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A escola como espaço de formação continuada e constituição profissional

Falar da constituição e da formação profissional de professores implica considerar que elas se configuram em processos iniciais e continuados que precisam estar imbricados. Consideramos que a formação continuada é um processo pelo qual os sujeitos estabelecem relações entre si e com o conhecimento na vida co- tidiana. Se assumirmos o conhecimento como um fato indiscu- tível, que tem como características ser prático, social e histórico, conforme nos aponta Lefebvre (1995), a formação continuada articulada à formação inicial pode ganhar status político, apon- tando, para as agências formadoras e para a gestão dos sistemas de ensino, as demandas de conhecimento e de atuação profis- sional que poderiam se configurar em princípios para, respec- tivamente, a organização dos currículos nos cursos de forma- ção inicial e a elaboração de políticas de formação continuada. Nesse debate, parece pertinente destacar nossa defesa de que a

formação inicial é primordial na constituição profissional, e a formação continuada deve vincular-se a ela e se configurar na concretização do fazer pedagógico. Nesse sentido, não se trata de considerar a formação continuada como uma complementa- ção da formação inicial, que responda às suas “lacunas”, menos ainda como uma ação que venha supri-la (PANTALEÃO, 2009). Em nossa compreensão:

[…] a formação continuada deve responder às demandas emergidas nas circunstâncias sociais produzidas pelos su- jeitos e inerentes ao trabalho educativo escolar. De nossa perspectiva, uma formação inicial aligeirada, que atende à perspectiva de mercado educativo é um risco, pois, tende a produzir profissionais com posições frágeis, aleatórias e espontâneas. Profissionais com dificuldade em recor- rer aos referenciais que fundamentam a natureza de sua profissão e à especificidade do fazer pedagógico escolar, princípios primordiais a serem trabalhados na formação inicial (PANTALEÃO, 2009, p. 45).

A escola vem sendo compreendida como lugar privilegiado de so- cialização de saberes. Local onde se ampliam as relações humanas, principalmente, por meio da apropriação de códigos linguísticos historicamente produzidos, que facilitam a comunicação entre os sujeitos e o acesso a novos conhecimentos. Com efeito, as formas de comunicação e as relações estabelecidas no contexto escolar criam marcas históricas na trajetória de cada sujeito.

Apesar de a escola ser compreendida dessa forma, isso não bas- ta para que os seus princípios sejam efetivados na prática. Faz- se necessário que “[…] os seus atores incorporem no dia-a-dia” (MEIRIEU, 2005, p. 30) tais princípios. A esse respeito, Meirieu alerta que a Escola não se institui, espontaneamente, em seu in- terior só pelo fato de, na sua fachada, estar escrita a palavra “es- cola”. O autor chama a atenção para o fato de que se tem perdido o estatuto de ser aluno, com obrigações relativamente bem defi- nidas. Em tempos passados, nas relações familiares, tal estatuto já era trabalhado; “[…] quando a criança chegava à escola, já era

‘um aluno’. Ou, pelo menos, já estava pronta para isso. Os papéis, de algum modo, eram definidos por antecipação” (p. 31). Entretanto, observamos que o que caracteriza a situação atu- al é a transformação de referências de algumas regras e modos de funcionamento da escola, tanto por parte de alguns alunos quanto por parte de alguns profissionais. Isso tem desencadea- do, em grande medida, tensões nas relações no contexto escolar, produzindo a necessidade de construção de novos modos de or- ganização e de funcionamento da escola. Afinal, esse processo de construção não acontece de forma natural e espontânea. São intervenções humanas que estão relacionadas com as circuns- tâncias produzidas pelas próprias pessoas na trajetória histórica das suas relações sociais (HELLER, 1992).

Assim, os desafios colocados ao gestor escolar delineiam-se em torno da necessidade de compreender a conjuntura político-so- cial na qual a escola está inserida, sem perder de vista a natureza e especificidade do trabalho escolar, ou seja, “[…] os princípios que a inspiram” (MEIRIEU, 2005, p. 30).

Estamos vivendo uma conjuntura de relações histórico-sociais da qual a escola não escapa. Heller (1999) destaca elementos so- bre os movimentos e o desenvolvimento da modernidade que produzem, em maior ou menor grau, dificuldades de compre- ensão e de adaptação dos seres humanos às suas referências na vida cotidiana. Vivemos em constantes conflitos e relações pa- radoxais. Além dos processos de produção de competitividade, individualização e de egoísmo, a mulher e o homem modernos:

[…] têm pouca clareza dos resultados de suas ações. Talvez estejam conscientes das suas responsabilidades diante das gerações futuras, mas apenas em termos abs- tratos […]. Isto é uma descoberta intrigante, pois a mo- dernidade é um arranjo social orientado para o futuro e não para o passado (HELLER, 1999, p. 21).

A autora ressalta que tal processo provocou um movimento de transformação da tradição, que se deu simultaneamente à trans- formação de alguns poderes morais tradicionais, por exemplo: a família, a sociedade civil e o Estado (nação). Dado o contexto his- tórico-social em que vivemos, não podemos saber, exatamente, até que ponto poderia existir um equilíbrio entre esses diferentes poderes morais e outros produzidos historicamente. Parece ser essa uma das grandes tensões e desafios da atualidade: ao mesmo tempo “levados” a complexas relações sociais e a processos de individualização, precisamos colocar tudo isso em suspensão e pensar na possibilidade de poderes morais que nos direcionem para práticas e relações mais coletivas.

