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O PERÍODO DO FASCISMO

2. Condições de vida

Se a vida no campo não se apresentava como uma perspectiva satisfatória de futuro, também a vida nas cidades era marcada por fortes privações, com múltiplas e graves consequências. Milhares e milhares de famílias conviviam com situações de fome, miséria, doenças e mortes prematuras. Embora sejam escassos os estudos sobre as condições de vida da população portuguesa neste período, dados existentes para a década de 70, já com Marcelo Caetano no governo, indicam que 34,5% das famílias viviam em condições de pobreza (Bruto da Costa, cit. Rodrigues, 1996a:743). No mesmo sentido, um estudo promovido pela OIT, em 1973, indicava que “31,4% das

famílias recebiam rendimentos inferiores ao mínimo necessário [...] para satisfazer as necessidades básicas” (ibidem). Dois dos indicadores que mais fortemente expressam

esta situação são mesmo a elevada percentagem de doenças e de mortes prematuras que marcavam então o quotidiano de muitas famílias, no campo e na cidade, e bem presentes nas histórias familiares dos nossos interlocutores. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística e da Direcção Geral de Saúde20, em 1960, a taxa de mortalidade infantil21 era de 77,5; para se perceber bem a dimensão deste problema, importará acrescentar que, em 2007, essa taxa tinha diminuído para 3,4. A grande escassez de rendimentos, resultante de níveis remuneratórios muito baixos, a falta de cuidados de saúde, a proliferação de doenças, designadamente infecto-contagiosas

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www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/E7A6BABD-57F6-41B7-AAB5-, consultado em 14 de Março de 2008

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(como a tuberculose, por exemplo), as más condições de habitabilidade e de higiene, os ritmos e as deficientes condições de trabalho, uma alimentação altamente deficitária, a fome e a miséria ajudam a explicar estes indicadores.

Aliás, do ponto de vista alimentar, a situação de muitas famílias ainda se agravou mais com a vinda para a cidade, quando deixaram de ter ao seu alcance a “agricultura de recurso” de que anteriormente se socorriam, e que alguns tentaram manter nos “bairros de lata” ou “ilhas”22 onde muitos se concentraram. Apesar da maioria dos indicadores relativos às condições de vida apresentar melhorias significativas a partir das décadas de 50 e 60, sobretudo nas áreas urbanas, a diferença relativa a outros países europeus ainda se mantinha significativa. “Em 1973 o consumo per capita em

Portugal representava apenas 69% do de Espanha, 63% do da Grécia, 50% do da Irlanda, 42% do da Itália e cerca de 26% do consumo da Alemanha e França”.

(Rodrigues, 1996b:669)

o que me levou a ser o que sou hoje foi a infância que eu tive

Olha, o que me levou a ser o que sou hoje, de facto, foi a infância que eu tive. Foi uma infância muito má, muito pobre, vivi sempre muito mal, a andar sempre como os ciganos, de saltimbanco, a viver numa casa, a viver noutra, até que acabei por ir viver para um barraco, que era em Xangai; chamava-se Xangai, que hoje é o parque da Cidade. Fui viver para lá e por incrível que pareça lá a vida começou a sorrir melhor, talvez por nós começarmos a crescer, porque a minha mãe teve 13 filhos, 10 raparigas e 3 rapazes, mas os 7 que morreram não chegaram aos 2 anos, acabavam por morrer. [...] E, pronto, levei uma infância de não ter brincadeiras; andava na escola primária e ia lavar a louça às senhoras para levar o resto das comidas para casa; comecei muito cedo a andar a acarretar água para as senhoras e a fazer esse tipo de trabalho. E penso que foi por isso tudo que fiquei uma pessoa um bocado revoltada, revoltada com tudo [...] E assim se começou. Aos 10 anos fui trabalhar. Andava na escola primária de manhã e de tarde ia trabalhar para as conservas. (Amália 2, 1-2)

quem nasceu depois […] não lhes passa pela cabeça

quem nasceu depois e começou a ter os yogurtes, e depois foi tendo o queijinho, e foi tendo a manteiga, e foi tendo o leitinho todo, e os pais ainda a insistir para tomar o leite e mais não sei quê, não se apercebe, não lhes passa pela cabeça, que houve crianças que só

22 As ilhas surgem no Porto no século XIX, como resposta às necessidades de alojamento de milhares de trabalhadores

migrantes, vindos do campo, em consequência do processo de industrialização que então se desenvolvia. “Implantadas nas traseiras das habitações da classe média [...] em fileiras de pequenas casas (uma dezena ou pouco mais), em geral com um único piso, dispostas perpendicularmente à rua, ao longo de lotes estreitos, [...]às quais se acedia através de um estreito corredor. À exiguidade do espaço acrescia ainda a falta de infra-estruturas sanitárias no interior dos alojamentos que apenas dispunham, no exterior, de retretes e balneários colectivos […]. Em 1832 já existiam cerca de 200 ilhas com aproximadamente oito mil habitantes. [...] No final do século XIX perto de 30% da população da cidade vivia em ilhas e em 1939 existiam cerca de 14 mil casas em cerca de mil e duzentas ilhas” (Pimenta, M.; Ferreira; Ferreira, 2001)

