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II HISTÓRIAS DE VIDA, HISTÓRIAS DE FORMAÇÃO

HISTÓRIAS DE VIDA, HISTÓRIAS DE FORMAÇÃO

Falar de histórias de vida significa, inevitavelmente, falar de percursos e processos individuais e colectivos de educação e formação e implica dar conta e ter em conta os contextos sociais e políticos mais vastos em que as vidas e as suas histórias ocorrem.

Muito para além da escola, e não ignorando a sua grande importância, é ao longo de toda a vida e nos mais diversos contextos e situações, na relação com os outros e consigo mesmo, que as pessoas se vão formando e transformando, reflectindo sobre as suas vivências e experiências, atribuindo-lhes sentidos e integrando-as na sua própria história. Os processos de formação, de conhecimento, de aprendizagem, de construção de saberes, estão profundamente ancorados em cada história de vida, sendo cada história de vida, uma história de formação e “a história de

formação de cada um, uma história de vida” (Dominicé, 1988:139).

Daí que assuma uma enorme importância, para quem quer pensar os processos pelos quais as pessoas se formam, reconhecer às histórias de vida um lugar central, procurando percepcionar os diferentes espaços, tempos, contextos, redes de relações e experiências que as atravessam e as aprendizagens que proporcionam, bem como os sentidos e significados que cada um atribui às suas próprias vivências.

Pensar assim a formação/educação significa equacioná-la numa perspectiva abrangente e antropológica, muito presente nos discursos da Educação Permanente, enquanto totalidade dos processos educativos/formativos que ocorrem ao longo de toda a vida e confundindo-se com esta, nas mais variadas situações e contextos de socialização, nos quais e através dos quais cada um se vai formando, construindo e reconstruindo a sua própria identidade e as suas subjectividades, diferentes formas de ser, de estar, de pensar, de sentir e de ver o mundo. E significa, pensar o processo de formação “como um processo permanente, dialéctico e multiforme” (Pineau, 1988:76). Defende-se, assim, uma concepção de formação e das pessoas que “não privilegia unilateralmente a razão e a reflexão enquanto únicos motores da formação, atribuindo igualmente um papel ao que resulta da ‘vida’, às emoções, aos sentimentos, às intuições, aos vividos e às experiências da vida” (Finger, 1989: 42). Assumida

enquanto processo de auto construção da pessoa ao longo da vida, a formação vai-se construindo através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal, estando indissociavelmente ligada à ”produção de sentidos” sobre as experiências vividas. (Nóvoa, 1992).

De acordo com José Alberto Correia, a formação resulta

“[…] da vivência de situações informais que se interrogam mutuamente, que se articulam e rearticulam, constituindo-se em unidades de coerência precária, de espaços e tempos que se situam num continuum ou conflituam na ruptura; a ruptura, a reconstrução e a reinterpretação constituem seguramente os seus momentos mais ricos. A formação não é a construção de estabilidades ou a apropriação de certezas. Ela é antes a gestão das instabilidades, a construção de incertezas pertinentes, a gestão do incerto, a produção de sentidos” (1998:151-152)

Equacionar deste modo a formação significa, então, reconhecer e valorizar os contextos informais de formação e a educação informal, enquanto processo permanente e não organizado

“que ocorre ao longo da vida, através do qual cada pessoa adquire e acumula conhecimentos, capacidades, atitudes, a partir das experiências quotidianas e da interacção com o meio ambiente – em casa, no trabalho e nas situações de lazer; a partir do exemplo dado pela família e amigos, das viagens, da leitura dos jornais e livros, escutando rádio, vendo filmes ou televisão.” (Coombs, cit.in Pain, 1990:126)

Abraham Pain (1990:130) põe em evidência a importância estratégica e decisiva dos processos educativos informais, propondo mesmo uma inversão do modo tradicional de analisar as situações educativas, fazendo-o não a partir de qualquer intencionalidade educativa explícita, mas em função da influência e dos efeitos educativos que estas provocam, reconhecendo que muitas actividades da vida quotidiana, cujo objectivo não é explicitamente educativo, provocam, em quem as vivencia, mudanças nos conhecimentos, nas capacidades e nos comportamentos, decorrentes da aquisição de conhecimentos na acção e da capitalização das experiências individuais e colectivas.

