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O PERÍODO DO FASCISMO

3. As relações familiares

A família e as relações familiares assumiam, em geral, uma enorme importância na vida de cada um. É assim que a família surge referenciada como um lugar marcado por profundos afectos, tendo sido no seu interior que se viveram as primeiras experiências de socialização, se apreenderam valores significativos, se foi delineando uma certa concepção da vida, se iniciou a construção de identidades e a construção de percursos futuros.

O que me interessava é que eu estava em casa

(Na sequência de ter ido viver uns tempos para casa da madrinha, onde poderia ter melhores condições de vida) A melhor coisa foi quando a minha mãe me perguntou se eu queria vir outra vez (para casa) [...] e eu lá regressei para casa toda satisfeita da vida, toda contente, e lá regressei. (eram saudades da casa) uma coisa, uma coisa, eu queria lá saber se tinha que dormir com a minha irmã para os pés e eu para a cabeceira ou ao contrário, queria lá saber se na minha madrinha tinha uma cama só para mim, eu não queria saber nada disso. O que me interessava é que eu estava em casa. E esse apego, eu acho que ainda hoje tenho. Esse apego ao meu espaço, ao sítio da minha família (Palmira, 15-16)

a minha mãe era […] uma excelente pessoa

a minha mãe era uma pessoa …, uma excelente pessoa, era muito boa mesmo. [...] eu vou- te dizer assim uma coisa que te digo com toda a sinceridade – eu hoje quando tenho alguma dificuldade na vida, tu vê bem o que a minha mãe representava e representa para mim, eu socorro-me dela. (Albano, 7)

Para muitas crianças das famílias operárias, em que as perspectivas de futuro passavam assumidamente por percursos de escolarização reduzidos e por entradas muito precoces no mundo do trabalho, foi no seio da família que começou a sua construção identitária como trabalhador e como operário. Era esse, então, o horizonte de vida que se apresentava como mais viável - começar a trabalhar o mais cedo possível e ajudar a suportar as despesas familiares. As enormes carências sentidas no dia a dia, as situações de extrema pobreza vivida, sem brinquedos nem tempo para brincar, obrigavam muitas delas, ainda crianças e antes mesmo de começarem a ter um trabalho remunerado, a encontrar os meios e as formas de apoiarem a sobrevivência da família, desenvolvendo estratégias de resistência e construindo também, desse modo, novas configurações identitárias.

Não me lembro de brincar

Não tínhamos assim grande tempo para brincar. Não me lembro de brincar. Nunca tive brinquedos. (Amália1, 8-9)

Eu nunca chegava a casa sem pão

Eu nunca chegava a casa sem pão, porque pelo caminho tirava um soco, andava com um pé descalço e outro calçado, levava um casaco velho e ia pedir pão às senhoras e ia lavar a louça às senhoras e levava sempre para casa, sempre, sempre, porque... eu não tenho qualquer problema a dizer isto, porque foi realidade. Eu corri todas as ruas daqui da Foz, a pedir. (Amália1, 6-7)

Sendo tão duras e difíceis as condições sociais de existência de tantas destas famílias, quantas vezes com poucas ou nenhumas perspectivas de as poderem alterar, para muitas delas tornava-se central a afirmação permanente, em tão difíceis circunstâncias, da sua própria dignidade. Os valores do trabalho, da seriedade e da honestidade, o “ser pobre mas honrado”, que a propaganda oficial, como já vimos, reproduzia por diversas formas, aparecem, assim, correntemente como valores essenciais, assumidos pela mãe e pelo pai e transmitidos aos filhos, de forma clara, nas mais pequenas e diversas circunstâncias. Estes valores, ao mesmo tempo que salientavam e reforçavam a dignidade dos trabalhadores, não deixavam também de reflectir uma atitude de resignação face às desigualdades e à impossibilidade prática de melhorar as suas condições de vida que as diversas instituições do regime e a igreja activamente estimulavam.

