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5. O TRABALHO NO HOSPITAL UNIVERSITÁRIO

5.7 Ponderações finais realizadas pelos entrevistados

Por fim, foi apresentada aos entrevistados a possibilidade de realizarem comentários finais, sugestões, dentre outros. Um elemento considerável nesse item da entrevista foi a negativa inicial em se fazer ponderações, talvez por receio de citar algum aspecto mais sensível ou a partir do relato de algum fato serem identificados. A hesitação, após segundos de silêncio, se converteu em novas respostas.

Entre os entrevistados, 47% do total de sujeitos manifestaram interesse em realizar tais ponderações, sendo elas categorizadas e dispostas em: 25% falaram a respeito da insalubridade no trabalho, como à exposição a riscos e acidentes, falta de segurança no hospital e ergonomia comprometida; 23% criticaram a gestão hospitalar, citando diretamente gestão da EBSERH, evidenciando clima organizacional ruim em todos os âmbitos – tanto para os que já trabalhavam quanto para os que chegaram com a empresa; 21% dos sujeitos referiram às deficiências da estrutura do hospital, com críticas às instalações como um todo, com ênfase na ausência de salas de conforto para os profissionais, ausência de equipamentos, tais como cadeira de rodas e macas, problemas com deslocamentos dentro do HUPES (falta de elevadores) aliados à falta de segurança para os pacientes e trabalhadores; 18% deles citaram o assédio moral , evidenciando a relação entre a perseguição sofrida e as dificuldades para denunciá-la. Ainda dentre as respostas, 11% abordaram as dificuldades das relações interpessoais, tecendo pontuações críticas ao modo como ocorreram as demissões FAPEX, à vaidade dos médicos, aos tratamentos diferentes, decorrentes da hierarquia existente entre as categorias, aliada à dificuldade de trabalhar em equipe; 2% apontaram as doenças do trabalho de origem física e psicológica.

O que preliminarmente se observou com aplicação dos questionários é que a transferência administrativa do HUPES para a empresa pública de direito privado – a EBSERH – levou a uma segregação entre os profissionais que compõem o quadro de pessoal do hospital universitário, confirmada, muitas vezes, pelas respostas das questões discorridas anteriormente, tais como diferenças salariais e em planos de carreiras,

148 episódios de discriminação e/ou assédio moral entre os profissionais, decorridos de seus diferentes vínculos empregatícios, ausência de união acerca de questões sindicais e por consequência, defesa de direitos trabalhistas, dentre outros.

O modelo de gestão adotado não universaliza o ambiente de trabalho estudado e muito menos rompe com os diferentes vínculos empregatícios. Muito pelo contrário, alimenta o clima organizacional de maneira negativa, que leva os trabalhadores de uma mesma categoria a não se identificarem como iguais, e, portanto, manterem relações conflitantes entre si. O assédio moral esteve presente em diversas falas, em muitos momentos os entrevistados usavam exatamente a palavra ‘assédio’ em tantas outros ficava nas entrelinhas do que era dito. A técnica de laboratório celetista, Amélia, descreveu aquilo que ela reafirmou como discriminação por vínculo, que se torna assédio:

Amélia: As pessoas da UFBA daqui do setor parece que são semideuses, sabe? E nós da EBSERH somos os plebeus, os camponeses [risos].

Pesquisadora: Isso você fala em relação a colegas próximos ou de outras hierarquias?

Amélia: Das duas coisas, sabe? Do colega que pensa que pode fazer tudo e nós não podemos fazer nada. E, as pessoas que estão como chefia que querem exercer um poder em cima de você, não sendo sua chefia, mas acaba exercendo, influenciando a chefia a exercer aquilo sobre a pessoa, sobre mim mesma. Eu só posso falar sobre mim. Vejo acontecer também com as outras pessoas, mas só posso falar de mim. Então eu vejo muito isso aqui no setor. Acho que a única solução seria sentar e conversar, eu não desejo que essa pessoa saia. Eu só desejo que melhore o relacionamento.