Quando me propus analisar memórias e vivências de trabalhadores do Porto e as dimensões educativas/formativas dos movimentos de trabalhadores e das lutas sociais, propus-me fazê-lo a partir das histórias de vida e das narrativas de formação de um conjunto de dirigentes sindicais que aceitaram partilhar as suas vivências, procurando identificar com eles os seus percursos de vida e de formação e os

caminhos que os levaram a iniciar uma intervenção social e política activa e a tornarem-se dirigentes sindicais. Este propósito correspondia a uma necessidade sentida de valorizar percursos de formação informal e de

“[…] proceder a uma reabilitação das experiências, inserindo-as num processo onde a sua pertinência já não se defina pela sua adequabilidade relativamente aos saberes formais e susceptíveis de serem transmitidos, mas pelo sentido que lhes atribuem os indivíduos e os grupos em formação” (Correia, 1998:144),

entendendo a experiência como

“o que é constituído, ao longo do tempo, individual e colectivamente, na intimidade das pessoas, no seu corpo, na sua inteligência, no seu imaginário, na sua sensibilidade, na sua confrontação quotidiana com a realidade e com a necessidade de resolver problemas de toda a natureza”(Jobert, 1991),

Assim, e neste processo, o que foi pedido aos meus interlocutores não foi apenas que contassem a sua história de vida, mas que o fizessem reflectindo criticamente sobre os seus percursos de formação, sobre o que consideravam mais significativo nesses percursos, atribuindo um sentido às suas vivências e pondo, assim, “em evidência uma dupla dinâmica: a do seu percurso de vida e a dos

significados que lhe atribui” (Dominicé, 1988: 56)

São, pois, esses percursos formativos que, de alguma forma, se vai procurar reconstituir, procurando percepcionar a importância que assumiram, no processo de formação destas pessoas, certos contextos de socialização específicos, as redes de relações estabelecidas, certos acontecimentos que vivenciaram ou protagonizaram, e tidos como relevantes. E fazê-lo na sua estreita interligação com o contexto social e político e com as profundas transformações ocorridas em Portugal, que marcaram e atravessaram as suas vidas e as de milhões de portugueses, em muitas das quais foram participantes particularmente activos, sendo influenciados e influenciando múltiplos acontecimentos.

Ao contar as suas histórias de vida e ao analisar os seus percursos formativos são vários os contextos referenciados, sendo diversa a importância que lhes é atribuída em função das características que lhes são reconhecidas e dos significados atribuídos às experiências neles vivenciadas. Aliás, e como afirma Pierre Dominicé (1989) “a riqueza e a diversidade da formação experiencial depende directamente da

riqueza e diversidade das situações permitidas de serem vividas/experimentadas pelo sujeito no contexto que o rodeia”, bem como da capacidade individual de integrar as

experiências vividas, o que depende “das estruturas intelectuais, afectivas e

perceptivas, das motivações e da consciência” (Landry, 1989). O local onde nasceram

e passaram os seus primeiros anos de vida, a família, restrita e alargada, a escola, a igreja, os diferentes locais de trabalho, o serviço militar, as várias organizações e movimentos de que fizeram ou fazem parte, e, muito particularmente, o movimento sindical, todos eles atravessados por múltiplas redes de relações, permitiram-lhes a realização das mais diversas aprendizagens, por vezes contraditórias, que suscitaram muitas interrogações, permitiram a construção de diferentes saberes, levaram à adopção de comportamentos diferenciados, permitindo a (re)construção permanente das suas representações e identidades.

