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3. O ESTADO NEOLIBERAL E A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA

3.3 O lugar do servidor público no neoliberalismo

3.3.2 A desmoralização dos serviços públicos

Um elemento que cerca o funcionalismo público é o discurso a respeito da sua suposta baixa produtividade, ineficiência e, em alguma medida, o questionamento da sua real utilidade. Conforme Jean-François Chantal (2002), nos países com forte desenvolvimento industrial, os trabalhadores do setor público chegam a negar a sua condição de funcionário público para não serem ridicularizados. O que demonstra que as falas dos políticos e a críticas vorazes da mídia abalam a imagem que os servidores tem de si mesmo.

Dardot e Laval (2016) trazem que o Estado é alvo de críticas desde o século XIX, retomando a perspectiva de Fréderic Bastiat, que aponta:

Os serviços públicos, dizia ele [Frederic Bastiat], alimentam a irresponsabilidade, a incompetência, a injustiça, a espoliação e o imobilismo: “Tudo que caiu no domínio do funcionalismo é quase estacionário”, por falta do incentivo indispensável da concorrência. [...] Outras críticas se juntaram a essa, ampliando a ideia do desperdício burocrático: o caráter inflacionário dos gastos do Estado, o tamanho insuportável da dívida acumulada, o efeito dissuasivo de impostos muito pesados e a fuga de empresas e capitalistas do espaço nacional, que se tornou “não competitivo” por causa do peso dos encargos sobre os rendimentos do capital (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 207).

63 Nesse mesmo caminho eles abordam como as patologias sociais – desemprego, pobreza, desigualdade, etc. estavam relacionados, nos anos 1970, ao capitalismo e nos anos de 1980 foram atrelados ao Estado. O capitalismo passou a ser, mais do que antes, defendido pela população. Isso ganha ainda mais força quando culmina com a crise da esquerda do final do século XX. As soluções apresentadas pelo Estado foram consideradas ainda mais problemáticas, como por exemplo, a gratuidade dos estudos, entendida como um estímulo à vadiagem e a criação de políticas de distribuição de renda, que supostamente desestimulariam os esforços individuais. Essas questões estão fortemente presentes nos debates aqui no Brasil. Esta pontuação traz elementos que tem um impacto para o funcionalismo público no campo moral.

A desmoralização feita durante anos por diferentes setores como a direita e a mídia cumpre um importante papel social, como destacam Dardot e Laval, “é precisamente pela desmoralização que se é capaz de provocar na população a opinião de que a política do Estado de bem-estar ou qualquer medida associada a ele se tornou particularmente onerosa” (DARDOT e LAVAL, 2016, p. 210). O debate no campo moral passou a sobressair o debate no campo político: “não é o mercado que destrói a sociedade civil com sua ‘sede de lucro’, porque ele não poderia funcionar sem essas virtudes da sociedade civil; é o Estado que corrói as molas da moralidade individual” (Ibidem, p. 210). Isto é, o Estado social passa ser o vilão e tido como o destruidor das virtudes – honestidade, esforço pessoal, civilidade e patriotismo - elementos da sociedade civil que se modificaram, segundo os pensadores neoliberais, e apenas o mercado seria portador de uma superioridade moral. Em resumo, de acordo com os neoliberais “a proteção social destrói valores sem os quais o capitalismo não poderia funcionar” (Ibidem, p. 211).

Dentro dessa visão, os servidores públicos se tornaram alvos constantes de ataque, sendo vistos como os vilões, os corruptos, os ineficientes e ainda como os privilegiados. Esse processo é essencial para a fragmentação da classe trabalhadora, a partir do discurso de que uns são privilegiados em detrimento de outros. Esta concepção também abre espaço para afirmar que os trabalhadores que não atuam no serviço público pagam a conta destes. A relação que a sociedade constrói com os servidores públicos está fundamentada nos serviços oferecidos pelo Estado, e a importância que eles possuem é fruto da redefinição do papel do Estado.

