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Falando de experiências de formação em contexto no trabalho com a diversidade humana

As aproximações do grupo de pesquisa com os cotidianos edu- cacionais têm favorecido a realização de vários estudos que to- mam a escola como um espaço possível para a formação conti- nuada de professores, ganhando destaque as pesquisas de Givigi (2007), Gonçalves (2008) Effgen (2011), Vieira (2012), Nasci- mento (2013), entre outros.

A constituição desses estudos tem permitido ao grupo planejar várias estratégias formativas com as escolas, enriquecidas pela reflexão crítica do vivido, pelo diálogo com o pensamento de vários teóricos e pela busca de novas práticas de ensino. Essas ações são alimentadas pelos pressupostos da pesquisa-ação co- laborativo-crítica (JESUS, 2008).

Dessa forma, nesta segunda parte do texto, apresentaremos al- gumas experiências de formação vividas com professores que atuam em uma escola pública de ensino fundamental que se viu desafiada a escolarizar estudantes público-alvo da Educa- ção Especial. Essas experiências podem ajudar, em muito, ou- tros professores a refletirem sobre as perspectivas trazidas pela formação continuada em contexto mediante as possibilidades e desafios de educar na diferença.

Uma primeira experiência se reporta a um momento de forma- ção constituído com professores para reflexão sobre o direito à apropriação do conhecimento por alunos com indicativos à Educação Especial (VIEIRA, 2012). Na manhã de 16 de junho de 2010, embalados pelo som do grupo Titãs, promovemos um encontro para discussão do currículo escolar e da Educação Es- pecial. Iniciamos o momento com a canção de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito, intitulada “Comida”4.

Depois que todos cantaram, perguntamos aos professores: você tem fome de quê? Você tem sede de quê? “Temos fome e sede de dinheiro, de paz, de ser valorizado, de descansar, de estar com nossos filhos, de amar e ser amado e de tirar férias”, diziam eles. Esse cenário possibilitava que trouxéssemos para o grupo a re- flexão de que os alunos com indicativos à Educação Especial ti- nham fome de conhecimento.

Perguntamos: como temos nos organizado para saciar essa ne- cessidade? Nossa intenção era provocar o grupo. Sinalizamos que era preciso a escola se articular para definir ações que des- sem maior visibilidade e potência às iniciativas, além de fomen- tar coletivamente a filosofia educativa que estruturaria o proces- so de escolarização dos alunos naquele ambiente.

Uma professora interveio reconhecendo a importância do co- nhecimento e do lugar que ocupava como mediadora do pro- cesso, no entanto, relatou as dificuldades vividas com um aluno chamado Vitório, com diagnóstico de deficiência intelectual, di- zendo o quanto se sentia sozinha, já que considerava o estudante complicado e com poucas possibilidades de intervenção.

A professora realmente se responsabilizava por uma criança complexa, que não parava, caía na piscina, mor- dia e beijava, simultaneamente. Mas não podíamos co-

4 “Bebida é água! / Comida é pasto! / Você tem sede de quê? / Você tem fome de quê?… / A gente não quer só comida / A gente quer comida / Diversão e arte / A gente não quer só comida / A gente quer saída / Para qualquer parte […].”

locar toda aquela complexidade sobre o aluno. Era ne- cessário problematizar com o grupo, já que Vitório era colocado em discussão. Analisamos as possibilidades de aprendizagem que nos mostrava, pois já conhecia todo o alfabeto, fazia relação das letras com o nome das pa- lavras, dava conta das questões numéricas, das cores e da escrita do próprio nome. Indagávamos: quem aqui sabe dessa informação? Silêncio no recinto. Dizíamos que esse movimento não dialogava com os prognósti- cos construídos sobre os alunos com hiperatividade, pois eles nos dizem que os corpos agitados, tendencial- mente, terão dificuldade em se concentrar e aprender. Como Vitório aprendeu? Olhávamos para a professora e polemizávamos: você diz que ele não dá possibilidades de intervenção, mas como você o ensinou? Você precisa nos contar? Quem do grupo sabe dessas questões? Está aí um problema: não sabemos o que nossos colegas in- ventam para ensinar os alunos. Somente as professoras de Educação Especial afirmavam saber dessa situação, e perguntamos: mas, ano que vem, quem estiver com Vitório saberá dessa construção? Vamos começar por onde? Então, minha gente, a questão é bem mais ampla e não pode ser resumida às questões desse aluno (Diário de campo, 16 jun. 2010).