Ela continuou no assunto após a finalização do questionário:

Sobre as pessoas, dizem: 'somos todos HUPES,' mas nós não somos todos

HUPES. Não somos todos HUPES assim, não somos considerados todos HUPES. Porque é uma brincadeira de mal gosto aqui, uma indireta ali, 'mas

eu não estou falando de você não, está? Estou falando da empresa'. Só que para falar da empresa você tem que ir lá na empresa falar, se você está falando comigo da empresa, você está se referindo a mim porque eu trabalho nessa empresa [...].

149 Então, parece que não fizemos um concurso, que a gente entrou aqui pela janela, foi diferente das pessoas que fizeram concurso, mostraram que tem habilidades que tem conhecimento para estar aqui?

Afinal, nós somos também funcionários federais, empregados federais,

pelo regime CLT nós somos empregados federais. Então, eu gostaria que a vigilância sobre o assédio moral fosse pesada. Só é dito, mas não é praticado. Dão cartazes, folhetos, 'denunciem', 'façam isso, façam aquilo', até parece, não dá em nada as denúncias que as pessoas fazem. Eles colocam na Intranet, aí você só abre o portal se você fizer e responder o questionário, e eu falo mesmo tudo que estou falando para você eu também falo não pede para citar nomes, pede para citar cargos, e eu cito os cargos, mas infelizmente é isso aí.

A definição de assédio moral não é exata, entretanto, aproxima-se do senso comum a ideia de que assédio moral é um ato de perseguição. Genericamente, entende- se que assédio sempre existiu na sociedade, contudo no mundo do trabalho o seu processo de aceitação e combate é algo recente (AGUIAR, 2015). Utiliza-se, nesta pesquisa, o conceito de Guedes (2003) que define como "todos aqueles atos e comportamentos provindos do patrão, superior hierárquico ou dos colegas, que traduzem uma atitude de continua e ostensiva perseguição que possa acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima" (apud PAROSKI, 2007 p. 216).

O estudo apontado por Aguiar (2015) traz o assédio moral como um importante instrumento para a precarização do trabalho, no qual os atos de perseguição e violência são constantes. Segundo o autor "o assédio moral não é fruto das relações interpessoais e sim o resultado das atuais estratégias capitalistas de gestão e organização do trabalho” (AGUIAR, 2015, p.284).

Nesse sentido, o assédio moral pode ser compreendido como um instrumento de coerção e dominação sobre o trabalhador, utilizado pelo capital, tendo entre seus objetivos construir uma nova forma de exploração da força de trabalho, para realizar um verdadeiro controle das ações desses trabalhadores de maneira violenta (AGUIAR, 2015).

Em síntese, com base nos resultados obtidos nota-se que o processo de criação da EBSERH representa a terceirização do serviço público, visto que ocorreu a transferência de todo o hospital, desde sua estrutura física, equipamentos, recursos financeiros, e principalmente seus trabalhadores. Cabe lembrar que os servidores foram cedidos à

150 empresa sem a realização de uma consulta prévia acerca dessa mobilização; o que posteriormente, foi revogado, entretanto, diversas categorias não tiveram a opção de sair do hospital, permanecendo submetidas à gestão da EBSERH.

A pesquisa de campo também demonstrou como o processo de terceirizar a gestão do hospital foi uma escolha política que teve dentre os seus focos, o ataque à estabilidade dos servidores estatuários e a sua organização sindical, posto que, na ida ao campo, foi possível perceber, tanto pelas respostas coletadas quanto pela observação da dinâmica organizacional, que as principais transformações oriundas da mudança de gestão poderiam ter ocorrido sem a criação da empresa, e resolvidas através de medidas como contratação via concurso público de novos servidores e o repasse de verba do REHUF, até então suspensa.

