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4. A REESTRUTURAÇÃO DAS UNIVERSIDADES E DOS HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS

4.4 A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH)

A história das políticas de saúde brasileiras é marcada por conquistas e retrocessos, elementos estes que impactam diretamente sobre os trabalhadores da área de saúde. Afinal, como resultado das transformações e metamorfoses em curso nas últimas décadas, originadas do projeto neoliberal e da crise dos Estados de Bem-Estar Social, o mundo do trabalho se modificou radicalmente (DRUCK; THEBAUD-MONY, 2007). A mudança de gestão e o aumento das nocivas políticas públicas privatistas sobre os hospitais de ensino, dentro da lógica “Estado versus mercado”, implicam:

transformação do hospital público em empresa ocasionará mudanças em seu modo de operação. Incentivos ligados à busca de retorno financeiro em todas as atividades do hospital – ensino, pesquisa e extensão, inclusive a assistência – deverão ser implementados, seja por meio de busca mais agressiva ao mercado como fonte de financiamento, seja com controles mais rigorosos de custos operacionais (ANDREAZZI, 2013, p. 276).

A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) foi proposta pelo então Ministro da Educação, Fernando Haddad, e o presidente Luís Inácio Lula da Silva emitiu a Medida Provisória n. 520, em 31 de dezembro de 2010. Essa foi a primeira tentativa de criar a empresa, com a finalidade de administrar os Hospitais Universitários Federais por meio de um modelo jurídico e organizacional considerado pelos formuladores do projeto mais eficiente e moderno (LEMOS et al, 2015; SOBRE et al.,

83 2013). No entanto, tal medida não foi eficiente devido à falta de deliberação do Senado Federal. Destaca-se que vários projetos neoliberais usam do argumento da necessidade constante de se “modernizar” o Estado.Posteriormente, em 2011, diante do fracasso da MP, foi criado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 79/2011 (Projeto de Lei nº 1.749, de 2011, na Casa de origem). O mesmo foi votado no Senado, em 23 de novembro de 2011, com 42 votos a favor e 18 votos contra (SENADO FEDERAL, 2011).

O Relatório Legislativo, desenvolvido pelo Senador Roberto Requião (MDB/PR), pela rejeição do PL nº 79/2011, relata que a situação dos HUs e a composição de mais de 26 mil trabalhadores contratados de forma irregular foi alertada em 2006, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu sobre a ilegalidade dessas contratações e o Poder Executivo teve tempo para a realização de concurso, mas optou por não o realizar, criando a “inusitada empresa”, a EBSERH. O Senador também alertou a respeito das questões elencadas sobre a constitucionalidade e juridicidade das normas da empresa.

Quanto à luta contra a possibilidade de privatização futura dos hospitais universitários, alterou-se a forma de “sociedade anônima”, presente na MP nº 520, para o modelo de sociedade unipessoal, de modo a evitar a privatização via subsidiárias. “Acrescentou-se a expressa determinação de sua sujeição às normas aplicáveis à empresa, com exceção da composição de seus Conselhos de Administração e Consultivo” (SENADO FEDERAL, 2011, p. 06) para impedir a prestação de serviços a instituições privadas, e alterou também. o “conceito de instituições congêneres às instituições federais de ensino” (Ibid.). Por fim, instituiu a representação dos Ministérios da Saúde e da Educação no Conselho Administrativo da empresa como membros natos.

No primeiro Governo Dilma Rousseff, foi promulgada a Lei Federal nº 12.550, em 15 de dezembro de 2011, permitindo o surgimento legal da EBSERH. No Art. 1º da Lei 12.550/11 define-se que a EBSERH possui “personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, vinculada ao Ministério da Educação, com prazo de duração indeterminado” (BRASIL, 2011. s/n). Ainda no primeiro artigo da lei é estabelecido que “§1º A EBSERH terá sede e foro em Brasília, Distrito Federal, e poderá manter escritórios, representações, dependências e filiais em outras unidades da Federação”. Isto é, todos os hospitais que aderirem à empresa serão considerados filiais dessa empresa pública. De acordo com o Decreto de Lei nº 900/69, considera-se:

84 II – Empresa Pública - [é] a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. (BRASIL, 1969, s/p).

Conforme o Decreto Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, é um direito do poder executivo regular a estrutura e o funcionamento dos órgãos da administração direta e indireta que, por sua vez, abarca no Art. 4º “as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria: a) Autarquias; b) Empresas Públicas; c) Sociedades de Economia Mista; d) fundações públicas” (Brasil, 1967). E ainda, tem como “Parágrafo único: As entidades compreendidas na Administração Indireta vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade”.

O Estado passou a formular novos meios de regulação, alinhados com as políticas neoliberais privatistas, modificando a gestão dos serviços públicos, inclusive destes complexos hospitais federais, visando eficiência e eficácia. E nesta perspectiva, propondo novas formas também de gestão do trabalho, através do discurso de melhoria das condições e relações de trabalho dentro destes hospitais.

