• Nenhum resultado encontrado

3. O ESTADO NEOLIBERAL E A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA

3.3 O lugar do servidor público no neoliberalismo

3.3.3 A terceirização no serviço público

O mundo do trabalho passou por grandes transformações nas últimas décadas em decorrência do capitalismo flexível e financeirizado (HARVEY, 1992). A crise do padrão fordista e a generalização do toyotismo no mundo ocidental fizeram a terceirização se tornar um fenômeno utilizado mundialmente nos mais diversos setores, tornando-se central na organização do trabalho (DRUCK, 2016). A terceirização é

66 considerada uma das principais formas de precarização e flexibilização do trabalho reveladas por inúmeras pesquisas em todos os cantos do mundo. Segundo Druck (2014), a terceirização pode ser compreendida como:

uma modalidade de gestão do trabalho incentivada pela lógica da acumulação financeira que, no âmbito do processo de trabalho e do mercado de trabalho, exige flexibilidade em todos os níveis, instituindo um novo tipo de precarização social. Assim, num quadro em que a economia está contaminada pela lógica financeira sustentada no curtíssimo prazo, as empresas buscam garantir a sua rentabilidade, transferindo aos trabalhadores a pressão pela maximização do tempo, pelas altas taxas de produtividade, com a redução dos custos do trabalho e com a “volatilidade” nas formas de inserção e de contratos. E a terceirização corresponde, como nenhuma outra modalidade de gestão, a essas exigências (DRUCK, 2014, p. 02).

O amplo crescimento da terceirização no serviço público nas duas últimas décadas deve ser compreendido como uma estratégia do projeto neoliberal, em curso no país, que visa principalmente o desmantelamento e a precarização do funcionalismo público (DRUCK, 2016). Foi esse projeto que possibilitou a criação da EBSERH, assim como a criação das OSs, das fundações estatais, das empresas públicas e das parcerias público-privadas que representam o ataque direto ao serviço público.

A terceirização do serviço público no Brasil, além de ser um dos mecanismos mais importantes e eficientes de desmonte do conteúdo social do Estado e de sua privatização, é a via que o Estado neoliberal encontrou para pôr fim a um segmento dos trabalhadores, o funcionalismo público, que tem papel crucial para garantir o direito e o acesso aos serviços públicos necessários à sociedade, e sobretudo à classe trabalhadora, impossibilitada de recorrer a esses serviços no mercado (DRUCK, 2016, p.18).

Nas Universidades públicas, o fenômeno da terceirização vem crescendo consideravelmente e, no que concerne a implantação da EBSERH, pode-se afirmar se tratar de uma consequência direta disso, e com aspectos muitos abrangentes, visto que não escolheram certas categorias como a limpeza, portaria ou segurança, mas optaram por terceirizar um órgão e todas as categorias presentes neles, que são os Hospitais Universitários. Isto é, um organismo externo ao ambiente acadêmico passa a gerenciar toda a estrutura hospitalar.

67 No quadro da terceirização, caracterizada pela criação de mediadores que passaram a gerir os hospitais, a EBSERH foi apresentada como a melhor, quiçá a única solução possível, para a recuperação dos mesmos, principalmente após a cobrança feita pelo TCU para a regulamentação do quadro de pessoal, contratados sem concursos via terceirização das fundações de apoio, como a FAPEX no caso do HUPES. Entretanto, após a EBSERH, ainda é possível verificar a presença dessa terceirização, dita como irregular, nos hospitais universitários. O TCU, em 2015, realizou uma Auditoria Operacional e informou que ainda há um número significativo de terceirização irregular nos HUs do país. Segundo Druck (2016), a terceirização na saúde resulta na desqualificação e desvalorização dos funcionários, assim como no encolhimento do quadro de pessoal. Isso é fruto, afirma a autora, de um discurso de eficiência e agilidade presente nas instituições privadas, em oposição ao padrão do serviço público brasileiro. Tal processo engloba redes de subcontratação, originando o que se chama de quarteirização, que é a contratação de empresa terceirizada pela terceirizada, criando vínculos ainda mais instáveis. No caso estudado, a quarteirização acontece nos setores como lavanderia e limpeza.

