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O necessário conteúdo econômico

3. TRIBUTO, NORMA JURÍDICA TRIBUTÁRIA, FATO JURÍDICO-TRIBUTÁRIO

3.3. O FATO GERADOR DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA

3.3.1. O necessário conteúdo econômico

Afirmar que o fato (jurídico) tributário alberga sempre um conteúdo econômico sem que se façam devidos esclarecimentos implica risco de se compreender que a afirmação é reducionista; vale dizer, confinaria o fenômeno do fato gerador apenas no campo econômico, de modo a retirar-lhe (pré-)juridicidade. Nessa linha, a assertiva de que o fato gerador da obrigação tributária seria sempre um fato econômico sofreu cáustica crítica de Alfredo Augusto Becker, que chegou a qualificá-la como exemplo de carência de atitude jurídica mental da doutrina tributária259.

Ocorre que quando se menciona o necessário conteúdo econômico do fato jurídico tributário, de rigor, se quer dizer que a norma tributária não pode colher como relevante, necessário e suficiente ao nascimento da obrigação tributária um fato que não albergue qualquer expressão econômica. Não se está aqui a defender que o fenômeno jurídico-tributário confinar-se-ia ao fenômeno econômico; de modo algum. Mas apenas e tão somente a registrar que a norma jurídica tributária deve conter no antecedente, como pressuposto para o nascimento de tributo, um fato que tenha alguma expressão econômica.

A doutrina que se mostra refratária a esta premissa diz ser ela válida apenas nos sistemas que contemplam no texto constitucional o princípio da capacidade contributiva como aplicável à tributação e, ainda assim, para as espécies diretamente referidas pela Constituição260. Desse modo, tomando o sistema brasileiro como referência — e partindo da premissa que somente os impostos submeter-se-iam ao princípio da capacidade contributiva —, somente o fato gerador relativo aos impostos teria em seu aspecto material, necessariamente, um acontecimento de cunho econômico.

Dois fundamentos distintos, contudo, servem a sustentar a posição posta em título deste item, bem assim a refutar a posição refratária acima aludida, sem, entretanto, rechaçá-la por inteiro.

258

Cf. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 6.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 2. E, na primeira edição: Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1964, p. 13.

259

Cf. Teoria geral do direito tributário. 3.ª ed. São Paulo: Lejus, 2002, p. 16.

Conforme visto acima, o tributo é um dever fundamental que se assenta no princípio da solidariedade social. Todo e qualquer indivíduo ou entidade (ente personalizado ou não que se constitua sujeito de direito) tem o dever de contribuir com recursos para a manutenção das despesas públicas (ordinárias e extraordinárias), uma vez que venha a realizar o fato descrito em lei; esse dever é inato ao Estado Constitucional de Direito. O pressuposto para o surgimento desse dever, portanto, deve ser conformado pelos princípios e valores fundantes do Estado de Direito.

Somente se pode exigir a prestação pecuniária de quem tenha praticado (ou que tenha correlação com a ocorrência de) determinado fato (previsto em lei) que tenha alguma expressão econômica. Caso se faça surgir o dever de cumprir uma prestação pecuniária em função de um determinado fato que não tenha minimamente expressão pecuniária certamente se estará a editar um tributo que viole o princípio da igualdade, porque imporá a um indivíduo um sacrifício (eis que o tributo assim também se afigura) sem que haja um motivo justificado para tanto — em contrapartida à circunstância de não exigir a mesma prestação pecuniária de um outro indivíduo, pelo simples motivo de não ter praticado o citado fato. Nessa ordem de idéias, também haverá violação ao princípio da razoabilidade, porque imporá ao indivíduo a prestação pecuniária em função de um fato que nada tem a ver com a expressão de sua aptidão em contribuir para o custeio das despesas públicas. Como eleger, então, esse fato jurídico tributário destituído de conteúdo econômico sem que venha a conferir um tratamento díspare aos indivíduos sem que haja um fator de discrímen razoável?

O segundo fundamento diz respeito à capacidade contributiva, considerada em uma dimensão mais ampla e importante do que se costuma fazer261.

Nesse contexto, cumpre expor o pensamento de Klaus Tipke262, para quem a capacidade contributiva, a rigor, é um princípio portador do Sistema Tributário do Estado de Direito,

261 Recorde-se o comentário de Amílcar de Araújo Falcão acerca do fato gerador da obrigação tributária Cf.

FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 6.ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 29: ―Quis-se assinalar, porém, que o aspecto do fato gerador que o legislador tributário considera para qualificá-lo é a sua idoneidade ou aptidão para servir de ponto de preferência, de metro, de indicação por que se afira a capacidade contributiva ou econômica do sujeito passivo da obrigação tributária‖. E, na primeira edição: Fato gerador da obrigação tributária. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1964, p. 65. Em

afigurando-se como princípio fundamental universalmente reconhecido da justa tributação, de modo que, mesmo que o texto constitucional a ele não faça referência explícita, o sistema tributário por ele deve se pautar. O princípio da capacidade contributiva: i) não investiga o que o Estado podem fazer pelo cidadão isolado, senão o que o cidadão isolado pode fazer pelo Estado, dentro da carga tributária total suportável pelo cidadão; (ii) se situa não no plano do dever-ser, mas no plano do ser; (iii) é um princípio econômico, na medida em que alcança apenas a renda efetiva, não renda aparente; (iv) não considera apenas a renda de consumo, mas deve ser levada em conta a renda total que fluir (disponível); (v) atinge apenas a renda disponível para o pagamento de impostos, de modo que deve ser deduzido aquilo que o cidadão tiver de gastar para fins privados (proteção ao mínimo existencial); (vi) encontra limite onde começa o confisco, que a aniquila.