Esses diálogos ajudavam a professora a olhar para si e perceber que nela havia potência. Ela sorria e confirmava para as colegas a aprendizagem do aluno. Sua voz austera ganhava uma tonalida- de mais suave. Percebia que não negávamos as tensões existen- tes, mas que era possível observar as tentativas e buscar, coleti- vamente, vias para que algumas dificuldades fossem superadas:

Até certo momento, eu parecia que ia enlouquecer com ele, porque, no início, eu olhava para ele e queria que ele fosse igual aos outros. E depois de duas ou três se- manas que vi você trabalhando com ele, eu vi que tinha que trabalhar de forma diferenciada e tentei dar o meu máximo. Com essas conversas com você, eu vi essa ne- cessidade, entendeu? Por isso que uma pessoa de fora, vindo para trabalhar com a escola, ajuda muito o profes- sor a lidar com os desafios que ele enfrenta. A pessoa vê várias coisas que, às vezes, no dia a dia, nós não vemos. Como vai problematizando isso com a escola, vai nos

fazendo ver que precisamos também mudar. Não só o aluno muda, mas o professor também, porque a manei- ra como eu olhava o Vitório refletia na forma como ele aprendia, no que eu ensinava para ele e como validava a aprendizagem dele. Ele tem uma rotina de aprendiza- gem mais lenta e que a própria sociedade não valoriza, porque, nessa vida, tudo tem que ter lucro, então, essas conversas me ajudaram a pensar nessas coisas e hoje vejo que ele ampliou a aprendizagem, porque eu também ampliei a minha compreensão sobre a aprendizagem dele (Ruth, professora).

O contexto possibilitava ao grupo perceber que estávamos em busca dos movimentos, daquilo que eles tinham de melhor, e que a problematização de algumas questões podia trazer outras possi- bilidades de ação e de colaboração. Discutimos que o trabalho do- cente conjugado à diferença humana era uma situação desafiado- ra, e as ações isoladas dificultavam mais o processo, provocando solidão, cansaço e falta de clareza dos objetivos a serem atingidos. Problematizamos que as tentativas do grupo podiam ganhar maior potência se assumidas como um compromisso de toda a escola. O grupo nos ouvia dizer que a Educação Especial não se circunscrevia em torno de um número limitado de profissionais, mas de uma proposta coletiva, já que a educação, na diferença, era um direito repleto de desafios.

Recorrendo a Santos (2006), entendíamos que a formação em contexto trazia movimentos para a escola. Saíamos dos pressu- postos do “sim” e do “não” e caminhávamos em direção ao “ain- da-não”. Como fala o autor, os profissionais ligados às ciências sociais têm dificuldade em trabalhar com pistas e sinais por va- lorizarem resultados fechados. Muitas vezes, a “razão indolente” busca nos convencer de que temos determinado elemento ou de que não temos condições de tê-lo. A “sociologia das ausências e a das emergências” permitiam à escola romper com esse pres- suposto. Possibilitavam pensar na ideia de processualidade, ou seja, na existência do “ainda-não”:

Nós precisamos articular os trabalhos aqui na escola. Fiquei muito sozinha e me sinto cansada. Mas o que vem ao caso é que precisamos juntar a sala de aula com a Educação Especial. É isso que você vem dizendo. Eu estou entendendo (Ruth, professora).

A gente vai chegar lá. Nessa discussão não posso negar que o Vitório dá trabalho, mas acho que, com as dis- cussões da pesquisa, a gente tem visto que o problema não é só ele. Somos nós também. Nosso trabalho, por ser desarticulado, dificulta mais a situação. Acho que o foco não pode ficar nele, mas em toda a escola (Sara, professora de Educação Especial).

Com o passar do tempo, já encontrávamos iniciativas que busca- vam produzir articulações entre a Educação Especial e a sala de aula comum. Era possível perceber tentativas de um acompanha- mento mais sistematizado das ações, pois esse era o desejo do gru- po. Era mais fácil trabalhar coletivamente, já que subjetividades rebeldes moviam o pensamento dos professores, e, como alerta Santos (2006), para a atuação em contextos que demandam trans- formação, precisamos dispor de duas correntes de racionalidade: a corrente fria, que toma consciência dos obstáculos e das condi- ções da transformação; e a corrente quente, que nutre a vontade de agir, de transformar e de vencer os obstáculos.