Historicamente, é a partir da reforma do Estado da década de 1990, já discutida no item 3.2, que ocorreu a ruptura entre as características que diferenciavam o serviço público do serviço privado, isto é, foram incorporados ao Estado elementos presentes e valorizados no serviço privado, admitindo uma perspectiva gerencial, flexível, típica do toyotismo (AMORIM, 2009; DRUCK; 2016). A expansão da terceirização ocorre de forma concomitante ao projeto de sucateamento do serviço público, com o discurso de melhoria da qualidade e a redução necessária dos gastos públicos (DRUCK, 2016; DRUCK et al., 2018).

Stella Maria Senes (2018) destaca que entre os documentos analisados por ela, não há uma proposta para qualificação dos serviços prestados ou dos trabalhadores que já atuam nos serviços de saúde, nem para preparação dos gestores, ou novas contratações via RJU. O projeto, que ataca diretamente os serviços públicos, consiste na transferência da gestão direta para terceiros diminuindo o controle social na prestação dos serviços de saúde. A autora considera que:

68 [...] a investida do modelo de personalidade jurídica privada em relação à fragilização dos mecanismos de controle social, entre eles: atribuir maior autonomia a um gestor que segue as regras do direito privado; bem como promover a perda de estabilidade dos trabalhadores do RJU ou a redução deles; tem como principal objetivo facilitar transações financeiras e comerciais e garantir com maior celeridade movimento de rotação do capital que não encontrará maiores resistências em seu fluxo de valorização. Seguramente esse não é o caminho para a manutenção de um sistema de saúde público e universal (SENES, 2018, p. 106).

O discurso que fomentou a criação da EBSERH, o da “agilidade” e “flexibilidade” necessárias para o melhor funcionamento dos HUs, dá continuidade ao Plano Diretor de Reforma do Estado, ao pautar que esses elementos são essenciais para o seu melhor funcionamento. É interessante entender que o projeto construído pela EBSERH, desde a criação do Programa Nacional de Reestruturação dos Hospitais Universitários Federais (REHUF), visa acabar diretamente com a contratação direta, trocando os trabalhadores RJU por trabalhadores contratados via CLT.

69 No final do século XX, o Banco Mundial (BIRD) produziu um estudo a respeito do ensino superior denominado O ensino superior: as lições derivadas da experiência. O documento foi direcionado aos países em desenvolvimento, dentro do receituário do Consenso de Washington de 1989, e tinha o mesmo intuito: impor novas condições para financiamentos, empréstimos, etc. Em 1995, ano da publicação do referido estudo no Brasil, o mesmo foi apresentado a Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) e outras organizações do ensino superior, defendendo um conjunto de ações a serem tomadas no campo educacional. Mais de duas décadas depois, em 2017, o Banco Mundial produziu um novo estudo a respeito do ensino e, desta vez, o documento gerado era especificamente sobre o Brasil. Este foi encomendado por Joaquim Levy - à época Ministro da Fazenda do segundo governo Dilma - e foi utilizado como um dos argumentos para o ajuste fiscal (DRUCK, FILGUEIRAS e MOREIRA, 2017).

O primeiro documento do Banco Mundial, de 1994, auxiliou o processo da reforma gerencial da administração pública brasileira, com novas medidas no campo educacional. O gerencialismo presente no Brasil desde o governo FHC propõe uma aproximação das práticas da administração pública com as empresas privadas, seguindo a mesma lógica de gestão para instituições distintas. É analisando a reforma do Estado brasileiro que Marilena Chauí (1999) escreve sobre a, já referida, divisão de atividades do Estado, principalmente, no setor de atividades não-exclusivas do estado, onde se enquadram “a educação, a saúde, a cultura e as utilidades públicas, entendidas como ‘organizações sociais’ prestadoras de serviços que celebram ‘contratos de gestão’ com o Estado” (CHAUÍ, 1999, s/p). A autora destaca que após a reforma, a educação deixou de ser um direito e transformou-se em serviço. Agora pretende-se retirar seu caráter público e privatizá-lo (CHAUÍ, 2003). Noutros termos, o serviço (que representa um direito) transformou-se em mercadoria.

A universidade, nesse jogo de interesses, passa a ter outra função aos olhos do Estado. Novas regras são instituídas após a reforma: qualidade, avaliação e

4. A REESTRUTURAÇÃO DAS UNIVERSIDADES E DOS HOSPITAIS