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CULTURA ORGANIZACIONAL

1.1 A escola como organização cultural

A bibliografia existente sobre a cultura organizacional denota uma fragilidade teórica atinente aos processos de construção e reconstrução das dimensões culturais das organizações. A primazia dada aos processos de diagnóstico e de gestão das variáveis culturais e das suas relações com os resultados organizacionais reduziu a atenção dos modos como se processa a construção e a consolidação das culturas, resultando na mudança do enfoque para os processos de medição e de controlo dos indicadores culturais (Torres, 2008). Contudo, como sublinha a autora, “(…) não podemos verdadeiramente compreender a importância das especificidades culturais de uma dada organização sem primeiro identificarmos os tempos, os lugares e os espaços em que elas ocorrem” (p. 61).

Nos dias que correm, o conceito de cultura escolar tem sido utilizado para pôr em evidência a função da escola como transmissora de uma cultura específica no quadro do processo de socialização e integração nacional das crianças e dos jovens. De forma cada vez mais frequente, a escola tem-se constituído como objecto de estudo de maior realce nas pesquisas que se desenvolvem e em diferentes perspectivas de análise, nomeadamente, pesquisas de pendor histórico à sociológica, da política de educação para a prática pedagógica, destacando sempre a escola como o objecto de estudo, com a existência de uma cultura própria dessa instituição (Silva, 2006). Para este autor, ainda que o interesse neste tipo de pesquisa tenha despoletado nos anos

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1980, só nos anos 1990 é que a visão de uma cultura escolar se fortaleceu, apresentando diferentes abordagens de investigação.

No seu trabalho, Torres (2008) defende a adopção de uma focalização interpretativa e crítica da cultura organizacional que enfatize a sua natureza processual, dinâmica e dialéctica. Para a autora, o processo de construção da cultura organizacional constitui uma forma sustentada de hibridação, resultante de combinações, de interferências mútuas, de interfaces e interpenetrações entre um vasto conjunto de factores.

Mas como conceituar a cultura escolar? Barroso (s/d, como citado em Julia, 2005), no seu trabalho “Princípios Gerais da Administração Escolar”, define cultura escolar como

“[…] conjunto de normas que definem saberes a ensinar e condutas a inculcar e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses saberes e a incorporação desses comportamentos, normas e práticas que são subordinadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização” (p. 3).

Este conceito coloca-nos diante de dois momentos diferentes, mas interligados, e sugere-nos a apreciação dos princípios explicativos da relação escola e cultura escolar. Nesta definição, encontra-se implícita a ideia de que a escola tem como finalidade a transmissão dos princípios de uma cultura geral que passa de uma geração para outra, por via de um processo de aculturação específico que permite passar de uma cultura normalmente familiar, para uma cultura global e social. Nestes termos, a cultura escolar desponta como uma espécie de subcultura da sociedade em geral.

O papel da escola fica reduzido à transmissão de uma cultura, cuja definição é exterior, e enraizado num quadro de um aparente consenso no que tange às finalidades da educação e aos meios disponíveis para as realizar, excluindo a possibilidade de produzir uma “cultura própria”, em oposição a cultura social dominante

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(Barroso, s/d). De outro modo, Chervel (1988, como ainda citado em Julia, 2005) entende que a escola fornece à sociedade uma cultura constituída de duas partes, por um lado, os programas oficiais, que explicam a finalidade educativa, e, por outro, os resultados efectivos da acção da escola, os quais, no entanto, não estão inscritos nessa finalidade. Ou seja, a cultura escolar, enquanto uma cultura adquirida na escola, encontra nela não somente o seu modo de difusão, mas também a sua origem.

A cultura da organização escolar deve ser vista hoje como um processo dinâmico e de configuração variável, resultante de uma simbiose operada entre as circunstâncias externas e a forma como estas são construídas e reconstruídas nos contextos organizacionais concretos. Para Torres (2008), dentro das organizações é possível encontrar três tipos de cultura, consoante o grau e a especificidade das suas manifestações, designadamente:

A cultura integradora, quando o grau de partilha e de identificação

colectiva com os objectivos e valores da organização é elevado;

A cultura diferenciadora, quando o grau de partilha cultural apenas

se restringe ao grupo de referência, sendo provável a coexistência de distintas subculturas no mesmo contexto organizacional; e

A cultura fragmentadora, quando se constata o grau mínimo de

partilha cultural, frequentemente adstrita à mera esfera individual.

Ainda na linha de pensamento de Torres (2008), a questão de fundo não deve residir em saber se uma dada organização escolar tem ou não uma cultura, mas, sim, e sobretudo, se consegue identificar diferentes manifestações culturais dentro do contexto organizacional, compreender os múltiplos processos que presidem à sua construção e o seu real impacto ao nível do desenvolvimento estratégico, designadamente ao nível das (micro)políticas e das práticas quotidianamente postas em marcha nos mais diversos contextos de interacção social.

