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A formação dos professores de surdos: a emergência dos novos profissionais

Os movimentos surdos e a emergência da educação bilíngue mudaram os rumos da formação dos profissionais na área da educação de surdos no Brasil, e novos profissionais surgiram no cenário a partir do Decreto nº 5.626/2005: o professor e o intér- prete de Libras.

Pelo fato de a noção de educação bilíngue se constituir de modos diferentes, não há um percurso ou material formativo definitivo, até o momento. Sendo assim, as práticas discursivas e as expe- riências dos profissionais que se envolvem com a educação de surdos tomam rumos diversos. Tanto as práticas, as experiências quanto os movimentos surdos desenvolvem a ideia de educação bilíngue discursivamente. Então fica a pergunta: como tem se configurado a formação desses sujeitos considerando o caminho que a educação bilíngue vem tomando?

Segundo Machado e Lunardi-Lazzarin (2010), a formação de professores de surdos no campo da inclusão se trata de um dis- positivo de governamentalidade dos sujeitos-docentes, já que produz efeitos de verdades específicos nos discursos. Na atual conjuntura, a formação docente se delineia com estratégia preci- sa na constituição de um corpo de sujeitos-professores interes- sados e sensibilizados pela política da inclusão e vem responder a uma urgência histórica.

Vale pontuar, neste momento, a necessidade urgente de forma- ção de um conjunto de saberes político-pedagógicos para a cons- tituição de uma expertise, a fim de que práticas relacionadas com a propagação da política instituída sejam garantidas. Conforme ressaltam Machado e Lunardi-Lazzarin (2010, p. 23):

[…] os saberes legitimados pela formação de professo- res refinam o investimento de poder operado pelas ins- tituições escolares, constituindo-se, nessa engrenagem, como uma estratégia de enquadramento dos sujeitos, especialmente em razão da necessidade de produzir alunos e professores dóceis, maleáveis, administráveis. Nessa paisagem em que se torna indispensável formar um determinado corpo de experts e colocar determi- nadas práticas em funcionamento, a educação especial constitui-se como uma expertise, um aparato de saber pedagógico emergente no contexto da modernidade para equacionar e continuar produzindo os estranhos – entre eles, os surdos – necessários à dinâmica de or- denamento dessa racionalidade.

Quem são os sujeitos em processo de formação para a educação de surdos?

No caso do estado do Espírito Santo (e claro, seguindo a linha histórica da própria Educação Especial), assim que o movimento surdo começou a tomar a atitude de lutar pela educação bilíngue e que a Lei de Libras (Lei nº 10.436/2002) foi promulgada, os sistemas de educação passaram a ocupar espaços docentes nas escolas com pessoas que sabem Libras e que geralmente eram intérpretes das comunidades religiosas ou familiares participan- tes de associações.

Dessa forma, os sujeitos para quem, majoritariamente, eram destinados os processos de formação eram familiares de surdos e cristãos, que passaram a fazer parte do corpo de novos ex- perts que compunha o cenário da educação de surdos no Brasil por meio da educação bilíngue. Eles assumiram esse novo lugar com um saber específico e com as verdades instituídas pelas

práticas discursivas vividas com os surdos e passaram a falar de igual para igual com os especialistas que ainda eram rema- nescentes da ordem discursiva oralista. Assim, entravam em cena afirmando: “Eu vi, eu experienciei, eu sou testemunha que saber Libras é fundamental na educação de surdos. Eu tenho esse saber […]”.

No rastro desses sujeitos, podemos encontrar, nos relatos das professoras8, transcritos abaixo, reflexos dos diferentes espaços

de formação e do modo como estes são construídos por motiva- ções distintas. A ideia de trazer esses relatos se dá a fim de ex- plicitar como as mudanças conceituais e históricas da noção de educação bilíngue e a influência dos movimentos surdos podem diretamente influenciar tanto as práticas como as formações desses sujeitos professores que trazemos aqui. Novos saberes são requeridos. Mas quais?

Magistério era o curso de tradição na minha família, en- tão não poderia ser diferente comigo. Concluí o Curso Normal e comecei a trabalhar em uma creche em Viana. Foi quando uma prima que trabalhava com surdos, pois ela tinha um filho surdo e trabalhava na Escola Oral e Auditiva em Vitória, me convidou para fazer um curso oferecido pelo Estado. No princípio, eu relutei, mas a minha mãe relutou mais ainda contra a minha decisão, pois ela cobrava que só ela levava meus irmãos para a escola e precisava de ajuda. Foi por um pouco de pres- são que tomei a decisão e fui fazer o curso junto com uma outra prima (Janaína, professora).

Há mais ou menos 20 anos atrás, interessei em fazer um curso de Libras, que, na verdade, foi o primeiro no mu- nicípio de São Mateus/ES ministrado por uma jovem que veio do Rio de Janeiro, na Primeira Igreja Batista. Muito curiosa em conhecer a língua dos surdos, fui a primeira aluna ouvinte a se matricular. Confesso que

8 Para este recorte, escolhemos alguns relatos que exemplificassem os objetivos do texto. Outros depoimentos podem ser encontrados no trabalho (Per)cursos na formação de

professores de surdos capixabas: constituição da educação bilíngue no estado do Espírito Santo (VIEIRA-MACHADO, 2012).

não foi nada fácil, mas fui em frente, e, então, aconteceu que, durante esse período, fiquei grávida e precisei dei- xar a interpretação (Rosa, professora).

[…] Por querer aprofundar mais meus conhecimentos, em 2008, saí da sala regular e passei a trabalhar no [aten- dimento educacional especializado] AEE da Prefeitura de Vitória. Cada dia me encanto mais em trabalhar com alunos surdos e vejo o quanto eu tenho de aprender, e essa “falta de saber” me instiga a querer sempre mais informações. Tenho muito a aprender e que bom ter- mos um grupo pra discussão de nossas práticas e teorias para embasar nosso trabalho (Liana, professora).

Nos depoimentos dos sujeitos, constatamos indícios de práticas que há anos vêm instituindo o movimento surdo, alimentando esse grupo, constituindo um novo saber, uma verdade que está relacionada com a experiência. Entretanto, corre-se o risco de esse saber se tornar uma verdade oracular9, e não experiencial,

quando as condições sociais que se instituem no momento his- tórico (como as leis e os decretos de Libras, por exemplo) legi- timam tais práticas. Com isso, as formações poderiam também tomar para si esse saber como único e exclusivo, como a verdade do momento, da atualidade.

Diante desse contexto, consideramos pertinente trazer para a discussão a viabilidade de se ver o professor de surdos como um intelectual específico.