A gestão foi alterada, no entanto, segundo os entrevistados com o vínculo RJU, a chegada da empresa pouco significou na melhora para o hospital, uma vez que a problemática da quantidade e qualidade dos insumos permanece e a estrutura do hospital também não melhorou, o que compromete consideravelmente o desenvolvimento do trabalho. Queixas como o calor, falta de equipamentos, elevadores quebrados, escadas mal iluminadas e quebradas, ausência de segurança para os trabalhadores, inexistência da sala de descanso ou o sucateamento das que existiam – com a exceção às dos médicos - foram constantemente apontadas pelos entrevistados. Em 2018, por exemplo, a infraestrutura precária gerou o cancelamento de cirurgias, como noticiado: “Falta de ar condicionado suspende cirurgias no Hospital das Clínicas por seis dias”. Conforme a entrevista cerca de 16 a 20 cirurgias foram canceladas por dia. (BN, 2018)

Aliada à não melhoria das instalações hospitalares, a multiplicidade de regimes jurídicos desenvolveu um clima hostil com diversos casos de discriminação no ambiente de trabalho devido, principalmente, ao modo como foi realizada a inserção desses novos trabalhadores no hospital. Isto é, a chegada dos empregados da EBSERH trouxe por um lado o sentimento de descartabilidade para o servidor RJU. E para os celetistas, a ideia que chegariam num ambiente rude em que estariam “roubando” o emprego dos outros.

O clima organizacional não foi preparado. A mídia apontava os servidores como aqueles que deveriam ser substituídos e renovados, tratando-os como envelhecidos e

151 incapazes de manterem o devido funcionamento do hospital; desconsiderando todo o processo de fragilidade e carência de trabalhadores que perdurava há anos. E tal atitude teve impacto para os servidores até então em exercício, que por sua vez, passaram a solicitar remanejamentos e/ou aposentadorias.

A gestão da EBSERH também foi um dos elementos citados como problema para execução do trabalho; 12% dos entrevistados apontaram como a gestão deixa a desejar, ao passo que ela não rompeu com a atuação médico-centrada. Ao contrário, acirrou essa situação ao destinar quase que todos os cargos de chefia aos médicos – que também foram apontados como os maiores algozes de discriminação por diferença de vínculo e função.

Embasado nos dados do estudo, pode-se defender que a terceirização e a instituição de dois e/ou mais vínculos e, portanto, o constante questionamento quanto à garantia de estabilidade ao servidor, não é a melhor opção para o funcionamento do serviço público, tendo em vista que, como alternativa, traz a instabilidade do vínculo celetista, o que por sua vez, mina a luta coletiva e adoece os seus trabalhadores por gerar um ambiente inóspito.

O supracitado programa Future-se interfere na gestão dos HUs estabelecendo a ‘dupla porta de entrada’ nos hospitais. Significa que o atendimento pode ocorrer tanto pelo poder público, de forma gratuita, quanto por convênios por meio de planos de saúde. O Future-se no Art. 42 altera a o Art. 3º da Lei da 12.550/11 em que no quarto inciso dispõe “Os hospitais universitários poderão aceitar convênios de planos privados de assistência à saúde (NR).” (DOSSIE FUTURE-SE, 2019, p. 24).

O MEC justifica que tal mudança é necessária para aumentar a captação de recursos privados, que por meio do ressarcimento dos planos de saúde previsto em lei ao SUS, os hospitais universitários poderiam captar recursos próprios. Na prática, tal alteração representa um ataque direto aos serviços de saúde públicos, gratuitos e de qualidade, tendo em vista que esses hospitais são referências. A possibilidade de atendimento à planos de saúde pode gerar um movimento em que se deixe de atender pacientes do SUS para atender pacientes com planos de saúde, tendo em vista o ressarcimento oriundo desses convênios. Nesse sentido, o que ocorreria é o

152 “estreitamento da porta” para os usuários do SUS. Assim sendo, ameaça-se diretamente o perfil SUS dos HUs e se avança para a privatização da saúde.