Ao longo da vida, foram vários os pequenos ou grandes acontecimentos que, pelas razões mais diversas, se tornaram particularmente significativos, assumindo uma particular importância no processo de formação de cada um. Foram episódios e

estórias que fazem parte da história de cada vida, “confrontações da vida quotidiana, contrariedades sofridas, revoltas declaradas” (Dominicé, 1988:56), geradoras, muitas

vezes, de rupturas pessoais e/ou sociais diversas e/ou de múltiplos questionamentos, de inúmeras emoções e sentimentos, que contribuíram para que cada um fosse progressivamente “dando forma à sua existência” (ibidem). “Momentos-charneira”, de que fala Christine Josso (1988:44), que provocaram “uma reorientação na sua maneira

de se comportar e/ou na sua maneira de pensar o seu meio ambiente e/ou de pensar em si através de novas actividades” (ibidem). Momentos que “se articulam com situações de conflito e/ou com mudanças de estatuto social, e/ou com relações humanas particularmente intensas, e/ou com acontecimentos socioculturais (familiares, profissionais, políticos, económicos” (ibidem). Momentos e acontecimentos

que nem sempre foram percepcionados, de imediato, como significativos, mas que, mais tarde, noutras situações e circunstâncias, acabaram por ser relembrados e compreendidos na sua complexidade, ganhando então novos sentidos e significados.

Nos diferentes contextos, nas diversas situações vivenciadas, foram muitas as redes de relações que se estabeleceram, as pessoas que se conheceram e de quem se fala, os laços pessoais que se criaram. Redes que influenciaram e marcaram, por vezes de forma decisiva, estes percursos de formação e a forma de cada um se ver e reconhecer a si mesmo, os outros e o mundo, equacionando o seu papel como sujeito da sua vida e como actor social. São, assim, muitas as pessoas referenciadas, pelos motivos mais diversos, associadas a boas ou a más recordações, a comportamentos ou atitudes com os quais cada um se identifica ou não se identifica de todo, traduzindo a influência que tiveram na forma como cada um se foi construindo. Como diz Pierre Dominicé,

“a formação é feita da presença de outrem, daqueles de quem foi preciso distanciarmo-nos, dos que acompanham os momentos-charneira, dos que ajudam a descobrir o que é importante aprendermos para nos tornarmos competentes e darmos sentido ao nosso trabalho”, (1988:60) sendo “aquilo em que cada um se torna atravessado pela presença de todos aqueles de que se recorda” (idem: 56),

É na multiplicidade de contextos, acontecimentos e redes de relações que se vivenciam as mais diversas experiências e que sobre elas se vai reflectindo, atribuindo-lhes sentidos. Essa reflexão é feita quantas vezes consigo mesmo, mas, também, na relação com os outros. Como afirma Christine Josso (2002:40), na reflexão sobre as experiências “encontramos a dialéctica entre o individual e o

colectivo”, empenhando a nossa interpretação mas procurando também, no diálogo

com os outros, uma co-interpretação dessas mesmas experiências. E, “é neste

movimento dialéctico que nos formamos enquanto humanos, enquanto seres capazes de originalidade, criatividade, responsabilidade, autonomização, mas também enquanto seres partilhando um destino comum” (ibidem).

As vidas dos nossos interlocutores e as das suas famílias, atravessam diferentes períodos sociais, históricos, políticos e económicos que marcaram grande parte do século XX português e os inícios do século XXI e que, inevitavelmente, marcaram também as suas condições sociais de existência e os seus percursos de formação. Como diz Abraham Pain (1990:19)

“As mudanças de situação social têm consequências sobre a identidade, as atitudes

e os comportamentos”, sendo “a amplitude da mudança individual determinada pelas mudanças nas situações sociais, mudanças de papel e desafios encontrados”

São vidas que se desenrolaram, em parte, em diferentes momentos e espaços territoriais, vidas que se cruzaram noutros momentos e espaços, marcadas por um cem número de particularidades que as tornam únicas, até porque como diz Bernard Charlot (2000:82) “sou singular, não porque escape do social, mas porque tenho uma

história: vivo e me construo na sociedade, mas nela vivo coisas que nenhum ser humano, por mais próximo que seja de mim, vive exactamente da mesma maneira”.

Mas vidas marcadas também por pequenas/grandes semelhanças que nos permitem, de alguma forma, percepcionar melhor o que diz Franco Ferrarotti (1988: 26) “se nós

somos, se todo o indivíduo é, a reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma praxis individual”.

