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As reformas educacionais e seus impactos nos currículos de formação inicial de professores

Na atual conjuntura, vivemos processos de transformações sociais desencadeados pelo mundo globalizado. As mudanças técnico-científicas, políticas e econômicas têm influenciado o dia a dia de todo cidadão. O acesso às informações amplia-se quando a televisão, o telefone, o computador, entre outros, pas- sam a ser instrumentos utilizados cotidianamente por todos. Nesse processo, a cultura local acaba sendo influenciada por aspectos globais, por exemplo, com a exigência de manuseio desses instrumentos.

Conforme nos aponta Carvalho (2002), essas transformações evidenciam o projeto de sociedade ancorado nas políticas de cunho neoliberal, tendo como princípio a lógica de mercado competitivo, em que a racionalidade técnica respalda a compe- tência pessoal e profissional.

Corroborando esse argumento, Lima (2008) defende a ideia de que o pensamento tayloriano sobrevive aos nossos dias, ancora- do e inscrito no quadro ideológico mais alargado do capitalismo liberal, principalmente, nas concepções elitistas da democracia, “[…] cujos princípios conseguem transferir[-se] para o nível da produção, do controlo do trabalhador e do trabalho, institucio- nalizando uma determinada ‘ordem’ a que aquele se submeterá […]” (LIMA, 2008, p. 118).

Para esse autor, tal pensamento confunde-se, de diversas formas, com a ideia de modernidade, desenvolvimento e progresso. Em seus argumentos:

A modernização significará, para o futuro, racionaliza- ção, eficácia, eficiência, alcance da solução certa, opti- mização, relação favorável custo/benefício, progresso […]. O império da racionalidade econômica institui a procura de eficácia à escala universal, dispensando a história, menosprezando a pergunta essencial – eficácia para quê, segundo quem e em benefício de quem? –, e recusando outra resposta que não a do progresso e a do interesse geral (LIMA, 2008, p. 119).

Nesse sentido, ao eleger a racionalidade econômica, a otimiza- ção, a eficácia e a eficiência como elementos nucleares dos pro- gramas de modernização, tem-se importado a ideia de empresa para o seio da administração pública, como forma de adaptação às pressões do mercado. Em outras palavras, observa-se um mo- vimento ideológico de privatização de serviços públicos, princi- palmente no setor da educação (LIMA, 2008).

O sector da educação é actualmente terreno privilegia- do das medidas de racionalização. A fase de expansão quantitativa do sistema terá chegado ao seu termo […], sabendo-se que os cortes nas despesas públicas serão certos, já anunciados e admitidos, e que face a essa orientação o aumento da qualidade da educação terá de ser conseguido não à custa de maiores investimentos, mas precisamente através de políticas de racionalização e de reestruturação que garantam uma maior eficácia e uma maior eficiência interna (LIMA, 2008, p. 127).

Nesses termos, há que se considerar que o discurso político das reformas acaba transitando da expressão quantitativa e qualitativa e da fase dos grandes investimentos para o discurso técnico do crescimento na qualidade. Técnica aqui entendida como política. Nesse terreno de debate político, há que se problematizarem e destacarem aspectos relativos ao currículo escolar, com o qual

o profissional docente trabalha diretamente. Moreira e Silva (1999) apresentam reflexões acerca da necessidade de se pensar a escola como espaço de relações sociais, onde o currículo preci- sa ser construído considerando os aspectos culturais e de poder presentes na sociedade.

Nos argumentos desses autores, é preciso superar a perspecti- va da hierarquização e da fragmentação do conhecimento. As propostas curriculares presentes nas escolas de educação básica e de ensino superior são materializadas numa perspectiva disci- plinar, em campos de saberes fechados em si mesmos, ocupan- do territórios hierarquizados. Corroborando esse pensamento, Carvalho (2002) destaca que esta perspectiva de materialização curricular ancora-se no paradigma da modernidade, inscrito no princípio liberal positivista, em que a especialização do saber é valorizada por pretender-se verdadeira e neutra.

Nesse debate vale destacar as contribuições de Dayrell (2006), quando analisa a escola como espaço e tempo de conflitos e pos- sibilidades. A convivência entre os sujeitos escolares possibilita o confronto de saberes, pois os aspectos culturais e sociais passam a ser fonte de produção de conhecimento. Assim, compreende- se a escola como espaço vivo, devendo ser organizada a partir de princípios que favoreçam a manifestação cultural dos sujeitos. Professor e aluno precisam problematizar suas realidades sociais e sistematizar conhecimentos que lhes possibilitem transcender o individual/particular, compreender o mundo e a si mesmos. Diante dessas reflexões, ressaltamos a importância de proble- matizar o atual contexto de formação docente no ensino supe- rior. Carvalho (2002) destaca que, desde o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, as políticas de formação de professores têm adotado uma perspectiva cognitivo-racional. Os indicativos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Pro- fessores da Educação Básica, de 2001, apresentam princípios de instrumentalização técnica na formação, o que reforça a ideia