Diante do exposto, nota-se que a terceirização não resolveu o problema de gestão tão pouco apresentou melhora quanto à eficiência dos serviços públicos. Na reportagem intitulada Má gestão: Hospital das Clínicas tem 400 leitos desocupados e até 1 médico por paciente, Arraz (2019) aponta que há no hospital seis salas de cirurgia paradas, e mais de 400 leitos ociosos. A gestão é descrita como ineficiente, as obras prometidas pela empresa estão atrasadas; e há equipamentos como a máquina de ressonância ainda empacotados e espalhados pelos corredores. Na ida a campo foram vistos alguns desses equipamentos espalhados e as obras inacabadas (apêndice).

O que se percebe, contudo, é que no Brasil, há um processo de ataque às instituições públicas, e nesse caso, à saúde pública e ao próprio SUS. As críticas frequentes ao hospital, tais como ausência de insumos suficientes, instalações precárias, problemas gerenciais estão presentes em grande parte das instituições, senão em todas, da rede pública. São crises oriundas de suas relações com o Estado, que por sua vez, visa o sucateamento e desvalorização dessas instituições, atuando em prol do capital.

A terceirização, vista como válvula de escape para a crise nos hospitais universitários, causou problemas adicionais. A multiplicidade de vínculos, sempre adotada nesses processos de terceirizações, deve ser encarada, portanto, como uma estratégia por parte do Estado para desvio do foco principal: Os profissionais se perdem em conflitos internos e não percebem que, no fim das contas, todo esse processo objetiva desresponsabilizar o Poder Público acerca das garantias constitucionais de prestação de serviço público gratuito e de qualidade, bem como eficiente, e os torna reféns da lógica neoliberal.

153 Compreender os ataques ao serviço público e as novas políticas que vem sendo aplicadas no Brasil passa pelo entendimento da “racionalidade neoliberal”, conforme exposto no capítulo um. Esse modelo ideológico e econômico baseado na lógica da acumulação flexível veio para consolidar a reestruturação produtiva pós crise do sistema fordista (HARVEY, 1992; FILGUEIRAS, 1997). Os autores Dardot e Laval (2016) destacam que o neoliberalismo desde seus primórdios vem surpreendendo com a sua capacidade de autofortalecimento, apesar de crises do capitalismo, os seus valores parecem a cada dia ganhar mais força no mundo, tanto nos países centrais como nos periféricos.

A partir da reestruturação produtiva se desenvolveram novas formas de gestão do trabalho, influenciadas diretamente pelo modelo japonês, para atender as novas demandas do capital flexível. Nesse jogo, a eficiência e a flexibilidade entram na lógica do mercado. Intensifica-se a racionalidade neoliberal e o preço a ser pago pelos trabalhadores é a precarização social do trabalho. Entende-se por social a precarização que tem como características: ser geral, no sentindo de mundial e rompe com as dicotomias (público x privado, empregado x desempregado), regularizando a instabilidade; é usada como estratégia de dominação em uma dada situação histórica; e dadas as mudanças no campo laboral impacta diretamente âmbito da vida social (DRUCK, 2016).

A reconfiguração do Estado, e principalmente, o ataque ao caráter social deste é umas das principais táticas do neoliberalismo. No Brasil, esse processo se iniciou nos anos 1990 no governo de Fernando Henrique Cardoso, com a Reforma do Aparelho do Estado em 1995, desenvolvido pelo ex-ministro Bresser-Pereira. O Estado gerencial torna-se a palavra de ordem. A lógica do gerencialismo é apresentada pelos neoliberais como a solução dos problemas sociais (DARDOT E LAVAL, 2016). Chantal (2012, p. 2) apresenta o termo managerialismo para explicar “o sistema de descrição, explicação e interpretação do mundo a partir das categorias da gestão privada” que passa a contaminar todo o serviço público.