• Nenhum resultado encontrado

Perturbações do espectro autista: da criança com autismo ao aluno com autismo

A primeira publicação acerca do autismo foi feita em 1943 por Leo Kanner, pedopsiquiatra em Boston, sob o título “Autistic disturban- ces of affective contact”. Essa publicação resultou de um estudo com onze crianças (oito meninos e três meninas) que apresentavam um comportamento muito diferente da maioria das outras crianças. O estudo de Kanner foi um marco histórico na evolução do conheci- mento científico sobre o autismo, pois apresentou os critérios de diagnóstico em termos de comportamentos infantis específicos, tal como ele os percebia, e não em termos de adaptação dos crité- rios existentes para os adultos (RUTTER; SCHOPLER, 1987). As características identificadas por Kanner foram: “[…] incapacidade de relacionamento com os outros; falha no uso da linguagem; de- sejo obsessivo de manter as coisas na mesma maneira; ansieda- de (tinham medos desapropriados das coisas comuns); excitação fácil com determinados objetos ou tópicos” (LIMA, 2012, p. 1). Em 1944, Hans Asperger, pediatra de Viena, publicou o traba- lho intitulado “Autistic psychopathy in childhood”, no qual des- creve o comportamento de um conjunto de rapazes que revela- vam “[…] contato social inadequado com comunicação peculiar, criando palavras originais, com pobreza de expressões faciais e de gestos e com muitos movimentos estereotipados, inteligência normal ou acima da média” (LIMA, 2012, p. 1).

Kanner e Asperger deram uma importante contribuição ao es- tudo do autismo. Por essa razão, as patologias por eles identifi- cadas designaram-se Síndrome de Kanner e Síndrome de Asper- ger, respectivamente.

Mais tarde, outros trabalhos foram realizados por psicanalistas, como Margareth Mahler e Melanie Klein, em 1975, ajudando a compreender as raízes históricas da problemática em questão (CAVACO, 2009).

Lorna Wing e Judith Gould, em 1979, apresentaram um estudo epidemiológico realizado com 35 mil crianças, em Camberwell, no qual concluíram que um grupo grande de crianças tinha al- gum tipo de limitação na interação social, que estaria associada a dificuldades na comunicação e à inexistência de interesse em certas atividades. Em face dos resultados do estudo, que conse- guiu identificar três áreas de incapacidade – linguagem e comu- nicação, competências sociais e flexibilidade de pensamento ou de imaginação – Wing e Gould (1979) aplicaram o conceito de “spectrum” na referência a essa problemática.

Na sequência desse estudo, em 1985, Simon Baron-Cohen, Uta Frith e Alan Leslie defenderam que as pessoas com PEA têm uma “teoria da mente” deficitária, ou seja, apresentam uma incapacidade de compreensão dos estados mentais dos outros (HEWITT, 2006).

Apesar da grande quantidade de estudos realizados durante mais de meio século, a origem e grande parte da natureza do autismo continuam ocultadas, constituindo um desafio para a interven- ção educativa e terapêutica.

De modo geral, a partir dos anos 70, o autismo tem sido cada vez mais especificado. Os termos autismo infantil, autismo in- fantil precoce e autismo de Kanner foram se tornando redutores e passou-se a utilizar frequentemente a designação perturbação do espectro autista.

Desde então, existe uma base de critérios de diagnóstico do au- tismo nos sistemas de classificação internacional, nomeadamen- te na Classificação Internacional de Doenças (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 1991) e no Manual Diagnóstico e Esta- tístico dos Distúrbios Mentais, da Associação Americana de Psi- quiatria (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014). Apesar de, ao longo das últimas décadas, terem sido realizados diversos estudos de investigação que procuraram dar uma ex-

plicação etiológica que justificasse todos os défices verificados no autismo (MARQUES, 2000), ainda não se conseguiu uma explicação simples e clara sobre as verdadeiras causas desse problema dada a complexidade do processo de diagnóstico, que inclui múltiplas etiologias e graus variados de severidade. No entanto, a compreensão etiológica poderá ser importante, no sentido de proporcionar uma intervenção e aconselhamen- to clínico e educacional.

Segundo Ángel Rivière (2001), é possível estabelecer um contí- nuo de “sintomas” presentes nas pessoas com PEA, que se dis- tribuem por seis dimensões, cada uma delas com quatro níveis (numerados de 1 a 4) pela ordem de gravidade (do mais grave para o menos grave):

I – Transtornos qualitativos da relação social

1. Alheamento completo; não estabelece relação com pessoas específicas e por vezes não diferencia pessoas de coisas. 2. Aparente incapacidade de relação, mas consegue vincular-se a

alguns adultos, não a pares.

3. Relações induzidas, externas, pouco comuns e unilaterais com os pares.

4. Alguma motivação para a relação com os pares, mas dificul- dade em estabelecê-la por falta de empatia e compreensão de subtilezas sociais.

