validade ou à eficácia84.

Em arremate, pois, é possível sintetizar as regras para o acesso ao plano da eficácia dos fatos jurídicos da seguinte forma, tal como bem faz Marcos Bernardes de Mello: (a) quanto aos fatos jurídicos em sentido estrito, aos atos-fatos jurídicos e aos fatos jurídicos ilícitos em sentido amplo, basta que ultrapassem o plano da existência; (b) em relação aos atos jurídicos em sentido estrito e aos negócios jurídicos, é necessário que, além de existirem, (b‘) sejam válidos ou anuláveis (eis que estes últimos produzem seus regulares efeitos até que sua anulação seja decretada — art. 177 do CC/2002), ou que, (b‘‘) mesmo nulos, a lei lhe atribua algum efeito85.