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O PERÍODO DO FASCISMO

5. Percursos de escolarização

7.1. A entrada no mundo do trabalho

Originários de famílias provenientes de meios rurais, mais ou menos próximos da cidade, muitos foram os casos em que os pais dos nossos interlocutores começaram a

trabalhar ainda muito pequenos. Pelo menos até aos anos 50, era comum muitas crianças iniciarem a sua actividade profissional com seis, sete, oito anos de idade. Enquanto os rapazes iam “servir” e viver para casa de lavradores, para trabalhar nos campos e em diversas actividades agrícolas, as raparigas iam trabalhar e viver como “criadas de servir”, também para casa de lavradores ou para casas de “pessoas ricas”, nas cidades, para realizarem as mais diversas tarefas domésticas. Afastadas precocemente do ambiente familiar e da escola (existindo, no entanto, situações em que os patrões os/as deixavam continuar a estudar para concluírem a escolaridade obrigatória), eram, muitas vezes, sujeitas a maus-tratos, a ritmos de trabalho extenuantes, sem horários, a viver em condições deploráveis, a passar fome e frio, podendo mesmo não auferir qualquer tipo de remuneração. O pagamento do seu trabalho traduzia-se, unicamente, na parca comida e nas péssimas condições de alojamento, mas significava, para as famílias, menos uma boca para alimentar, numa época em que o que conseguiam assegurar não era suficiente para todos. Tendo crescido nestas condições, muitos dos rapazes acabaram por mudar de vida aquando da ida para a tropa, ou arranjando trabalho como operários, e muitas das raparigas por ocasião do casamento, após o que ou iam trabalhar para as fábricas ou ficavam em casa para tratar dos filhos.

minha lambona, querias uma tigela deste tamanho de sopa

a minha mãe veio da Trofa servir para St. Tirso com 6 anos de idade [...] veio lá para os lavradores servir com 6 anos de idade. [...] Ela contava-nos essa história quando nós éramos pequeninas, estávamos à lareira, e ela contava que foi servir e que aquilo que lhe davam era, a meio da manhã, um bocadinho de pão; punham-na com uma vara na mão a vigiar para que as galinhas não fossem para as sementeiras e ela quando adormecia apanhava com a vergasta pelas costas abaixo; depois ao meio dia ia comer a sopa e depois um bocado de pão, à tarde; à noite tornava a comer sopa e diz que ia dormir no meio de lençóis de estopa que só eram lavados uma vez por cada ano e que tinha tanto frio, tanto frio, tanto frio, que estava sempre morta que chegasse de manhã para se pôr a pé. [...] contava-nos que um dia ela, por sua iniciativa, quebrou a tigela da sopa, deixou-a cair para ver se depois conseguia uma tigelinha maior, com mais um bocadinho de sopa. Então [...] (os patrões) disseram-lhe - passas pela feira e compras uma tigela para a sopa já que partiste a tua; e ela trouxe uma maior um bocadinho e contava assim com tanta vergonha que lhe disseram - minha lambona, querias uma tigela deste tamanho de sopa, vais trocar por uma mais pequena [...] Depois aos 12 anos já foi servir para uma casa, já passava a ferro, lavava, limpava, já tinha criada de sala, já fazia aqueles trabalhos todos e onde esteve a servir até casar (Mª Emília Reis, 3-4)

diz que a tratavam tão mal, tão mal, tão mal que já não suportava

a minha mãe andou na escola primária até meio da 2ª classe e depois tiraram-na para ela ir servir, com sete anos; veio servir aí não sei para onde. Dizia a minha mãe, enquanto eu

estive na quinta (onde trabalhavam os pais) a gente tinha sempre de comer; quando, não sei qual foi o casal, precisava de uma criadinha, então foi a minha mãe […]. Esteve lá, segundo creio, aí até aos 10 anos e depois, ela própria fugiu; diz que a tratavam tão mal, tão mal, tão mal que já não suportava. Fugiu e veio outra vez para a quinta. E depois, na quinta, a minha avó, coitada, lá esteve com ela assim um bocado, deve ter estado a curar- lhe as feridas, não é, acho eu, até haver outra casa para onde ela foi. Depois, mais tarde, é que surge então a fábrica de calçado e a fábrica de rebuçados. (Palmira, 6-7)

com sete anos, veio servir para o Porto

A minha mãe era de Braga e o meu pai era de Penafiel, mas a minha mãe veio muito menina, com sete anos, servir para o Porto, e ficou cá.(Amália1, 1)

Tendo os seus pais passado por experiências tão duras e marcantes como estas, continuando a viver situações de pobreza e de grandes carências, profundamente limitadas as suas aspirações e sem perspectivas de alteração das suas condições de vida, ver os filhos começar a trabalhar, entre os 10 e os 11 anos, através da aprendizagem inicial de um ofício, quantas vezes também não remunerada, ou do ingresso imediato em empresas fabris próximas, acabava por ser sentido, em certos casos, como uma melhoria face ao que eles próprias tinham vivenciado.