É no contexto de reforma gerencial que se desenvolve a criação das Organizações Sociais (OSs) e as fundações estatais de direito privado, as quais passam a intervir diretamente na relação do Estado, na saúde e nas políticas públicas voltadas para esta área. Cabe ao Estado financiar, fiscalizar e transferir gestões de hospitais e unidades de saúde públicas para as OSs. Conforme Andreazzi a “apropriação do discurso da reforma do Estado na gestão da saúde foi problemática por se contrapor em seus princípios à construção do SUS” (ANDREAZZI, 2013, p. 278). Essas mudanças gerenciais do Estado, fruto da reconfiguração do capitalismo neoliberal, alteraram significativamente a sua relação com as políticas para saúde. Cabe lembrar que as mudanças derivadas da estratégia neoliberal não se referem apenas a saída ou diminuição do Estado social, e sim de uma nova postura, métodos e objetivos adotados pelo Estado para responder ao

85 neoliberalismo (DARDOT e LAVAL, 2016). É dentro dessa perspectiva e desse projeto que se formula a criação da EBSERH.

Apesar de a empresa intencionar coordenar todos os Hospitais Universitários, a escolha por esse modelo de gerenciamento possui um caráter facultativo, frente à autonomia das Universidades Federais. Entretanto, como será visto a seguir, a opção pela adesão ocorreu com base em muita pressão e um “jogo de chantagens”, retirando esse dito caráter facultativo. A adesão a este modelo de gerenciamento ocorreu a partir de uma negociação entre o Ministério da Educação e as Universidades, marcadas por embates em todo o país. Para ao Ministério da Educação, a EBSERH é definida como uma empresa que visa a:

prestação de serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar, ambulatorial e de apoio diagnóstico e terapêutico à comunidade, assim como a prestação às instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres de serviços de apoio ao ensino, à pesquisa e à extensão, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública, observada, nos termos do art. 207 da Constituição Federal, a autonomia universitária. As atividades de prestação de serviços de assistência à saúde estão inseridas integral e exclusivamente no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). No desenvolvimento de suas atividades de assistência à saúde, a EBSERH observará as diretrizes e políticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde (MEC, 2012).

Segundo esta definição, a empresa visa manter a natureza do hospital, que articula assistência, ensino e pesquisa. De acordo com o MEC, o objetivo da EBSERH é reestruturar os Hospitais Universitários Federais solucionando o problema de recursos humanos, cumprindo o acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) de contratualização que estabelece metas a serem seguidas. A estrutura organizacional da empresa na sede em Brasília- DF é composta pela Presidência, Diretoria da Vice- presidência Executiva; Auditoria Interna; Diretoria de Atenção à Saúde; Diretoria de Administração e Infraestrutura; Diretoria de Gestão de Pessoas; Diretoria de Orçamento e Finanças e Diretoria de Tecnologia da Informação (RIBEIRO JR, 2013).

Em 2019, a empresa passou a ser presidida pelo General Oswaldo Ferreira, de 64 anos, que serviu por 45 anos na carreira militar. Também é engenheiro, mestre em Aplicações Militares e doutor em Aplicações, Planejamento e Estudos Militares

86 (EBSERH, 2019). O presidente anterior foi o médico e professor titular de ginecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Kleber Morais. A presidência da empresa é responsável por gerir nacionalmente os 40 Hospitais Universitários que possuem contrato de gestão com a empresa e o REHUF, que direciona ações aos hospitais filiados e aos não filiados. Cabe destacar que conforme o a “EBSERH estaria assumindo funções além daquelas previstas na lei e que, em princípio, deveriam ser exclusivas do MEC, inclusive a gestão dos recursos do REHUF para hospitais não filiados a ela” (TCU, 2014, p. 12).

O modelo apresentado pela EBSERH foi alvo de moções, manifestações e paralisações. Houve repúdio de diversas entidades sindicais das áreas de saúde e educação em todo o país. Desde que se desenhou a proposta da EBSERH, organizações sindicais se posicionaram contrários a ela. Não apenas essas organizações, mas também professores, estudantes e trabalhadores da área da saúde. Uma das principais críticas é que compreendem a EBSERH como o sinônimo da terceirização dos HUs. A Federação de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras – FASUBRA Sindical organizou em 2011, a 05 de outubro, o Dia nacional de Luta contra a EBSERH e em Defesa dos Hospitais Públicos. A mobilização era contra o PL 79/2011. A luta era contra a criação da empresa e a votação do PL pelo senado (FASUBRA, 2011). Houve movimento também da Frente Nacional contra a Privatização da saúde, além de outras manifestações que ocorreram pelo país contrários a criação, e, posteriormente, à adesão à empresa.

No ano de 2013, de 02 a 15 de abril, foi realizado um “Plebiscito Nacional sobre a EBSERH” organizado pelas entidades ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Universidades), a FASUBRA (Federação Nacional dos Servidores das Universidades), a FENASPS (Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social), a Frente Nacional Contra a Privatização do SUS, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), a Central Sindical e Popular Conlutas (CSP-CONLUTAS), movimentos estudantis (ANEL e UNE) e movimentos sociais. Participaram da votação a comunidade universitária, trabalhadores e usuários do hospital. O resultado final foi de 60.341 votos contra a EBSERH e 2.269 votos a favor, o resultado foi entregue ao MEC (FASUBRA, 2013).

