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O PERÍODO DO FASCISMO

4. Redes de sociabilidade

Para além da família, eram muito diversas as redes de sociabilidade que se estabeleciam, que além de constituírem, em certas circunstâncias, um apoio na resolução de múltiplos problemas, permitiam também o conhecimento e o confronto com outras realidades.

As condições de habitação, designadamente nos “bairros de lata”, nas “ilhas”, e nos bairros, com uma grande concentração de famílias com vidas semelhantes, e suportando as mesmas condições de miséria, em espaços contíguos, muito exíguos, e sem o mínimo (ou com muito poucas) condições, se deram origem a grandes discussões e conflitos, não deixaram de ser, em muitas circunstâncias, espaços fundamentais de socialização, de partilha e de solidariedade, espaços de formação e de configuração de identidades. Impedindo estas habitações qualquer tipo de privacidade, sabendo todos o que todos faziam e diziam, vivendo praticamente “em cima uns dos outros”, as atitudes e comportamentos tendiam a assemelhar-se, repetindo-se as expectativas (ou a falta delas), produzindo-se, integrando-se e enraizando-se valores, representações e regras de conduta.

vivíamos quase uns em cima dos outros, mas muito amigos

No bairro (de Xangai) éramos todos amigos. Havia muita solidariedade uns com os outros, éramos muito amigos uns dos outros. Tenho alguma saudade em relação a isso. Hoje não há essa amizade. Nós vivíamos quase uns em cima dos outros, mas muito amigos, muito solidários. Havia lá uma mercearia que a senhora era amicíssima dos pobres. Quando não vinha o dinheiro da baixa ela esperava. Mas a minha mãe nunca ia pedir, ia sempre eu. (Amália1, 8-9)

"anda, anda"

tinha muitas raparigas lá no bairro, que trabalhavam e depois "anda, anda" e eu fui trabalhar. (Amália1, 10)

um espírito de solidariedade muito grande

(na ilha, as pessoas) relacionam-se bem.[…]. existe um espírito de solidariedade muito grande entre as pessoas. Se a pessoa tem um problema as outras ajudam e vice-versa. De facto há uma reciprocidade, entreajuda quando as pessoas têm (problemas). Naturalmente há, às vezes, aquela incompreensão, há aquela atitude menos correcta em que as pessoas se podem chatear e tal, mas que se ultrapassa facilmente. (Barra 1, 22)

Mas a rede de relações alargava-se a outros sectores. A vida destas famílias operárias decorria lado a lado com outras classes sociais e com outras condições sociais de existência, com as quais se cruzavam e que foram conhecendo como uma realidade bem diferente da sua, percepcionando, sem então questionar, enormes e

gritantes desigualdades sociais. Nesta rede de relações participavam crianças de outras classes sociais que frequentavam as mesmas escolas, que levavam lanche (que por vezes até partilhavam) e não tinham, no horizonte imediato, a entrada no mundo do trabalho; as “senhoras”, em cujas casas se entrava para realizar tarefas domésticas em troca de um bocado de pão para matar a fome, visualizando desse modo outras condições e modos de vida. Como diz Filomena Mónica (1978:75)

“às vezes, as classes dominantes também encaravam o pobre, pelo menos os poucos a quem prestavam assistência directa, com uma benevolência paternalista. Algumas casas abastadas mantinham até os seus próprios pobres, a quem de quando em quando ofereciam um prato de sopa, um naco de pão duro ou roupas sem serventia”.

eles levavam a sandes de queijo com marmelada

havia na escola, como em todas, pessoas com mais poder económico, com menos poder económico, e então eu andava na escola e havia lá dois indivíduos que eram os ditos capitalistas de Rio Mau; eles levavam a sandes de queijo com marmelada, com manteiga e eu... Eles eram muito meus amigos e eu dizia – ó David, tens que me dar, eu não tenho para comer. Eu dizia-lhe isso. Ele era meu amigo, ainda hoje somos grandes amigos, ele e o António. Um é engenheiro e o outro é bancário e eu recordo-me disso, que até a fruta – romãs que eles tinham, porque viviam muito bem, não é? E então eles comigo, diziam, pega lá, tens aqui, não sei quê. Eu lembro-me desse pormenor que acho que foi uma coisa que me marcou bastante. Não é que eu passasse fome em minha casa, não é verdade isso, também não é verdade, mas eles tinham uma vida bem melhor que a minha e então fomos grandes amigos e hoje somos grandes amigos (Albano, 2-3).

