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Localização política do que denominamos bilíngue: o caso da América Latina e do Brasil

Entender a formação dos professores de surdos requer compre- ender que a educação bilíngue, como noção, não está dada desde sempre. Trata-se de uma invenção do nosso tempo e por isso vale retomar uma discussão sobre a localização política e histó- rica que a embasou, a fim de compreender que a formação do grupo de expertises na área da educação de surdos se dá dentro de um contexto de movimentos políticos.

Mesmo tendo noção de que a perspectiva bilíngue (e não necessa- riamente “educação bilíngue”) da educação de surdos é datada por seus primeiros defensores no século XVII e, no Brasil, no século XIX, neste texto, o recorte escolhido é a forma como os movimen- tos do século XX (final da década de 1990) e XXI se fortaleceram de outro modo, constituindo uma perspectiva contemporânea.

Assim, vale retomar e esclarecer que a riqueza dos movimen- tos sociais dos surdos vai para além de uma tradução passiva de uma educação bilíngue como sendo o ensino de duas línguas na escola. Trazemos aqui, para sustentar essa ideia, a discussão que Skliar (1999) organiza em alguns textos e que denomino por ora de localização política do bilinguismo.

Na contemporaneidade, a educação bilíngue está atrelada à política nacional de inclusão. Nesse contexto, podemos per- ceber uma tendência para a redução da noção de inclusão à existência de intérpretes em escolas e às matrículas desen- freadas de surdos nesses espaços. Uma tendência que pode resultar em fechamento das instituições de surdos, sem uma discussão forte e propostas viáveis de uma educação bilíngue numa perspectiva da política de respeito à diferença surda e à sua história.

Valoriza-se fortemente o discurso que desqualifica esses movi- mentos sem uma crítica radical. Tomar aqui a noção de crítica ra- dical não significa de modo algum ser contra a política nacional de inclusão ou contra o movimento surdo. Tampouco significa ignorar ou subestimar ambos os movimentos. A tentativa é, na verdade, inscrevê-los na ordem do sistema social da contempora- neidade. De fato, por crítica radical entendemos: “[…] a busca, na raiz dos acontecimentos, as distintas condições de possibilidades daquilo que o determina” (LOPES; FABRIS, 2013, p. 13).

Assim, fazer a crítica radical às políticas de inclusão e à emer- gência da educação bilíngue como movimento de resistência significa problematizar práticas diversas que determinam tanto as verdades sobre esses conceitos (inclusão e educação bilíngue) quanto a produtividade desses movimentos no espaço da for- mação dos professores de surdos numa sociedade neoliberal de Estado governamentalizado (LOPES; FABRIS, 2013).

Entendendo a educação bilíngue como a materialização de uma prática discursiva, vale a pena discutir como essa ideia vem

sendo constituída em vários espaços, em diversas sociedades e como não há um conceito único para ela.

Para discutir a emergência da noção de educação bilíngue, repor- tamo-nos aqui, de forma resumida, devido à natureza deste texto, a uma coletânea organizada por Skliar (1999), uma discussão so- bre as atualidades da educação bilíngue para surdos. Vale ressaltar que os textos dessa coletânea foram resultado das conferências do V Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Sur- dos, realizado no Brasil, em Porto Alegre/RS, em 1999. Faço men- ção a ela, porque, a partir de então, vários movimentos na direção de uma educação bilíngue foram disparados no Brasil.

Para Skliar (1999), pensar numa perspectiva da educação bilín- gue sem levar em conta seus aspectos políticos é transformar as ricas perspectivas dos movimentos surdos em políticas mera- mente metodológicas e sistemáticas. Por isso, o autor reúne tex- tos com diferentes experiências de educação bilíngue de alguns países da América Latina e, em alguns casos, de países nórdicos, como referências para diversas produções e possibilidades a par- tir de modelos internacionais.

Analisando as formas como o bilinguismo (termo utilizado na coletânea) se coloca em diferentes países, podemos perceber al- guns pontos de tensão, devido à tradição oralista7 e ao enfraque-

cimento dos movimentos surdos, comuns em diversos lugares do mundo. Entre esses pontos de tensão, podemos listar: a) a aprendizagem tardia da língua de sinais como primeira língua (L1) das crianças surdas; b) o local do aprendizado da língua de sinais, que ocorre na escola e, muitas vezes, por meios não naturais (ambiente); e c) as decisões da família de acordo com as orientações médicas, que nunca são favoráveis às línguas de sinais, havendo uma ênfase na afirmação de que estas são um impeditivo do aprendizado da língua oral.