87 No mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) se posicionou contrário a EBSERH e participou do movimento de denúncia de sua inconstitucionalidade. O Conselho ouviu representantes de ambos os lados e, após o debate, afirmou ser contra a empresa, informando que a mesma constitui risco à sociedade. O então presidente do CFM na época, Roberto Luiz d'Ávila, declarou que: "Entendemos que a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares agride a autonomia do sistema educacional e pode comprometer o funcionamento dos serviços de assistência em saúde públicos ancorados nos hospitais universitários e de ensino” (CFM, 2013). Tal menção ocorreu em uma plenária proposta pelo procurador Geral da República, Roberto Gurgel, contra a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. De acordo com o procurador-geral, há uma “desarmonia” entre a lei que cria a empresa e a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde - SUS (Lei 8.080/1990). Para ele a saúde pública “é serviço a ser executado pelo Poder Público, mediante Sistema Único de Saúde, com funções distribuídas entre União, estados, municípios e Distrito Federal” (CFM, 2013).

As ações contrárias à EBSERH não acabaram após o processo de filiação a empresa. Em 2016, a Universidade Federal do Paraná elaborou um dossiê conjuntamente com outras entidades para avaliar a EBSERH e explicar o porquê se posicionavam contrários à empresa. Dentre os principais pontos, destacam-se:

inconstitucionalidade da EBSERH; irracionalidade da proposta, que cria um organismo externo ao ambiente acadêmico para gerir as suas estruturas hospitalares, bancado prioritariamente pelo mesmo governo que não tem financiado essas estruturas; perda da autonomia universitária, ao ceder parte importante da estrutura acadêmica a uma empresa cujos fins diferem substancial e conceitualmente daqueles atribuídos a uma universidade pública; inadequação da aplicação de um modelo privado e mercantil em serviços de saúde pública, tanto no que se refere às relações com o SUS, os usuários e com os trabalhadores do complexo hospitalar; perda da liberdade acadêmica na execução de projetos de ensino, pesquisa e extensão que tem como foco a formação acadêmica e que, por isso, não podem ter como finalidade ou restrição unicamente diretrizes de eficiência operacional e financeira (APUFPR et al., 2016, p. 08).

A inconstitucionalidade é ponto central de debates, em diferentes setores sociais, quando o assunto é a EBSERH. O dossiê elenca cinco dimensões que respaldam a inconstitucionalidade presente na Lei nº 12.550/2011, são elas:

88 (i) afronta à autonomia universitária (artigo 207); (ii) quebra do princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (artigo 207); (iii) desvio das atividades finalísticas da universidade autárquica (ensino, pesquisa e extensão com assistência à saúde) para figurinos de natureza privada; iv) inexistência de lei complementar estabelecendo as áreas de atuação das empresas públicas, sociedades de economia mista e das fundações (artigo 37, inciso XIX); v) autorização da empresa pública por lei que não tem natureza específica (artigo 37, inciso XIX), e também descaracterizada por prever dispositivos (artigos 18 e 19) que alteram o Código Penal (APUFPR et al., 2016, p.12).

Ainda há o debate de que a União não teria competência jurídica para autorizar a criação da EBSERH, dada “a autonomia dos entes federados de organizarem sua administração, observados os parâmetros inscritos no texto constitucional” (SENADO FEDERAL, 2011). O Relatório Legislativo ainda pontua algumas críticas à empresa: a conversão dos lucros é revertida para fins sociais que a mesma possuir, entretanto, não existe impedimento da destinação dos lucros para concessão de privilégios remunerativos para os funcionários ou em ostentações para seus diretores e conselheiros; não há no projeto nenhuma garantia da indissociabilidade entre a pesquisa, ensino e extensão, que são princípios universitários; o processo de tratamento privilegiado com a empresa, visto que, dispensa licitação para sua contratação, sem levar em conta a situação de concorrência entre empresas do mesmo setor, que por sua vez, “aumenta consideravelmente a probabilidade de a empresa pública passar a privilegiar parte de seu corpo de funcionários ou determinados fornecedores, sem a necessária contrapartida de produtividade e da qualidade dos serviços oferecidos à população” (SENADO FEDERAL, 2011, p. 08). Por fim, em relação às normas, o relator pontua que há “ambiguidade das normas que são criadas para reger a EBSERH, e que não representa apenas o início de um imbróglio jurídico, mas evidencia, também, a certeza de sua inoperância e da criação de uma instituição que tende a ser marcada por desmandos administrativos” (SENADO FEDERAL, 2011, p.07).

Outro importante ponto a ser discutido é a flexibilização da gestão, que é representada na adesão dos HUs à EBSERH, que no seu sentido stricto senso significa a terceirização dos serviços de saúde, na medida em que prevê a transferência da gestão de pessoal e de recursos públicos para um terceiro. Tal elemento se tornou recorrente no

89 Brasil após a década de 1990 com as transformações feitas pela reforma do Estado brasileiro.