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Actualmente, muitos autores adoptam uma perspectiva mais estruturalista e põem em evidência o facto de a instituição educativa não só se limitar à reprodução cultural exterior a si, mas também produzir a sua própria cultura específica, contrariando a visão funcionalista antes dominante nas escolas. Devemos, portanto, estar sempre preparados para falar em produção e reprodução e não apenas em reprodução. Mesmo tendo dado total valor a tudo quanto se possa descrever razoavelmente como réplica em actividades culturais e sociais mais gerais, e tendo reconhecido a reprodução sistemática de certas formas profundas, ainda assim, devemos insistir que as ordens sociais e as ordens culturais devem ser encaradas como se fazendo activamente: activa e continuadamente, ou podem muito rapidamente desmoronar (Williams, 1992).

Torres (2008), concordando com a opinião dos outros autores que a antecederam (como Cândido, 1964; Williams, 1992; Chervel, 1988), considera que seria difícil encontrar entre as mais relevantes instituições da modernidade um espaço tão intenso de produção cultural, de interacção social e de trocas simbólicas como a organização escolar, um espaço onde o trabalho humano recobre todo o seu sentido antropológico. Escreve, a autora, que

“Por mais que concebamos esta instituição como uma mera periferia de um centro de controlo escolar, que admitamos o seu carácter eminentemente reprodutor, ficariam, no entanto, por esclarecer os distintos modos de ser e de fazer, subjectivos e/ou colectivos, que se oferecem ao investigador no âmbito do seu labor sociológico” (p. 42).

O entendimento de Barroso (s/d, quando cita Chervel, 1988) parece-nos claro, quando em referência à organização escolar, afirma que:

“[…] é o próprio sistema educativo, esse imenso corpo de dezenas, e depois de centenas de milhares de profissionais, que toma a seu cargo a concretização dos grandes objectivos de que foi incumbido. Para isso, ele põe de pé, métodos, exercícios, progressões, teorias, que, após confrontação com outros concorrentes, acabam por sobreviver, através de um processo de selecção natural, num oceano de tentativas individuais. Ora é precisamente neste processo que os decisores políticos e a administração educativa apostam. Longe de o contrariarem para imporem, arbitrariamente, as soluções didácticas da sua preferência, a administração prefere favorecer todas (ou quase todas) as iniciativas, porque sabe que é a economia íntima do sistema educativo

81 que está em jogo. Enquanto os grandes objectivos não forem postos em causa, o

ministério, a administração, a inspecção abstêm-se de intervir” (p. 194).

Da apreciação deste trecho depreende-se que a escola, enquanto instituição agregadora da sociedade, difere em larga medida de outras organizações sociais, enquanto responsável pela educação formal dos indivíduos. Nos termos em que diz Cândido (1964, como citado em Silva, 2006), a escola é uma totalidade mais ampla, “compreendendo não apenas as relações ordenadas conscientemente, mas, ainda, todas as que derivam de sua existência enquanto grupo social” (p. 107). A escola, sendo uma instituição da sociedade, é a base para o conceito de sociedade moderna de que a humanidade dispõe actualmente, ou mais, a escola é ‘elemento fundante’ para o espírito de modernidade, “um dos principais motores de triunfo da modernidade” (Pineau, 1999, p. 39).

O modo como a escola se vem organizando tem reforçado mecanismos geradores de adaptação e dominação. São esses mecanismos que, certamente, informam os processos pedagógicos, os organizativos, de gestão e de tomada de decisões no interior da escola, responsáveis pelo conjunto de “características de vida próprias, seus ritmos e ritos, sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de produção e de gestão de símbolos” (Forquin, 1993, citado em Silva, 2006, p. 167).

Em referência às palavras de Torres (2008), a imagem de escola como entreposto cultural serviu para complementar e pôr à prova a análise de que as organizações escolares tendem a caracterizar-se por elevados fluxos de informação e de conhecimento, de objectivos e finalidades diferenciados, de orientações e de regras de diversa índole, de racionalidades e de interesses diversos, de actores sociais com distintos papéis e funções, de interferências múltiplas, provenientes das diversas rotas do fórum político e do multifacetado fórum comunitário. Assim,

“[…] importante é notar que o tempo relativamente longo proporcionado pela convivência e pela interacção dos actores no contexto escolar, com as implicações que estes processos acarretam na socialização e na construção e reconstrução de redes de significados

82 individuais e colectivos, assim como na aprendizagem dos artefactos simbólicos que

sedimentam a identidade organizacional” (Torres, 2008, p. 65).