Os momentos de formação possibilitavam várias reflexões, pois levavam o grupo a problematizar seus próprios encami- nhamentos para a Educação Especial e a verificar a necessidade de produzir novos arranjos para a escola cumprir sua tarefa como inclusiva. Os professores conseguiam perceber que a construção de uma filosofia educativa, proposta pela coletivi- dade da escola, para envolver os alunos com deficiência e com transtornos globais do desenvolvimento no currículo escolar, trazia maiores indícios do que fazer e de como planejar, arti- cular as colaborações e acompanhar o processo, nada linear, de construção do conhecimento pelos alunos, ampliando a expec- tativa do grupo.

Nesse movimento, os professores podiam analisar o quanto, na escola, existia um conjunto de instrumentos e recursos para se- rem utilizados de maneira tal que contemplasse as suas necessi- dades didáticas e as dos alunos na produção do conhecimento. A questão não era construir um arsenal de conhecimentos para promover a inclusão dos alunos no currículo escolar, mas pro- duzir conhecimentos alternativos que tornassem aquilo de que a escola dispunha em elementos facilitadores do acesso.

Em 15 de setembro de 2010, fizemos mais um encontro coletivo com os professores. Refletimos sobre as diferentes possibilida- des de abordarmos o currículo escolar, mas, para uma reflexão mais didática, tomamos as teorizações de Goodson (1995), ao defini-lo como uma pista de corrida.

Convidamos os presentes para fechar os olhos e se imaginarem na pista. Eles seguiriam as regras impostas pelos pesquisadores para realizar o percurso. Dissemos que adotaríamos uma única estratégia, ou seja, todos correriam no mesmo ritmo, cadência, compasso, até que anunciássemos o momento de parar. O grupo sorria, dizia não conseguir aguentar e já se sentir cansado. Co- meçamos a reflexão problematizando as possíveis consequên- cias dessa orientação, afirmando para os professores que alguns fariam o trajeto, outros desistiriam; uns o fariam pela metade; haveria um grupo que tentaria burlar e outro sem condições mí- nimas de iniciar a caminhada. Com a dinâmica, perguntamos que relação havia entre essa situação e a maneira como lidáva- mos com o conhecimento em sala de aula. Semblantes pensati- vos, certo silêncio e, ao final, várias reflexões:

A escola precisa parar para pensar a questão do currí- culo. Por quê? Na escola há um currículo a ser seguido e os nossos meninos… Temos o currículo, só que esses meninos não têm conseguido dar sentido a muita coisa desse currículo. É necessário esse currículo ser discu- tido, ser preparado, ser adaptado para que esse aluno possa atingir a meta, porque senão fica solto, e o próprio professor fica solto, porque eles não são iguais, cada um

é um. Então, pelo fato de eles não serem iguais, o currí- culo tem que ser pensado na diferença. Isso é uma preo- cupação que o professor precisa ter, porque, se o currí- culo fica solto, ele fica solto também (Nádia, professora de Educação Especial).

Acho importante a escola fazer essa discussão sobre o currículo, porque ele tem que se adaptar à necessidade de cada aluno. Cada um é um ser diferente e nós temos que repensar a questão do currículo para fazer essas adaptações […]. Eu acho que o currículo tem que ser mudado, porque é um currículo que não vê as diferen- ças de cada aluno, porque, mesmo no caso dos alunos “ditos normais”, ele não atende, porque os alunos são di- ferentes. Então eu acho que o trabalho tem que ser dife- renciado. Acho que tem que ser analisado de outra for- ma. Você vê que cada clientela é diferente, então, acho que um dos grandes “nós” da educação é pensar como o currículo vem lidando com as diferenças e como vem provocando diferenças (Julia, coordenadora).

Voltamos para a imagem e convidamos o grupo a se posicionar mais uma vez na pista. A partir de então, perguntamos a uma docente: “para você fazer a caminhada, o que é necessário?”. A professora respondeu: “se eu puder caminhar no meu ritmo, é possível concluí-la”. Outra sinalizava: “gosto de caminhar baten- do papo com as colegas, porque o tempo passa e a gente não se dá conta. Posso caminhar com ela?” Respondemos prontamen- te que sim. “Quem precisará de uma bicicleta?” Uma professora levanta a mão e afirmamos a possibilidade de atendê-la. “Quem tem um carro?” Várias levantaram as mãos. “Vocês podem uti- lizá-lo.” Convidamos as professoras a imaginar que um cego se juntava ao grupo. “Que estratégias vocês criarão para ele cami- nhar conosco?” Responderam: “se ele dispuser de um cão-guia, a caminhada pode ser feita”. “Posso dar carona para ele.” “Ele pode andar conosco, porque podemos guiá-lo.” “E se tivermos uma pessoa com dificuldades de locomoção? Como ela caminhará?” “Pode usar uma cadeira de rodas”, diziam as professoras. E assim as possibilidades iam emergindo.