levei uma tareia por trazer o bacalhau

Até há um episódio muito engraçado [...] porque eu vivia mesmo muito mal, era mesmo pobre e uma senhora amiga disse-me a certa altura – [...] amanhã traz uma saia de roda; e eu levei uma saia de roda e ela botou-me 4 bacalhaus na saia, para passar os fiscais, e

depois cheguei a casa e levei uma tareia por trazer o bacalhau, porque o meu pai era um bocado malandro mas não admitia essas coisas. (Amália2, 2)

nós somos pobres mas somos muito sérios

fiz o exame da 4ª ( …) e a seguir a minha mãe tratou de pedir a ver se arranjava trabalho para mim. Porque depois havia o conceito de que a ociosidade era a mãe de todos os vícios [...] fiz aquilo tudo (o trabalho que a costureira, para onde tinha ido trabalhar, tinha deixado para fazer, quando foi de férias), e quando ela veio, curiosamente, em vez de me pagar 25 tostões por cada uma das semanas, portanto eram três semanas, dava 7 e quinhentos, ela pagou-me o dobro, pagou-me 15 escudos. E quando eu cheguei a casa e dei à minha mãe os 15 escudos, a minha mãe olhou para mim, ficou aflita e disse – ó filha tu não pegaste pois não? Eu disse, ó mãe não, foi a Dª Otelinda que deu. Ó filha mas está aqui dinheiro a mais. Ó mãe mas foi ela que deu. Mas tu não pegaste? Não mãe. Então está bem. Eu nem sei se ela alguma vez perguntou à Dª Otelinda. Mas aquela preocupação, aquela necessidade que a minha mãe tinha de dizer nós somos pobres mas somos muito sérios, era uma coisa incrível. Acho que ela passou isso para nós todos (Palmira,8-9)

Numa época em que o discurso e a propaganda oficial do regime remetia as mulheres para o espaço doméstico, atribuindo-lhes os papéis de “donas de casa”, “esposas”, “mães” e “fadas do lar”, a realidade é que eram muitas as mulheres a trabalhar e com actividades profissionais muito diversas, sentindo diariamente a necessidade de conciliar os dois papéis. Mas, foram também muitas as que, à medida que os filhos iam nascendo, foram sendo obrigadas a “confinar-se” ao espaço doméstico (o que, neste contexto, não era obrigatoriamente assumido como negativo), ou ao exercício de outras profissões (como padeiras), que lhes permitia estar em casa a maior parte do dia.Não sendo possível a sobrevivência apenas com o salário do pai, em muitos casos eram também as filhas mais velhas, mas ainda crianças, que ficavam a tomar conta dos irmãos mais novos e assumiam a “lida da casa”, permitindo que a mãe mantivesse o emprego, ou eram as próprias crianças que iam trabalhar fora.

O assumir pelas raparigas das tarefas domésticas criava igualmente as condições para a sua construção enquanto futuras mães e “donas de casa”. Trabalhando fora ou mantendo-se em casa, era à mulher, em geral, que cabia a maior fatia de responsabilidade no acompanhamento e educação dos filhos e na difícil gestão da vida e de uma economia familiar reduzida à subsistência. Não será, por isso, de admirar que a figura da mãe tenda a ser apresentada como um exemplo de coragem, de mulher lutadora, como uma referência que marcará todo o percurso de vida dos filhos e das filhas, que cedo se formaram e constituíram como crianças/ operárias.

a minha mãe ia trabalhar […] de manhã muito cedo […] e eu ficava com os outros Naquela altura, o meu pai foi sempre muito doente dos pulmões e a minha mãe depois deixou de ser empregada doméstica e foi para padeira. O meu pai […] havia alturas em que não trabalhava. E o que a minha mãe ganhava não dava para nós todos. [...] Depois a minha mãe ia trabalhar para padeira, de manhã muito cedo, porque antigamente era às cinco da manhã, seis, e eu ficava com os outros. Aliás até tenho uma queimadura aqui no peito, porque a minha mãe deixava o leite em cima do candeeiro a petróleo e eles, depois na brincadeira, viraram e eu queimei-me. Isto com seis anos. (Amália 1, 2-3) A minha mãe era uma pessoa muito reservada, uma pessoa muito calada, mas sempre uma lutadora (Amália1, 6)

A minha mãe com 44 anos ficou viúva e a partir daí […] passou a ser padeira

O meu pai era um trabalhador da construção civil, segundo aquilo que dizem, um bom profissional do ponto de vista do estuque, do trabalho de interiores de estuque, desde aqueles floreados todos nos tectos, mas também do ponto de vista da construção civil; ele era mestre de construção civil, era assim de facto um bom profissional. A minha mãe, do ponto de vista profissional, ela fez montes de coisas. Enquanto não teve filhos, porque eles estiveram sete anos sem ter filhos, a minha mãe trabalhou numa fábrica de calçado, […]. Depois esteve numa fábrica que fazia rebuçados, [...] as recordações que eu tenho é que a minha mãe dizia que ia a pé todos os dias para a fábrica e normalmente era para ali para Campanhã. Nós vivíamos em S. Mamede Infesta. Depois de começar a ter filhos, como os filhos foram nascendo com um intervalo de dois anos, mais ou menos, [...] a determinada altura ela teve mesmo que ficar em casa, para olhar por nós todos, e portanto quando se vê com seis filhos, com o marido já muito doente, muito debilitado […], para alimentar seis filhos, com o meu pai a trabalhar sozinho, estás a imaginar que as coisas não deviam ser fáceis, não é. [...] A minha mãe com 44 anos ficou viúva e a partir daí não teve solução, com esses filhos todos passou a ser vendedeira, vendedeira de pão, as chamadas padeiras, que lhe ocupava uma parte da manhã, levantava-se muito cedo, cinco da manhã, e por volta das dez, dez e meia da manhã já estava em casa, portanto dispunha do resto do dia para tratar daquela tropa toda (Palmira, 1-2)