A organização e a estrutura de funcionamento de escola dá a esta instituição um carácter peculiar e diferente das outras organizações sociais, pois, conforme considera Silva (2006, como citado em Nóvoa, 1989, p. 16), “as escolas são instituições de um tipo muito particular, que não podem ser pensadas como qualquer fábrica ou oficina: a educação não tolera a simplificação do humano (...) que a cultura da racionalidade empresarial sempre transporta”.

A escola como uma instituição ímpar estrutura-se em processos, normas, valores, significados, rituais, formas de pensamento, constituidores da própria cultura, que não é monolítica, nem estática, nem repetível (Silva, 2006). Este autor acrescenta que os indivíduos e as suas práticas são basilares para o entendimento da cultura escolar, particularmente no que se refere à formação desses indivíduos, à sua selecção e ao desenvolvimento de sua carreira académica. Dessa forma, os discursos, as formas de comunicação e as linguagens presentes no quotidiano escolar constituem um aspecto fundamental de sua cultura. Na mesma lógica de ideias, Torres (2008), em contexto de mudanças sobre os paradigmas da organização escolar, escreve:

“A compreensão das reformas educativas e das mudanças organizacionais não pode apenas privilegiar as determinações estruturais da agenda política, pois, como já tivemos oportunidade de comprovar, os diversos contextos escolares tendem a operar uma síntese interpretativa mediada pelos condicionalismos sociais e políticos de recepção e pela sua matriz consuetudinária” (p. 67).

Por sua vez, Julia (2001, como citada em Silva, 2006) enquadra a cultura escolar numa abordagem histórica, como sendo uma mescla de normas e práticas, aquelas “que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar” e como um conjunto “que permite a transmissão desses conhecimentos e a incorporação de comportamentos” (p. 2). Para Silva (2006), a escola tem uma história que não é muito diferente da história de outras instituições da sociedade, como as instituições judiciais ou as militares. A cultura escolar evidencia que a escola não é somente um lugar de transmissão de conhecimentos, mas é, ao mesmo tempo e talvez principalmente, um

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lugar de “inculcação de comportamentos e de hábitos” (Julia, 2001, citada em Silva, 2006, p. 14). Em 1977, Bordieu sublinha que a escola provê aos que têm estado submetidos directa ou indirectamente à sua influência, não tanto de esquemas de pensamento particulares ou particularizados, mas esta disposição geral, geradora de esquemas particulares suscetíveis de serem aplicados em campos diferentes de pensamento e de acção, que se pode chamar hábitos cultos.

O alinhamento dos objectivos da educação aos limites apresentados pela sociedade, em cada momento da história, contribui de forma decisiva para o estabelecimento da cultura escolar, pois ela é uma “cultura conforme e seria necessário traçar, a cada período, os limites que traçam a fronteira do possível e do impossível” (Julia, 2001, como citada em Silva, 2006, p. 25). E, por seu turno, Silva (2006) considera que a escola é

“[…] uma instituição da sociedade, que possui suas próprias formas de acção e de razão, construídas no decorrer da sua história, tomando por base os confrontos e conflitos oriundos do choque entre as determinações externas a ela e as suas tradições, as quais se reflectem na sua organização e gestão, nas suas práticas mais elementares e cotidianas, nas salas de aula e nos pátios e corredores, em todo e qualquer tempo, segmentado, fraccionado ou não”. (p. 206).

Retomando as palavras de Torres (2008), a cultura organizacional em contexto escolar é então concebida como uma variável de controlo na implementação das mudanças, como também um instrumento de gestão e de assessoria eficaz para repor a ordem, a harmonia, a integração, o bom ambiente ao nível das relações sociais e profissionais nas instituições educativas. A mesma autora refere que “Este clima integrador e harmonioso torna-se efectivamente uma condição imprescindível para o bom desempenho e produtividade escolares, condição traduzida em alguns trabalhos pela relação estabelecida entre a cultura da escola e as taxas de sucesso escolar” (p. 70).

Para sintetizar os diferentes entendimentos sobre a cultura organizacional da escola, Torres (2008) lembra que grande parte dos estudos integradores da cultura reside na crença de que as culturas fortes (coesas e integradoras) geram escolas mais

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eficazes, mais performantes e mais excelentes, enfim, produzem um potencial competitivo adequado às novas lógicas reguladoras e de sobrevivência, ditadas pelos espaços educacionais. “E nesta sequência consensualiza-se a ideia de que o processo de liderança nas escolas se torna vital para a promoção de culturas de excelência” (p. 70). Consolida-se, portanto, a crença de que as culturas se criam, se gerem, se formam, mas também se mudam e se transformam conforme os imperativos das ideologias da gestão, independentemente de elas elegerem ou não, como prioridade educativa, o desenvolvimento dos valores da democracia e da participação.