Em 2000, segundo um estudo promovido pela Câmara Municipal do Porto, “existiam ainda na cidade cerca de 5 900 casas em ilhas, 88% das quais ocupadas, alojando cerca de 13 500 pessoas”. Foram também identificados 2 771 fogos, 89% dos quais habitados, englobando mais de 6500 pessoas, em tipologias consideradas ilhas atípicas. (Pimenta, M. et all; Ferreira; Ferreira; Faria; Pimentel, 2001.)

tomavam cevada, que era aquilo que era mais barato, água fervida com açúcar, que era também para alimentar, e umas sopitas de pão naquela cevada, para encher um bocado, e depois, claro que notava-se no desenvolvimento das crianças; hoje a gente olha para as crianças, vai a uma escola e vê crianças bonitas. Mas se fosse a uma escola há quarenta anos atrás, via miúdos com os cabelos em pé, todos russitos, ali assim cheios de ranho e não sei quê; aquilo tinha a ver com as más condições que tinham em casa; não havia casas de banho, as retretes eram feitas nos quintais; tomavam banho, os que tomavam, uma vez por semana, ao domingo; não havia água quente [...] não havia qualidade de vida, não tem comparação; a gente agora está mal, mas não tem comparação com aquilo que as pessoas viveram, a não ser aqueles que já eram filhos de famílias, já mais abastadas, não quer dizer que fossem muito ricas mas que já tinham algumas condições, que a grande maioria do povo não tinha, a grande maioria do povo não tinha nada disso. (Mª Emília Reis, 82-83)

a tuberculose, que era a doença da moda na altura

os meus pais na altura moravam em Ermesinde, estavam já com uma doença muito avançada que era a tuberculose, que era a doença da moda na altura [...]Os dois.[…]. Na altura esse tipo de doença era tratável, mas o que era preciso era uma fortuna, não é? Eram cerca de 20 contos na altura, isto há 51 anos, porque passado 6 meses de eu ter nascido, o meu pai morreu, mais meio ano a seguir morreu a minha mãe. [...] eles tinham 21 anos... 20, 21, assim sensivelmente. Eles casaram com 18, 19 anos, relativamente cedo, não é? (Barra, 1-2)

A morte prematura de muitos pais levava também ao internamento de um número elevado de crianças em instituições, muitas das quais em condições longe de serem as ideais, dada a exiguidade de recursos e as carências de toda a ordem com que se confrontavam. Algumas das crianças que acabavam por sair e ser entregues a outros familiares (num processo que nem sempre seria fácil) continuavam a ser seguidas pelo Tribunal de Menores com a realização de visitas periódicas e através de uma caderneta que as deveria acompanhar e ir sendo preenchida na escola, pelos professores e, posteriormente, no trabalho. Não se traduzindo este acompanhamento em qualquer tipo de apoio objectivo, parece traduzir mais a preocupação do regime de controlo social das chamadas “classes perigosas” (Dubar, 2006:39), tendo sido sentido por alguns como um processo permanente de fiscalização, gerador de um profundo mal estar.

fui internado num hospício

eu com um ano de idade já não tinha nem pai nem mãe e antes disso mesmo eu fui internado num hospício, [...] em que fui para ali porque a minha mãe tinha os seus problemas de tuberculose e o meu pai também [...] Durante todo esse tempo, até aos 3 anos, estive ali internado e a minha avó materna, de quando em vez, ia-me visitar. E verificava que eu estar ali internado naquele hospício estava era de facto também, se

calhar, a ir pelo mesmo caminho dos meus pais, porque a situação era muito complicada, era fome; (Barra 2, 1-2)

eu tinha o cabelo que parecia uma vassoura de piaçaba

ela dizia que eu tinha o cabelo que parecia uma vassoura de piaçaba, verde e amarelo e não sei quê e então tentou tirar-me de lá [...] e é-lhe exigido que ela fornecesse elementos de que tinha meios suficientes para o meu sustento. Ora eu estava a passar fome, ora eu estava a passar mal, e ainda se exigia isso. No entanto ela conseguiu tirar-me de lá, através de um processo do Tribunal de Menores, na altura chamava-se a tutoria, em que, trimestralmente, vinha lá um sujeito, um agente qualquer, verificar in loco se eu estava ou não a ser bem tratado. [...] (ibidem)

tenho que ter uma caderneta do meu comportamento

depois eu vou para a escola, tenho que ter uma caderneta do meu comportamento, eu até era bastante traquina, de vez em quando lá vinham problemas para casa, mas pronto; e eu, quando começo a acordar na minha consciência, começo a ver que isto de facto não tem jeito nenhum; isto era de facto um organismo da máquina fascista, mais tarde, quer-se dizer, eu começo a acordar, era um organismo da máquina fascista que queria ter sempre sobre si o controlo, porque […] acha que o indivíduo que teve sempre dificuldades poderá ser uma pessoa muito perigosa. E eu começo a entender isto assim, mal ou bem, é esta a minha apreciação e a minha análise em relação a este tipo de coisas. [...] depois houve lá uns processos na escola e depois quando eu saio da escola eles querem continuar com a caderneta para o patrão. Aí estoirou. […] eles queriam isso e a minha avó […] também se revoltou, também disse – mas o que é isso, vai trabalhar e o patrão tem que saber alguma coisa? O que é verdade é que terminou, terminou. (ibidem)