Mas a família não se restringia à família nuclear; eram também os avós e os tios que apareciam como importantes apoios em períodos de maiores dificuldades, como pontes na passagem do campo para a cidade, como ajuda para a obtenção de emprego ou para encontrar melhores empregos.

a minha mãe tinha uma tia […] ia-nos levar a casa o que ela andava a pedir

a minha mãe tinha uma tia, […] que não tinha uma perna, tinha uma perna de pau, e andava a pedir nos mercados do Bolhão, do Bom Sucesso e isso. E depois, escondida do meu pai, ia-nos levar a casa o que ela andava a pedir. (Amália 1, 4)

solicitei a um tio meu que trabalhava na CP

eu queria era sair do Pinhão, não sabia para onde ia, mas punha-se um problema ao meu pai, é que eu tinha 14, 15 anos, [...] e depois o meu pai tinha uma visão muito fechada,

porque vir para a grande cidade era a podridão, o vício, os tipos que imediatamente eram desencaminhados [...] não punha em cima da mesa deixar-me ir sozinho para Vila Real ou para o Porto. Entretanto solicitei a um tio meu que trabalhava na CP, na altura, e ele disse – vais para minha casa, se for preciso vais para minha casa, e então o meu pai disse logo: ele vai com uma condição, vai para trabalhar e para estudar, já que não o posso pôr a estudar durante o dia. O meu tio matriculou-me aqui na escola Infante D. Henrique (Freitas, 6-7)

Foi também no interior de algumas famílias que, ainda crianças ou jovens, alguns se foram apercebendo de problemas, dificuldades e medos que atravessavam a sociedade portuguesa, detectados a partir de situações ocorridas e vivenciadas por familiares ou vizinhos, de conversas que foram ouvindo, de acontecimentos que presenciaram e que não tiveram então condições para entender na sua complexidade. Mais tarde, noutros momentos e circunstâncias, essas recordações acabaram por reaparecer, permitindo então a atribuição de sentidos e significados e confirmando António Nóvoa (in Canário, 1999:5) quando afirma que a formação “acontece mais

vezes quando não esperamos do que quando a programamos”.

Foi despedido por causa dessa greve

o meu tio, irmão da minha mãe, trabalhador metalúrgico, caldeireiro, nos estaleiros da CUF, da Rocha do Conde de Óbidos, tinha participado naquelas greves que estão na história do movimento operário de Lisboa. Foi despedido por causa dessa greve, e eu vivi esses dramas, era ainda miúdito, e os seus reflexos na família. Não tinha idade para pedir explicações sobre o que se passava, mas o ambiente de tensão e o melindre da situação familiar ficou-me na memória, até hoje. (Ranita2, 8)

conversas reservadas do meu pai

havia aquelas conversas reservadas do meu pai, ele era muito reservado, porque ele do ponto de vista político, ele sabia que havia a situação, que ele não gostava, sabia que havia a oposição, mas ele diante dos filhos, nomeadamente diante de mim, essas conversas eram reservadas, ele mandava-me para o quarto e só depois é que falava com a minha mãe; mas eu notava que ele era, tenho hoje a ideia, não é, que era um homem da oposição; eu recordo-me quando foi da campanha do Humberto Delgado em 58, suponho, que também chegou lá e na altura nós achávamos as ruas pintadas, eram as pichagens, apareciam lá nos paralelos e o meu pai dizia-me – cuidado não te metas nisso que anda aí uma polícia de fora e tal, tu foge disso e tal, mas sabia que havia lá gente na terra e sei que o meu pai votou no Humberto Delgado, ele pelo menos confidenciou-me isso. Porquê? porque um dos filhos do patrão era um homem da liberal e também apoiava o Delgado e como ele lidava mais de perto com o meu pai influenciou o meu pai a votar no Delgado (Freitas, 3-4)