Procurar reconstituir, na sua complexidade, estes percursos de formação e de construção de identidades, assumidamente “militantes”, implica situá-los nos contextos mais gerais em que as pessoas viveram e vivem, e dar conta do conjunto muito significativo de transformações sociais, políticas e no mundo do trabalho que ocorreram em Portugal nos últimos 80 anos, procurando percepcionar

“de que forma os factores sociais, políticos e culturais marcaram a história de vida de

cada um e de que modo a confrontação das pessoas com estes factores é constitutiva de uma formação sócio-política, frequentemente depreciada nos dias de hoje” (Finger; Nóvoa,1988:14).

Efectivamente, foi no decurso dessas transformações, que marcaram significativamente os seus percursos de vida, com as quais se relacionaram e confrontaram de forma diversa, que estas pessoas se foram formando, transformando e assumindo, cada vez mais, como actores e autores sociais, profundamente empenhados em processos de luta e de mudança social, reconhecendo e atribuindo a si próprios um papel na construção dos processos históricos.

O que estas histórias de vida nos trazem, permitindo-nos relacionar as biografias individuais com as características globais da situação histórica “datada e vivida” (Ferrarotti, 1983:41), não são apenas percursos individuais de formação, mas são, também, percursos colectivos de aprendizagem e retratos possíveis da realidade portuguesa, do mundo do trabalho, dos movimentos de trabalhadores e das lutas sociais, em diferentes períodos históricos, sociais e políticos. Uma história construída a partir dos discursos e das subjectividades de quem viveu situações únicas mas permanentemente cruzadas com as vivências de muitos outros, de quem foi protagonista em muitos dos acontecimentos de que fala e que tiveram uma grande importância nos processos de transformação social e política ocorridos nas últimas décadas, permitindo-nos traçar “quadros” que vão muito para além dos documentos escritos a que normalmente temos acesso e a partir dos quais se tende a construir a história. Estas narrativas evidenciam, com muita clareza, como “a memória de um

pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência de factos colectivos”

(Freitas, Sónia, in Thompson, 2002:17), constituindo-se num importante contributo para a reconstrução e reinterpretação do passado e do presente, para “construir a

história a partir das próprias palavras daqueles que vivenciaram e participaram de um determinado período, mediante suas referências e também seu imaginário” (idem:19),

Os períodos do fascismo, do 25 de Abril e do processo revolucionário, da institucionalização do regime democrático à actualidade, são claramente identificáveis nas diferentes histórias de vida que nos são contadas, e que nos trazem múltiplos testemunhos de circunstâncias e de acontecimentos que vivenciaram e/ou protagonizaram e que foram marcantes no processo de construção de si e na vida de muitos outros trabalhadores.

São histórias que nos dão conta das difíceis condições de existência de muitas famílias operárias no período da ditadura, que muitos identificam mesmo como uma questão central no seu processo de formação, e das lutas travadas contra o fascismo e pela liberdade.

São testemunhos da alegria de uma intensa participação na construção de uma nova realidade e de uma vida melhor que o 25 de Abril proporcionou, da ruptura que este provocou na forma de ver o mundo, designadamente quanto à naturalização até então feita das desigualdades, das esperanças e dos sonhos de um futuro a realizar e ao alcance da mão.

São narrativas de desilusões que os momentos seguintes acabaram por trazer, especialmente no que ao mundo do trabalho diz respeito, e das lutas que milhares de trabalhadores, individual e colectivamente, continuaram e continuam a travar pela sua dignidade e pela construção de uma vida melhor. São testemunhos sobre o movimento sindical, sobre múltiplos acontecimentos em que participaram activamente, sobre a importância que este desempenhou e continua a desempenhar no mundo actual e na sua própria vida.

São histórias da vida quotidiana, de alegrias e tristezas, de felicidade e de dor, de afectos e sentimentos, da capacidade de resistir a adversidades e ao sofrimento, da vontade de sonhar e transformar a utopia em horizonte realizável pelo qual vale a pena lutar, dando novos sentidos à existência. São narrativas reflectidas do ponto de vista da formação e que dão assim conta dos percursos, contextos, acontecimentos, redes de relações e momentos considerados como mais significativos nos seus processos de formação e de construção identitária.