II – Transtornos das funções comunicativas

1. Ausência de comunicação, entendida como “relação intencio- nal com alguém acerca de algo”.

2. Uso instrumental de pessoas para atividades de pedir, mas sem sinais.

3. Sinais de pedir; só há comunicação para se referir ao mundo f ísico.

4. Emprego de condutas comunicativas de declarar, comentar etc. que não se referem apenas ao mundo físico. Normalmen- te há escassez de declarações “internas” e comunicação pouco recíproca e empática.

III – Transtornos da linguagem

1. Mutismo total ou funcional (este último com emissões verbais não comunicativas).

2. Linguagem predominantemente ecolálica ou composta de pa- lavras soltas.

3. Orações que apresentam estrutura formal espontânea, mas não linguagem que configure discurso ou conversação.

4. Linguagem discursiva, capacidade de conversar com limita- ções, alterações sutis das funções comunicativas e da prosódia da linguagem.

IV – Transtornos e limitações da imaginação

1. Ausência completa de jogo simbólico e de qualquer indício de atividades imaginativas.

2. Jogos funcionais elementares, induzidos do exterior, pouco espontâneos, repetitivos.

3. Ficções estranhas, geralmente pouco imaginativas, e dificul- dades para diferenciar ficção de realidade.

4. Ficções completas, utilizadas como recurso para alhear-se, li- mitadas em conteúdos.

V – Transtornos da flexibilidade

1. Estereotipias motoras simples (balanços, batimentos etc.). 2. Rituais simples, resistência a mudanças básicas, tendência a

seguir os mesmos itinerários.

4. Conteúdos limitados e obsessivos de pensamento. Interesses pouco funcionais, não relacionados com o mundo social em sentido amplo e limitados na sua diversidade.

VI – Transtornos do sentido da atividade

1. Predomínio de condutas sem intenção (corre sem rumo, de- ambula sem sentido etc.).

2. Atividades funcionais muito breves e dirigidas de fora.

3. Condutas autônomas e prolongadas cujo sentido não se percebe bem.

4. Realizações complexas, mas que não se integram na imaginação de um “eu projetado no futuro”. Realizações superficiais, externas e pouco flexíveis (RIVIÈRE, 2001, p. 39).

Segundo Rivière (2001), o autismo pede ao sistema educativo duas coisas: diversidade e personalização. De acordo com o au- tor, as metodologias pouco individualizadas no processo ensi- no-aprendizagem são incapazes de dar resposta às necessidades dos alunos com PEA, que têm um modelo de desenvolvimento não estandardizado. Por outro lado, atendendo à diversidade de possíveis quadros de autismo, deve-se fazer uma avaliação muito concreta e particular para cada caso de forma a definir, adequa- damente, a orientação educativa.

Hewitt (2006, p. 5) afirma que, após ter observado muitos alunos com PEA numa variedade de ambientes educacionais regulares, chegou à conclusão de que:

[…] a inclusão de sucesso só poderá ser conseguida quando tomamos em consideração as duas formas únicas e alternativas de pensar e de encarar o mundo. Para isso temos de adaptar os métodos, frequentemente rígidos, usados nos ambientes regulares, e de ser mais flexíveis nas nossas abordagens.

O estudo de Daniels e Porter (2007), que versou sobre uma in- vestigação realizada na Inglaterra, mostra que as necessidades e capacidades das crianças com PEA têm sido objeto de consi- derável pesquisa ao longo das últimas décadas. Também é no- tória uma maior conscientização dos profissionais da área da educação sobre as peculiaridades de alunos com essa singula- ridade nos últimos anos. Na escola, o aumento significativo de estudantes com PEA tem colocado desafios importantes para os sistemas educativos. Assim, é evidente a necessidade de prepa- rar os professores de ensino regular e os professores especializa- dos para terem conhecimentos que lhes permitam proporcionar uma educação adequada a essas crianças (FREDERICKSON; JONES; LANG, 2010).

Segundo Correia (2005), é benéfico encontrar formas de aumen- tar a participação dos alunos com PEA nas turmas regulares, independentemente de seus níveis acadêmicos e sociais. Nes- se sentido, a escola terá de se afastar de modelos de ensino e aprendizagem centrados no currículo, passando a dar relevância a modelos voltados para o aluno, em que a construção do ensino tenha por base suas necessidades singulares. O programa educa- tivo do aluno deve ser um meio pelo qual o fim seja alcançado: o sucesso escolar. Para tal, há que considerar não só os conteúdos acadêmicos e não acadêmicos, mas também as adequações cur- riculares pertinentes às características dos alunos.

Tem havido muitos debates acerca de apoios e intervenção para crianças com PEA dada a ineficácia, em alguns casos, da sua inclusão nas escolas regulares (PARSONS; LEWIS, 2010). As opiniões contrastantes de diferentes autores destacam as dificul- dades para profissionais, bem como para prestadores e financia- dores de serviços de educação, no que diz respeito à canalização dos recursos financeiros, educacionais e pessoais.