do professor competente, resgatando a perspectiva tecnicista, de cunho tayloriano, conforme destaca Lima (2008). Os saberes docentes se fundamentariam, pela proposta das diretrizes, em manejar instrumentos e técnicas que garantiriam o seu fazer. Essa perspectiva também aparece nas Diretrizes Curriculares Na- cionais para o Curso de Pedagogia, regulamentadas pela Resolução CNE/CP nº 1 de 2006 (BRASIL, 2006). As propostas presentes nes- sas diretrizes evidenciam o aligeiramento da formação de profes- sores e, paradoxalmente, propõem uma formação ampliada. Elas sugerem, por exemplo, para a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental, a possibilidade de atuação em espaços es- colares e não escolares, bem como em processos de gestão da es- cola e dos sistemas de ensino. Uma formação que aponta para uma amplitude de atuação e que pode ser feita em 3.200 horas. Consi- derando a dimensão da formação para o exercício da docência na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, assim como para o exercício de atividades de gestão, há que se problema- tizar o tempo dispensado a ela, pois este parece não contribuir para aprofundamentos teóricos e práticos necessários.

Para garantir a aprendizagem de todos os alunos, vale lembrar que o profissional também precisa construir conhecimentos específi- cos durante a sua formação para assegurar a inclusão escolar dos alunos com deficiência, com transtornos globais de desenvolvi- mento e com altas habilidades/superdotação, conforme indicati- vos das diretrizes e do documento orientador das Políticas Nacio- nais de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. A proposta de formação apontada pelas atuais diretrizes tem desencadeado a mercantilização da educação. As instituições privadas de ensino superior têm lançado no mercado propostas de formação cujos currículos, associados ao tempo de realização do curso, precisam ser atrativos para o “cliente”. O “consumo” desses cursos tem refletido num tipo de formação docente des- vinculada da qualidade social da educação.

Destacamos, ainda, que os cursos precisam oferecer um conhe- cimento que possibilite ao professor atender à diversidade de sujeitos presente nas escolas. Para a garantia do direito de aces- so, de permanência e de aprendizagem com qualidade social, o professor deve direcionar o ensino a todos os alunos. O processo de inclusão escolar exige do profissional a condução de práticas pedagógicas que abranjam as diferenças.

Nessa perspectiva, o profissional docente precisa de um arca- bouço teórico e prático que lhe possibilite conduzir suas ações considerando as dimensões técnico-instrumental, humana e so- ciopolítica da didática (ANDRÉ, 2001).

Carvalho (2002) destaca, para nossas análises, perspectivas te- óricas que nos possibilitam situar as intenções das atuais políti- cas de formação. Para a autora, estamos vivendo uma transição paradigmática, cujas tendências teóricas apontam, pelo menos, quatro correntes que nos ajudam a pensar a formação docente. Uma primeira tendência, como já destacamos, defende a for- mação de um professor competente. Um profissional capaz de manejar instrumentos e técnicas relativas à sua atuação. Essa perspectiva resgata uma formação instrumental tecnicista, cujos conhecimentos e saberes seriam territorializados em disciplinas hierarquizadas. Conforme argumentamos, as políticas de for- mação presentes na atualidade estariam ancoradas nessa pers- pectiva, em que os princípios neoliberais são fortalecidos numa política mercadológica de formação.

Nesse sentido, a dimensão da didática pensada para a formação docente seria a instrumentalização técnica. Os três pilares da Universidade (ensino, pesquisa e extensão) são dicotomizados. Considera-se que ensino e pesquisa devem ser trabalhados sepa- radamente, pois seriam de naturezas diferentes.

Uma segunda tendência sustenta que a formação deve tornar o professor reflexivo. Essa abordagem tem seus princípios fun-

damentados nas ideias de John Dewey, uma perspectiva que se ancora no pragmatismo. Donald Schön é um dos representantes desse pensamento. Para Schön, a formação do professor deve estar ancorada no processo de reflexão-na-ação, a partir das ex- periências profissionais.

A terceira tendência teórica apresentada por Carvalho (2002) é a que defende a formação do professor orgânico-crítico. Funda- mentada na perspectiva neomarxista gramsciana, essa proposta de formação pretende um profissional que articule as relações de conflitos sociais, considerando os aspectos de poder vinculados aos econômicos, na tentativa de transformação da realidade so- cial. Um professor orgânico-crítico trabalharia considerando a luta de classes, a fim de confrontar as desigualdades sociais. Por fim, Carvalho (2002) destaca que estaríamos vivendo a tran- sição para um novo paradigma e apresenta uma perspectiva de formação de um professor pós-crítico. Este não se contrapõe ao orgânico-crítico; amplia suas possibilidades de compreender o mundo e a si mesmo, como sujeito e profissional.

Diante dessas perspectivas teóricas, vale destacar que as insti- tuições de ensino superior têm o desafio de organizar currículos que articulem pesquisa e ensino, considerando a extensão uni- versitária como ponto de partida para problematizar o conheci- mento e a formação profissional.