Com essa dinâmica, relacionamos o percurso com o currículo e a corrida com a escolarização dos alunos indicados à Educação Especial; a inexistência de estratégias diferenciadas acabava en- curtando o trajeto percorrido, ou seja, o currículo. Perguntamos ao grupo: “o que deveria ser alterado, as práticas pedagógicas ou o caminho?”. “As práticas pedagógicas”, sinalizavam os professo- res. “Se as pessoas tiverem acesso aos recursos necessários, farão a caminhada”, respondeu outro professor.

Passamos a refletir sobre como o currículo escolar estava resu- mido às ideias dos livros didáticos, seguindo sequências rígidas de conteúdos com pouca relação com a realidade dos alunos. Voltamos a questionar: “quem chega primeiro à escola, os co- nhecimentos ou os alunos?”. Os professores sinalizavam que os conhecimentos são selecionados, muitas vezes, no início do ano letivo. Assim, os docentes elaboravam seus planos de ensino sem mesmo conhecer o percurso de aprendizagem dos estudantes. “Já escolhemos o livro didático esse ano, e isso mostra que o que será trabalhado chegou antes de muitos alunos que só entrarão na escola ano que vem”, disse uma docente:

Quando vejo essa ideia de caminho, penso que ele pre- cisa ser visto como um elemento que tem início, meio e fim, portanto, precisa de um planejamento, de uma intenção. Precisa ser feito, mas com um alvo a ser alcan- çado. Temos trabalhado sem esse algo. Sem essa meta. Nós trabalhamos com os alunos especiais, mas tenho a sensação de que não sei para onde estou indo. Acho que é realmente interessante pensar nisso que estamos con- versando nesse encontro (Kamilla, professora).

Você tem razão, muitas vezes, seguimos o livro didático fazendo dele o currículo da escola. O próprio sistema também colabora com essa ideia, porque já diz o que precisa ser ensinado para o aluno naquela série. E o que acontece com o aluno que está em outro tempo e não se enquadra nessa situação? Ele fica fora, mas isso não quer dizer que não trabalhamos nada com ele. Só que o que ele aprendeu não é aquilo que o sistema valoriza. E aí ele fica fora (Rita, pedagoga).

Fechamos o encontro aproveitando as preocupações do grupo, que sinalizava a necessidade de aprender como conjugar as de- mandas coletivas e individuais dos estudantes no currículo es- colar, de pensar em articular estratégias diferenciadas de ensino e de aprender a validar conhecimentos, mas em diálogo com a trajetória de cada estudante na caminhada rumo ao saber. Finalizando, o grupo concluiu que o processo de ensinar vai além das paredes da sala de aula, e o professor é o profissional que pode contribuir para a transformação das relações desiguais de acesso ao conhecimento, rompendo com as fronteiras cultu- rais que separam os saberes das ações pedagógicas para torná- -los acessíveis aos alunos.

Assim, as experiências retratadas permitiram aos professores perceberem que a reflexão crítica sobre o vivido na escola e os desafios existentes na prática pedagógica podem ser elementos que potencializam a formação continuada em contexto e a pro- fissionalidade do educador, principalmente pelo fato de possi- bilitarem a produção de novos conhecimentos pedagógicos e a promoção de pensamentos e olhares mais prospectivos sobre o trabalho docente mediante os diferentes percursos de aprendi- zagem presentes no cotidiano escolar.

Os professores, ao vivenciarem a experiência de assumir a escola como espaço-tempo de formação continuada, puderam, de acor- do com Santos (2006), constituir um olhar contra-hegemônico sobre os diferentes modos de aprender dos alunos, o currículo, os processos de avaliação da aprendizagem e a própria perspec- tiva de formação dos educadores, não assumindo essas questões como algo que paralisa a ação docente, mas, ao contrário, como elementos que podem ser utilizados pelo professor pesquisador para constituir novos modos de estar na profissão e de mediar a aprendizagem humana.