para a gente perceber que nós éramos muito acariciados

e ela contava-nos (o que tinha sido a vida dela, enquanto criança, a servir) que era para a gente perceber que nós éramos muito acariciados e muito acarinhados para a vida que ela levou. E ela contava isso para a gente ter consciência do que tinha sido a vida dela durante a sua pequenez. (Mª Emília Reis, 3)

O facto de a entrada para uma actividade profissional se ter dado um pouco mais tarde do que acontecera com os pais, isso não significa que muitas destas crianças não tenham começado a trabalhar demasiado cedo e em trabalhos pesados, ainda na escola, ou mesmo antes, fora de casa ou ajudando a família nas mais diversas actividades. Esse apoio era, em muitos casos, imprescindível quer pelo dinheiro que traziam para casa quer pelo trabalho que realizavam e que contribuía para o aumento dos rendimentos familiares.

cerca das 4 e meia, 5 da manhã eu levantava-me para levar o gado a Matosinhos E então, o que é que acontece, acontece que ele (o padrinho) era negociante de carneiros, ia para as feiras, comprava os carneiros, depois levava-os para o matadouro e depois fornecia para os talhos. E, nessa altura, eu vinha da escola, muitas das vezes a fazer já os deveres pelo caminho [...] e ia ter com o velhote para ele ir aos clientes e eu ficava com o gado, a pastorear, não é? [...] Bom, muitas das vezes, duas vezes por semana, cerca das 4 e meia, 5 da manhã eu levantava-me para levar o gado a Matosinhos, ao matadouro de

Matosinhos, a pé, daqui da Areosa, ia a tanger o gado até Matosinhos, isto com esta idade, cinco anos, seis, sensivelmente e, depois disso. (Barra 1, 6)

a partir dos 7 anos já andava com as cabras e com as ovelhas

Eles (os pais) tinham cabras, tinham ovelhas e eu tinha que ir com elas, às vezes antes de ir para a escola, tinha que fazer isso, com os meus irmãos. As minhas irmãs não, mas eu e os meus irmãos tínhamos que fazer isso. [...] a partir dos 7 anos já andava com as cabras e com as ovelhas e, se não fosse, o meu pai estava aí para chamar à responsabilidade, ou seja, para me bater, isso acontecia (Albano, 7-8)

de manhã ia para a escola e de tarde ia trabalhar para a fábrica

Andava na 4ª classe, de manhã ia para a escola e de tarde ia trabalhar para a fábrica, com 10 anos. (Amália1, 10)

Para além da importância do trabalho das crianças para a economia familiar, este era também encarado pelo valor educativo que pressupostamente teria. Tendo interiorizado que o futuro dos filhos não poderia ser muito diferente do seu, era tido como positivo que as crianças cedo se habituassem a trabalhar, aprendendo o rigor e a disciplina a que o tipo de trabalho que presumivelmente iriam ter obrigava. Ficar a brincar, em casa ou na rua, com outras crianças, ensiná-los-ia a ser “preguiçosos” e não os preparava para o tipo de vida que os esperava e para a sua dureza. Nesta perspectiva, tão cara ao regime, o melhor para os filhos era mesmo tê-los a trabalhar, pois só dessa forma desenvolveriam as qualidades tidas como necessárias para virem a ser os bons trabalhadores que se dizia o país precisar e que as lógicas de exploração capitalista não dispensavam.

quem vinha para a rua eram os mandriões

Tinha 11 anos quando comecei a trabalhar numa oficina de automóveis, [...] mas desde os cinco, seis anos eu ajudava no armazém (onde trabalhava o pai); ou seja quando não tinha escola, nos intervalos da escola, era para ir trabalhar para o pé do meu pai; não ganhava nada, mas o meu pai punha-me ali, porque ele achava que isto é que era, é que fazia uma boa educação. Vir para a rua transformava-nos [...] ele dizia que quem vinha para a rua eram os mandriões e, portanto, saía da escola, sabia que tinha que ir trabalhar para o armazém, tirando a catequese e mais umas coisas que eu fazia fora de casa. (Freitas, 3)