64 A mídia cumpre um papel importante, como afirma Dardot e Laval (2016). Reportagens com chamadas que atacam o serviço público são rotineiras: Análise: Serviço público é caro e ineficiente23; Privilégios de servidores estão na mira do ajuste do governo federal, Estudo aponta que gestão pública no país é ineficiente24. São poucos os que apontam críticas e defendem, como o caso de Paulo Pinheiro, no Jornal O Globo, com a reportagem chamada Serviço público, um fim25: Entregar posições de comando a amadores ou a quem busca vantagens pessoais é inadmissível, na qual ele afirma:

o município dispõe de servidores capazes de combater e vencer a crise, em todas as áreas, mas eles precisam de meios para trabalhar sem a interferência de pessoas que enxergam a máquina da prefeitura como meio para obter votos nas próximas eleições. Recentemente, o secretário Cesar Benjamim disse que educação é um fim e não um meio. Eu ampliaria esta visão, afirmando que todo serviço público eficiente e de qualidade é um fim, e seus servidores, o melhor meio. Repetir os erros do passado, entregando posições de comando a amadores ou a quem busca vantagens pessoais é inadmissível (PINHEIRO, 2018, s/p).

Segundo França (1994), o que diferencia o servidor público é a sua dimensão ideológica, na medida em que ele representa o interesse coletivo. Contudo, associa-se a ele um paradoxo: tratam-no como um trabalho indiferenciado, comum, mas exigem-lhe uma postura particular e específica.

Para Cerqueira e Cardoso Jr. (2019) esse novo modelo coloca em cheque o sentido da existência do servidor público, visto que há uma imposição da lógica empresarial para o setor público, que despreza o fato de que esta categoria tem viés e natureza de atuação sociopolítica diferente da perspectiva privada - que gira em torno unicamente de obter lucro. Essa transposição é nociva para o setor público e para própria população, uma vez que representa um ataque também às políticas públicas. A comparação entre o produtivismo do setor privado e o setor público torna-se mais tensa diante da postura midiática que acirra a questão moral entre a população e os estatutários. De acordo com França (1994), há no Brasil uma ânsia insaciável de

23 (JC NOTÍCIAS, 2017A); (JC NOTÍCIAS, 2017B). 24 (G1 NOTÍCIAS, 2007).

65 moralidade e uma busca incansável pela prisão e punição moral, dentro de um jogo de poder abusivo. Para a autora, nessa perspectiva moral:

os funcionários públicos fazem hoje, de fato, o papel de "boi de piranha", na complexa questão entre o público e o privado no Brasil. Assim como na conhecida artimanha de fazer atravessar o rebanho em um rio povoado de piranhas, assim também o funcionalismo é jogado na frente, para ser devorado, enquanto temas fundamentais que aguardam mudança radical e urgente, faz muito tempo, passam imunes e continuam intocáveis (FRANÇA, 1994, p. 207).

A autora ainda destaca que há nesse sentido, como estratégia dos neoliberais, a construção de dois Estados. Um feito para receber críticas, afinal, é sempre apresentado como um péssimo prestador de serviços, e o outro que é responsável por garantir as truculências econômicas necessárias para o projeto neoliberal. Na primeira perspectiva, somada ao processo de desmoralização do trabalhador, retira-se o reconhecimento do seu serviço. Para a psicodinâmica do trabalho, o reconhecimento está na essência do sofrimento e da satisfação no trabalho (DEJOURS, 1990 apud CHANTAL, 2002). A quebra do seu reconhecimento e valor social prejudica o próprio processo de motivação para o trabalho. O servidor passa a ter que lidar com o sucateamento dos meios de trabalho, com ausência de novos concursos enxugando o quadro de pessoal e intensificando a precarização do seu trabalho, para além de suportar o ciclo de críticas. Ele passa a se encontrar na corda bamba de ter que produzir na lógica privada e ser cobrado como se nada que faz fosse socialmente útil.