Apesar de esses três pontos serem comuns, diferentes formas de constituição das propostas bilíngues na América Latina foram configuradas. Destaque na década de 90 pode ser dado à Vene- zuela, que possuía uma proposta pedagógica bilíngue considera- da revolucionária. A iniciativa dos dirigentes da época foi muito relevante e disparadora de outros movimentos em direção a uma proposta bilíngue e a um olhar antropológico para a surdez. Continuando nessa linha de discussão, tomo o caso da Colômbia que, como a maioria dos países latino-americanos, viveu o ora- lismo nas políticas oficiais desde o final da década de 70 e viu o nascimento de movimentos surdos em prol da língua de sinais co- lombiana. Em 1992, criou-se, a partir da iniciativa privada, uma escola bilíngue para surdos em que a Língua de Sinais Colombiana (LSC) e o espanhol foram definidos como línguas de instrução. Segundo Ramirez (1999, p. 47): “Esta experiencia educativa in- cluyó a personas sordas como auxiliares de aula y a profesores oyentes que poseían um buen nivel de manejo de la LSC”. Foi o primeiro projeto de reconhecimento da Língua de Sinais Colom- biana inscrito no Ministério de Educação Nacional (MEN). Pos- teriormente, foi criado, pelo poder público, o Instituto Nacional para Sordos (Insor), em Bogotá, com estabelecimento de contato com pesquisadores de outros institutos para intercâmbio de co- nhecimento e de modelos de educação bilíngue.

Considerando as principais tensões da educação bilíngue rela- tadas, a atuação da Insor é bem voltada para as crianças surdas menores de cinco anos de idade. Essa estratégia visa a não per- mitir que a criança ingresse no ensino formal sem ter uma lín- gua constituída. O programa propicia aos familiares e à criança, desde sua tenra idade, por meio de surdos tutores, o encontro da comunidade surda com a Língua de Sinais Colombiana. O contato da família da criança com o surdo adulto tem provocado uma atitude diferenciada perante os sujeitos surdos, por parte dos ouvintes, e também tem dado confiança e esperança às fa-

mílias com relação ao futuro de seus filhos. São realizados, além de visitas aos familiares, encontros entre famílias para socializar resultados e questões.

Há relatos de grupos de trabalho e de escolas bilíngues em ou- tros países, como Argentina, Uruguai, Chile, sempre em busca de programas que garantam a língua de sinais como L1 e a língua do país como segunda língua (L2). As tensões delineadas nesses países são muito parecidas e as buscas de soluções são variadas. Constatamos, assim, que a última década do século XX foi extre- mamente produtiva para a perspectiva bilíngue na educação dos surdos na América Latina.

No Brasil, no âmbito educacional, vimos um movimento muito parecido com o que ocorria no restante da América Latina nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e em alguns da re- gião Nordeste. O cenário atual no Brasil em relação à educação bilíngue é de discussão entre os surdos e os ouvintes que militam na causa de forma propositiva acerca da seguinte questão: o que queremos como educação inclusiva para nós? Graças a isso, há um movimento constante para garantir que as escolas bilíngues de al- guma forma sejam mantidas como mais uma opção educacional. Na década de 1990, enquanto fervilhava a discussão da educa- ção bilíngue na América Latina e no Brasil, o Estado do Espírito Santo seguia com a proposta oralista. Existiam três escolas de surdos nessa perspectiva, que impulsionaram as políticas locais. Tais escolas nunca chegaram a ser bilíngues. Todavia, em 2002, com a conquista da legislação que reconhece a Língua Brasilei- ra de Sinais (Libras) como língua da educação dos surdos, essas escolas entraram em degradação e deram lugar às escolas regu- lares, de acordo com os documentos oficiais.

Enfim, pode-se assumir, então, que a concepção de educação bilíngue no estado do Espírito Santo chega com a perspectiva da inclusão e, portanto, já sem a influência dos movimentos surdos, mas com a representação que as políticas de Educação Especial na

perspectiva da educação inclusiva trazem em seu bojo. Quando essa representação assimila esses movimentos, a cilada é a invi- sibilização, e não a tradução, dos movimentos sociais dos surdos. É nesse contexto que este capítulo discute acerca da formação de professores de surdos.

A formação dos professores de surdos: a emergência