Ocupando a família um lugar de grande destaque na ideologia e no discurso do regime, apontada por este como o “esteio” da sociedade, família essa assente no “matrimónio”, enquanto “sacramento que une o homem e a mulher indissoluvelmente,

e lhes dá a graça de conviverem santamente e de educarem cristãmente os filhos” (in O Livro da Segunda Classe, 1958), e nos valores tradicionais, a verdade é que, num

contexto de enormes carências e dificuldades, o casamento era um “luxo” que não estava ao alcance de todos, podendo também ser negado pelos padres das paróquias. A decisão de viver juntos, sem passar pelo casamento, era, para diversas pessoas, a opção que restava, o que dificilmente significava, naquelas condições, e com o grande peso e influência que a igreja tinha, uma escolha voluntária.

a gente tinha lá dinheiro para casar

quando a minha avó faleceu, aos 54 anos, a minha mãe só tinha um irmão, era o meu tio Xico, que entretanto já tinha tratado também da vida dele, portanto já era casado; a minha mãe na altura tinha 20 anos e ficou praticamente sozinha, o meu pai também estava praticamente sozinho [...] Decidiram juntar os trapinhos, eles nunca chegaram a casar, diz ele – a gente tinha lá dinheiro para casar, juntamo-nos. [...] (Palmira, 6-7)

ficou com uma mágoa muito grande, nunca mais gostou de padres

quando o meu pai estava para falecer, ela contava isto muitas vezes, o meu pai decidiu que queria casar com ela, e mandaram chamar o padre, o padre da freguesia que era um reaccionário, um sacana do arco da velha, eu só tomo consciência disto muito mais tarde; ele foi lá e tu sabes que ele não casou e disse: não sei se o seu marido é católico; tinha baptizado os filhos todos, tinha feito a comunhão aos filhos todos, não sei se o seu marido é católico, e não casou a minha mãe e o meu pai. A minha mãe ficou com uma mágoa muito grande, nunca mais gostou de padres, nunca mais, tornou-se uma mulher com uma cabeça, vou-te dizer, com uma cabeça, que eu ainda hoje acho que a minha mãe era muito avançada para a época (Palmira, 11)

No quadro de fortes privações em que vivia uma parte significativa da população, os fenómenos de pobreza tendiam a ser naturalizados, fomentando e propagando o regime uma certa “idealização da pobreza”, com a exaltação de valores associados a uma determinada ruralidade e a uma vida simples e despretensiosa. Assim, ao mesmo tempo que se procurava mascarar a miséria existente e ocultar a escassez de recursos económicos ao dispor da maioria da população, justificava-se a ausência de políticas económicas e sociais orientadas para a melhoria dessas condições de vida. Como diz Carlos Farinha Rodrigues (1996a: 742)

“O fenómeno da pobreza era encarado pela generalidade dos decisores políticos como uma realidade inerente a um país ‘essencialmente pobre’, onde a própria pobreza era de alguma forma valorizada como sinónimo da preservação dos valores caros ao regime, como a família e a harmonia social”.

Neste processo de naturalização da pobreza e das desigualdades e de inculcação no conjunto da população não só da sua inevitabilidade mas até das suas “vantagens”, visando a acomodação das pessoas às grandes dificuldades com que diariamente se confrontavam, aceitando-as passivamente, não pondo em causa os fundamentos do regime, a igreja, a escola e os meios de comunicação assumiram um importante papel. A título de exemplo bastará lembrar excertos de livros escolares, frases obrigatoriamente afixadas nas escolas, quadras e cantigas transmitidas pela rádio, que muito contribuíram para que uma certa “cultura da pobreza” se fosse instalando na sociedade, passando mesmo a constituir um importante valor assumido em muitas famílias dos meios populares e por estas transmitido aos seus filhos.

“Bom provérbio, bom ditado / Aquele de Salomão / Antes pobre, mas honrado / Do que rico, mas ladrão” (Decreto nº 21.014, de 21 de Março de 1932, que determina a

obrigatoriedade de inscrição de determinadas frases nos livros de leitura das escolas)

“Tudo podem ter os nobres / Ou os ricos algum dia / Mas quase sempre o lar dos pobres / Tem muito mais alegria” (cit in Cortesão, L. 1988:93)

houve uma certa cultura de pobreza

depois a tradição também, eu acho que teve muita influência, foi que nós tivemos durante muitos anos, todo o tempo do fascismo, uma cultura e uma forma de estar na vida que era assim, a pobreza não era nenhum mal era um bem, a pobreza, ser pobre, até se dizia só é pobre quem é de espírito, senão não era pobre, e houve uma certa cultura de pobreza. As pessoas tinham uma certa cultura de pobreza. (Mª Emília Reis, 83-84)