Conforme apontam Pimenta e Lima (2004) e também André (2001), pesquisa e ensino devem ser articulados na formação inicial do profissional de educação, uma vez que aproximam o futuro professor da realidade na qual atuará. Assim, os cursos de formação precisam organizar currículos que contribuam com a “desterritorialização” do conhecimento e dos saberes profis- sionais. Romper com a disciplinarização do conhecimento é um dos desafios das Instituições de Ensino Superior, para se pensar a formação docente no contexto atual.

Vaz (2008) corrobora esses argumentos ao fomentar a pesquisa como eixo de formação de professores, defendendo que os en- volvidos se tornem pesquisadores de sua própria prática. Este movimento deve ser suscitado ao longo de todo o processo de formação inicial. Como diz Nóvoa (1992, p. 28), “[…] a formação passa pela experimentação, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de trabalho pedagógico. E por uma reflexão crítica sobre a sua utilização”.

Considerando o que indica o documento orientador da Políti- ca Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, um desafio se coloca diante da necessidade de articulação entre ensino e pesquisa na formação docente. Isso porque, historicamente, a Educação Especial foi organizada como atendimento especializado substitutivo ao ensino comum, o que gerou, ao longo dos anos, a criação de escolas e de classes especiais fundamentadas no conceito de normalidade/anorma- lidade, o qual trouxe a exclusão para a população de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habi- lidades/superdotação. Essa prática dicotomizou a educação ge- ral e a Educação Especial, trazendo implicações para a formação dos profissionais que atuam nesses diferentes espaços.

Trabalhar numa perspectiva de formação docente no contexto da inclusão escolar pressupõe a efetivação de uma lógica contrária à da exclusão, superando a referida dicotomia, primordialmen- te, no que se refere aos modos de planejamento, organização e coordenação do currículo e dos espaços de ensinar e de apren- der no cotidiano das escolas regulares. Isso, entretanto, implica também a elaboração de políticas de educação que contribuam para que os profissionais ressignifiquem concepções e constru- am práticas inclusivas. A Educação Especial tem a necessidade da produção de conhecimento que articule o atendimento das especificidades de sua população público-alvo à educação geral, de modo a superar a perspectiva clínica historicamente constru- ída nesse campo de atuação.

Em referência a esse debate, Mendes (2006, p. 158) argumenta: A defesa de uma escola inclusiva ou de uma política de

Educação Inclusiva não elimina a existência de alunos com necessidades educativas especiais nem a necessi- dade de produzir conhecimento sobre a realidade des- ses alunos [no caso em questão, de suas especificidades] […]. Portanto, a Educação Especial, como área de pro- dução de conhecimento científico, permanece tendo sua identidade e relevância reconhecida.

Assim, tendo a Educação Especial o seu lugar, mas necessitando se articular à educação geral, é preciso considerar que os profis- sionais que atuam na área demandam conhecimentos que lhes possibilitem compreender que os espaços inclusivos precisam ser planejados, organizados e coordenados por processos de ges- tão que os assumam imbricados dialeticamente. Nessa direção, aponta-se para que a formação desses profissionais consolide tais conhecimentos.

Para tanto, é relevante destacar a fala de Barbosa-Rinaldi (2008, p. 186), quando postula a importância da formação inicial no pro- cesso de preparação dos futuros professores, pois é nesse contexto de vivências e experiências que os graduandos “[…] adquirem co- nhecimentos indispensáveis para a atuação profissional”.

Barbosa-Rinaldi (2008) ainda alerta para a necessidade de os cursos de graduação, que atuam com a formação de professores, fomentarem a capacidade de compreensão sobre a realidade so- cial vivida, numa perspectiva de práxis, isto é, uma prática que dialoga com a teoria e a ela retorna, constituindo assim outra e nova prática (SACRISTÁN, 2000). Entendemos que, ao se tornar autor de sua própria prática, o futuro professor terá condições singulares para contribuir com a formação crítica, emancipada e autônoma dos alunos da educação básica.

Ainda de acordo com Barbosa-Rinaldi (2008, p. 192), urge a ne- cessidade de se repensar a formação dos professores, com vistas

a reconfigurar o modelo da racionalidade técnica, amplamente difundido nos cursos de formação inicial, no intuito de

[…] formar profissionais que sejam capazes de compre- ender a complexidade das realidades sociais nas quais estamos envolvidos e contribuir para a sua transforma- ção, para que os mesmos sejam produtores, transfor- madores, co-criadores e não reprodutores de saberes.

Assim, a formação passa por processos de investigação, direta- mente articulados com as práticas educativas. Compreendemos que tais movimentos fomentam a construção de uma ação do- cente mais autônoma e comprometida, consolidando “[…] es- paços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel do formador e de for- mando” (NÓVOA, 1992, p. 25-26).

A escola como espaço de formação continuada e