Terminada a escolaridade obrigatória, o assegurar de um ofício para os filhos tornava-se uma prioridade. Entrar como aprendiz, designadamente nalgumas pequenas empresas, de natureza familiar, era muitas vezes encarado como a porta de acesso para uma futura actividade profissional. Mas tal entrada podia significar estar vários anos sem qualquer tipo de remuneração. O “pagamento” consistia em ensinar o ofício, ensinar uma profissão, que permitiria mais tarde vir a auferir um salário, sendo

considerado como um “favor” que as famílias deviam agradecer, pois as crianças aprendiam um ofício e não os “maus vícios” resultantes da ociosidade. Mas, a realidade é que o trabalho das crianças era efectivo e gerava lucros e, além disso, elas eram ainda obrigadas à realização de muitas outras tarefas que nada tinham a ver com a aprendizagem de uma profissão, e que também não eram remuneradas. Neste processo, o patrão tinha um enorme poder sobre todos, não sendo raras as situações de recurso à violência física, muitas vezes com o acordo dos pais. Era uma forma de continuar a “educação” para o trabalho, já iniciada em casa, a “educação” para a disciplina, para a obediência e para a submissão a um trabalho subordinado e sem direitos, assumido como inevitável e cuja legitimidade não era questionada.

os pais quase autorizavam que o patrão desse umas lapadas - isso ajudava a educar aos 11 anos fui trabalhar para uma oficina de automóveis (no Pinhão) e lá também, como na altura era tradição, os jovens iam trabalhar e só ao fim de três, quatro anos passavam a ter salário. Eu andei nessa situação não quatro anos nem três, andei ano e meio, desenrascava bem e ao fim de ano e meio já era o pintor principal da empresa, (Freitas, 3) o ambiente de trabalho era muito forte, o patrão tinha um poder brutal sobre toda a gente. Os pais, no fundo, quase autorizavam que o patrão desse uns socos ou umas lapadas nos jovens, que isso ajudava a educar (Freitas, 6)

eu estava todo o dia ocupada, ia aprendendo alguma coisa, se ela me quisesse pagar a seguir (depois de feito o exame da 4ª classe) a minha mãe tratou de pedir a ver se arranjava trabalho para mim. [...] então ela arranjou uma senhora em S. Mamede, que fazia tricô à máquina para fora, era ela, uma filha e tinha uma empregada, e arranjou que ela me deixasse ir para lá aprender. [...] Pelo menos eu estava todo o dia ocupada, ia aprendendo alguma coisa, se ela me quisesse pagar alguma coisa, pronto. Então a Dª Otelinda, que coitada, até nem era má pessoa, mas que ter lá uma miúda que, ainda por cima, se mandasse limpar o chão eu limpava [...] aquilo era uma maravilha, portanto eu fiz de tudo lá dentro. Mas também aprendi a trabalhar nas máquinas, verdade seja dita, e então ela pagava-me 25 tostões por semana. (Palmira, 49)

era uma coisa mais limpinha ir para um atelier de costura

a minha mãe tirou-me (da escola) e pôs-me a aprender costura. Naquela altura as alternativas de emprego para as raparigas eram servir, aprender costura, ou ir para a fábrica, que algumas já iam para a fábrica; na década de 50 e tal já começou a aparecer a indústria têxtil e já iam para a fábrica. A minha mãe entendeu que era uma coisa mais limpinha ir para um atelier de costura, aprender costura e eu fui. Fui e estive lá até aos 14 anos (Mª Emília Reis, 7)

A entrada para empresas de maiores dimensões, já não de natureza familiar, implicava também, muitas vezes, a capacidade de mobilização das redes de relações familiares, de vizinhança e de conhecimentos.

vim para aqui, com mais pessoal lá de Rio Mau

ainda não tinha 14 anos parti para o Porto, para trabalhar numa oficina de uma empresa grande (de construção civil) que se chamava Willian Graham; uma oficina de carpintaria. Portanto eu fiz a 6ª classe e a partir daí entrei nessa empresa, muito jovem, [...] já tinha um irmão que estava no Porto, que estava a estudar, e eu vim para aqui, com mais pessoal lá de Rio Mau (Albano,1)

o meu pai arranjou-me um emprego na CUF

aos 15 anos o meu pai arranjou-me um emprego na CUF, que aliás dava preferência aos filhos dos seus empregados, e lá fui eu trabalhar para aquilo a que na altura se chamava Elevadores de Vila Nova de Gaia. [...] E, portanto, foi para aí, no topo da Calçada das Freiras, que eu entrei numa oficina como aprendiz de serralheiro, aos 15 anos. (Ranita1, 12)

sabes quem é que eu conheço

um dos indivíduos que tinha uma quinta acima do Pinhão, quase no Tua, trabalhava aqui na Empresa Fabril do Norte; era um dos responsáveis, suponho, na área da contabilidade. Na altura o meu tio disse, sabes quem é que eu conheço, aquele que vocês iam lá à quinta, ele trabalha ali numa grande empresa na Srª Hora, têxtil. Então, vamos lá falar com ele. O meu tio marcou uma entrevista, ele recebeu-nos logo e eu fui um dia ali à EFANOR, disse o que é que queria, que estou a estudar, trabalho assim, assim, sou mecânico e ele disse – ó pá para a mecânica aqui não temos mas se quiseres vir para a parte da manutenção da fábrica, sim senhor, vens já amanhã. (Freitas, 7).