Almejando essa coletividade, como podemos pensar em possibi- lidades para o trabalho escolar? Como os profissionais podem se implicar nos processos de escolarização de todos os alunos que vivenciam o cotidiano escolar? Como “enfrentar” as situações/ problemas decorrentes da transformação do “estatuto de ser alu- no”? Como compreender o “Outro” e desencadear ações educa- tivas/formativas “comuns” e que atendam às diferenças?

São questões que precisamos constantemente nos fazer, se qui- sermos pensar nos processos de formação continuada no con- texto escolar, principalmente considerando a necessidade de potencializar a escolarização de alunos com deficiência, trans- tornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdo- tação. As tensões decorrentes nesse e desse contexto têm evi- denciado a necessidade de promoção de processos instituintes de mobilização e organização de espaços e tempos de formação. Em verdade, a gestão desses processos precisa ser assumida pe- los profissionais que, historicamente, têm ocupado o lugar de pensar a escola na sua totalidade – diretor(a), pedagogo(a) e co- ordenador(a) de turno. Concebemos esses profissionais como mobilizadores políticos, responsáveis por desencadearem junto com os outros profissionais da escola, principalmente com os professores e professoras, tais processos de formação. Partimos

do princípio de que, ao mesmo tempo que promovem e mobili- zam processos de formação continuada dos outros profissionais da escola, estão implicados na sua própria formação, pois estar implicado “[…] consiste sempre em reconhecer simultaneamen- te que eu implico o outro e sou implicado pelo outro na situação interativa” (BARBIER, 2004, p. 101).

De nossa perspectiva, as relações que se constituem no interior da sala de aula não estão desvinculadas das que se estabelecem na escola – tampouco estas das questões sociopolíticas mais globais –, pois a gestão da aprendizagem e a gestão da escola estão imbricadas. Assim sendo, pensamos a escola como espaço- tempo de organização educativa, como lugar onde importantes decisões são tomadas e importantes escolhas são feitas sobre a formação do indivíduo na trajetória da sociedade. É importante pensar sobretudo a implicação dos sujeitos nessas decisões e es- colhas. Trabalhar a formação do “Outro”, a partir dessa concep- ção de escola, implica trabalhar a autoformação.

Partimos do pressuposto de que o processo de formação nas inter-relações em contexto proporciona aos sujeitos um “triplo diálogo” (ALARCÃO, 2004, p. 45-46), ou seja, “[…] um diálogo consigo próprio, um diálogo com os outros, incluindo os que an- tes de nós construíram conhecimentos que são referência, e o diálogo com a própria situação, situação que nos fala […]”. Por meio desses diálogos, é possível compreender os fatos e fenôme- nos com os quais estamos implicados nas tramas das relações institucionalizadas na vida cotidiana (MOYSÉS, 2001). Do mes- mo modo, podemos superar juízos provisórios cristalizados em preconceitos, transcendendo às relações da cotidianidade. Pos- sibilidade que se faz necessária, primordialmente, em se tratan- do do atendimento aos alunos considerados com necessidades educacionais especiais no contexto escolar.

Para tanto, precisamos, especialmente, dialogar não só com os diversos campos teórico-epistemológicos que nos ajudam a

compreender esse movimento em constante ebulição, mas tam- bém, e principalmente, com aqueles que atuam em contexto. Só assim poderemos, realmente, conhecer de onde partem os sabe- res e fazeres, suas reais condições de prática situada, suas refe- rências e concepções acerca de suas produções.

Devemos ter sempre em mente o fato de que a escola é um espa- ço constituído para produzir, com seus habitantes, a sistemati- zação das múltiplas formas culturais de saber, considerando-se, contudo, que esse espaço, apesar da sua indiscutível relevância, não é o único em que a cultura letrada está inserida.

Os estudos de Vilar (2003) vão ao encontro dessa perspecti- va, quando, ao investigar os saberes subjacentes às práticas pedagógicas de professores da rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte, o autor coloca em cena a necessidade da pes- quisa sobre a prática profissional como instância produtora de conhecimento tanto no cotidiano quanto na programação da formação docente.

Reafirmamos ainda o pensamento de Linhares (2002, p. 118), no sentido de que:

A busca de alternativas para a educação e, mais particu- larmente, para as instituições de ensino e de formação de professores nos levou a compreender o quanto de- pendemos de nossa capacidade de interlocução com os mais variados campos de conhecimentos para projetar os processos de aprendizagem e ensino escolar […].

Entendemos que, a partir desses movimentos, poderemos iniciar outra lógica de vida, em que o respeito e o reconhecimento à di- versidade humana nos sejam uma premissa, apesar de se reconhe- cer os desafios que essa perspectiva nos impõe, no que diz respeito a “[…] nos aproximar não só uns dos outros, mas nos apropriar- mos das múltiplas conexões com a vida, decifrando-as sem perder o sentido da solidariedade” (LINHARES, 1999, p. 11).

Considerações finais: reflexões potencializadoras da