Exatamente por ser um princípio fundamental e inafastável para a concretização da justiça tributária, o princípio da capacidade contributiva deve manifestar-se para além da dicção do § 1.º do art. 145 da CF/88. Não apenas os impostos, mas também as outras espécies tributárias devem ser por ele conformadas, sob pena de se efetivar o confisco tributário — resultado que não se coaduna com o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana a de garantia da propriedade consagradas constitucionalmente. Eleger fatos de conteúdo econômico como necessários e suficientes ao nascimento de obrigações tributárias — independentemente da figura tributária de que se trate — é um imperativo integrante da ética da tributação.

Alie-se a esses dois fundamentos um terceiro. Como, no plano eficacial, este fato redundará em uma obrigação jurídica de necessário conteúdo patrimonial (tributo), há elementos de mensuração que têm de ser contemplados na estrutura da norma jurídica, precisamente no conseqüente. Um desses elementos, como visto, é a base de cálculo. Esta não pode ser aleatoriamente atribuída pelo legislador, mas recortada a partir do evento fenomênico ao que se atribuiu relevância tributária. Portanto, esse evento não poderá ser algo que não tenha qualquer viés econômico.

outra obra, ao tratar da interpretação e integração da lei tributária (Cf. FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao direito tributário. 6.ª ed. Atualizado por Flávio Bauer Novelli., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 75-76).

262 Cf. TIPKE, Klaus. ―Sobre a unidade da ordem jurídica tributária.‖ In Direito tributário: estudos em

homenagem a Brandão Machado. Luis Eduardo Schoueri e Fernando Aurélio Zivelti (Coordenadores). São Paulo: Dialética, 1998, p. 64-5. Em sentido próximo: TIPKE, Klaus. LANG, Joachim. Direito tributário [Steuerrecht]. Vol I,. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 190-232.

Tal raciocínio, pensa-se, é aplicável a qualquer espécie tributária (imposto, taxa, contribuição de melhoria, contribuições especiais ou empréstimo compulsório). Não há hipótese de incidência que não contenha em seu antecedente qualquer fato gerador com essa característica. Ao se verificar as realidades previstas no texto constitucional, sobre as quais os entes políticos, por meio do exercício da específica competência tributária outorgada pela CF, podem criar impostos, conclui-se que, em todas elas, há um acontecimento de natureza econômica (auferir renda, prestar serviços remunerados, ser proprietário, circular mercadorias etc); basta examinarem-se os arts. 153, 155 e 156 da CF/88.

De igual modo, as taxas, que somente podem ser cobradas em razão da prestação efetiva ou potencial de um serviço público específico e divisível ou em função de um efetivo exercício do poder de polícia, apresentam em suas hipóteses de incidências, no aspecto material, atividades administrativas — prestações positivas ou potestades do Estado — para cuja disponibilização ou exercício há a realização de despesa e, portanto, viés econômico. Não por outra razão que, se o serviço público não for específico e divisível, ou o poder de polícia não for efetivamente prestado, não se poderá ter por nascida a obrigação tributária concernente à taxa.

Quanto às contribuições de melhoria, basta notar que o respectivo fato gerador exige uma valorização imobiliária decorrente de obra pública; acréscimo de valor imobiliário é, sem dúvida, fato de relevância econômica.

Os empréstimos compulsórios, criados pela União por meio de lei complementar estritamente nas hipóteses previstas no texto constitucional, também hão de ter como fato gerador acontecimento de natureza econômica.

Por fim, as contribuições especiais (sociais, interventivas e no interesse de categorias profissionais e econômicas) também exigem que o fato gerador diga respeito a evento de natureza econômica; não à toa, o texto constitucional alude a alguns possíveis fatos geradores e bases de cálculo, todos com aspecto econômico (e.g., art. 149, § 2.º, inciso II, 177, § 4.º, e art. 195 da CF/88). Nesse diapasão, pois, indaga-se se fora criado no sistema jurídico pátrio algum tributo cujo fato gerador não tenha qualquer expressão econômica.

Em arremate, o fato gerador da obrigação tributária não é um mero fato econômico ao qual se atribui relevância jurídica; é um fato que, amiúde, já foi juridicizado por outras normas jurídicas (de natureza civil, trabalhista empresarial etc), e é colhido pela norma tributária — e por isso, já integra o suporte fático da norma tributária como fato jurídico — ou que, mesmo que não tenha sofrido juridicização anterior, sofrerá a incidência da norma jurídica tributária, juridicizando-o, mas é certo que, em qualquer caso, é um fato que necessariamente há de ter expressão econômica. A previsão desse fato no antecedente da norma jurídica tributária o traz para o campo jurídico, devendo ser estudado sob este aspecto; assim a admoestação de José Souto Maior Borges263 e de Alberto Xavier264.