Nestas redes de sociabilidade podiam também participar famílias que viviam próximo e em cujas casas, em circunstâncias muito específicas, alguns, muito poucos, podiam entrar para brincar com os filhos e assim ter acesso a livros, brinquedos e a um mundo de coisas até então inimagináveis. Estas vivências traduziram-se para muitas crianças em experiências muito contraditórias, cujo significado só se lhes tornará claro uns anos mais tarde. Por um lado, a possibilidade de contactarem directamente com realidades diferentes, com outras condições de vida e de terem acesso a um conjunto de bens inacessíveis de outra forma, teve uma enorme importância no seu processo de formação e no alargamento dos seus horizontes, estimulando o desenvolvimento de novos gostos, interesses e capacidades. Por outro lado, as relações estabelecidas tratavam de deixar bem claro, e de acentuar, o lugar de cada um na hierarquia social. Os filhos dos pobres não deixavam de ser os filhos dos pobres, que se traziam a casa, que brincavam com os filhos, mas que não podiam

aspirar a um estatuto igual aos filhos da burguesia. E, se no momento, este tipo de relações era assumido também como algo natural, não deixava de ser notado, sentido e marcante, contribuindo para se ir formando, ainda que de uma forma muito pouco consciente, uma certa noção de injustiça que, mais tarde, ganhará uma outra dimensão.

companheiros de brincadeiras dos meninos da quinta

(na zona onde vivia havia várias quintas e) Um dos filhos dos donos (de uma delas) casou e ficou lá a viver e esse casal acabou por ter dois filhos, um rapaz e uma rapariga; exactamente da minha idade, o rapaz, e a rapariga da idade do meu irmão mais novo. Quer dizer que nós éramos um bocado os companheiros de brincadeiras dos meninos da quinta. Mas porquê? Porque éramos nós e não outros? Porque os pais da minha mãe tinham sido já empregados daquela quinta; o meu avô e a minha avó tratavam da terra lá; tanto que a minha mãe era conhecida pela nina da quinta [...] Tradicionalmente havia uma ligação com aquela família, e eu acabei por passar uma parte significativa da minha infância, aí até aos 8, 9 anos e depois até mais tarde, metida sempre naquela quinta, a conviver com os meninos, a ir para a praia com eles, [...] e depois vínhamos, tomávamos banho lá, comíamos lá, dormíamos lá, só vinha a casa quando …, era ali, porta com porta. (Palmira, 4-6)

conhecia um lado onde existia muita necessidade […] e assistia ao fausto

Conclusão eu conhecia um lado que era um lado onde existia muita necessidade, que era o facto de a minha mãe lutar para ter a casa mais ou menos organizada, para dar de comer aos filhos, para muitas vezes comer ela apenas o restinho da sopa que ficava na tigela, [...] e assistia por outro lado ao fausto, que era o facto de estar lá naquela casa e se me apetecesse comer o que quer que fosse ter lá à disposição. Uma das imagens que eu tenho também é que, a primeira vez que me lembro de estar na quinta, e chegar a hora do lanche, uma das coisas que me cheirava sempre muito bem era o café com leite que eles faziam, café com leite, e era o pão com marmelada, queijo e marmelada, o pão com queijo e marmelada, que eu achava que aquilo devia ser assim uma coisa, por aquele cheirinho devia ser assim uma coisa muito boa. E a primeira vez que eu estou na quinta e chega a hora do lanche, “meninos vamos todos lanchar”, chamavam lá as criadas, que eles tinham uma série de criadas; e então comíamos na cozinha todos, os quatro, os miúdos, café com leite e pão com marmelada. Sabes que eu estava tão envergonhada, eu tinha tanta vontade de comer aquilo, mas estava tão envergonhada, que respondi, eu não quero porque eu não gosto; nunca mais me esqueço disto. E a Maria do Carmo, que era a criada, que era a copeira, disse ó Mirinha, tu não gostas, mas tu já comeste? E eu, a minha cara devia claramente dizer tudo, que ela percebeu claramente que eu estava a dizer aquilo porque estava cheia de vergonha, e lá insistiu, com muito carinho, de facto era um amor de pessoa, lá insistiu, insistiu e eu comi e foi o maior manjar da minha vida. Quer dizer, isto é para reforçar, vivi de facto as duas coisas. (ibidem)

não dormia no quarto da Leninha, dormia no quarto das criadas

Claro que isto não durou sempre, porque eu era, apesar de tudo, a vizinha que era filha da Laidinha, padeira, ou da Nina da quinta, como eles lhe chamavam, mas era só isso. Que brincava lá e que não sei quê, e que quando o meu irmão começou a crescer e a fazer asneiras […] o Jorginho deixou de poder ir brincar para dentro da quinta. Só estava eu porque, pelos vistos, devia ser muito bem comportadinha. […]. Mas continuava a ser a menina pobre lá da zona; quando eu dormia não dormia no quarto da Leninha, que era a menina, dormia no quarto das criadas, lá no topo, por acaso até era muito bonito, diga-se de passagem, agora à distância, era até muito bonito e eu tinha o privilégio lá num dos quartos da criada, não era janelas, era clarabóias que tinha, subir acima de uma cadeira, meter a cabeça de fora da clarabóia e ver a minha casa; ficava toda entusiasmada por ver. (ibidem)

Mas lá aprendi o gosto por ler

Mas lá aprendi o gosto por ler, que eles tinham um quarto de brinquedos incrível e então tinham livros com as mais diversas histórias; eu sabia as histórias todas de cor; consoante fui aprendendo a ler na escola devorava os livros todos lá; aprendi o gosto por ler, sei lá, pelas mais diversas coisas, tinha acesso a brinquedos, como os legos, que não tinha em casa, como é evidente, quer dizer que, para aquela época, para as meninas pobres, eu era uma menina que já tinha muitos conhecimentos. Conclusão, eu acho que quando fui para a escola acabei por não ter assim grandes dificuldades. (ibidem)