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3 ESCRAVIDÃO E SUA DIMENSÃO HISTÓRICA

3.2 A escravidão no Novo Mundo

A escravidão no período moderno se tornou fator fundante da mentalidade ocidental como cultura da opressão, da exclusão, da imagem do cidadão negro19 e no próprio significado das Américas.

Dito isso e mesmo partindo do pressuposto de que a escravidão dos contemporâneos em muito se diferencia da escravidão dos antigos, principalmente no que tange às formas com que é praticada, ambas podem ser entendidas como práticas muito cruéis20. Na verdade, cada uma delas e o próprio trabalho é o retrato de sua época e nada mais faz do que atender à economia, à política, aos valores e às necessidades de cada civilização, o que muitas vezes implica considerar que dependendo do tempo e do espaço onde ocorra a escravidão, seja ela muitas vezes considerada normal.

As grandes navegações que empreenderam as nações europeias estavam claramente inseridas no contexto econômico e político da época, pela busca de novas terras21 necessárias para a abertura de novos mercados. Não se podem dissociar, nesse período, os fatores do colonialismo e da escravidão à política mercantilista.

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Quando os primeiros europeus desembarcaram na costa africana em meados do século XV, a organização política dos Estados africanos já tinha atingido um nível de aperfeiçoamento muito alto. As monarquias eram constituídas por um conselho popular no qual as diferentes camadas sociais eram representadas. A ordem social e moral equivalia à política. Em contrapartida, o desenvolvimento técnico, incluída a tecnologia de guerra, era menos acentuada. Isto pode ser explicado pelas condições ecológicas, socioeconômicas e históricas da África daquela época, e não biologicamente, como queriam alguns falsos cientistas. Neste mesmo século XV, a América foi descoberta. A valorização de suas terras demandava mão-de-obra barata. A África sem defesa... apareceu então como reservatório humano apropriado, com um mínimo de gastos e de riscos. (MUNANGA, 1986, p. 8).

20 A noção de dignidade ganhou, a partir de Kant, o caráter de respeito a si próprio e ao próximo, esse respeito, pelo qual cada pessoa descobre, portanto, é o real fundamento de uma mútua igualdade nos relacionamentos humanos. Demonstrada a grande importância dos direitos humanos e da dignidade, passa-se a analisar o liame que estes possuem com os direitos sociais e fundamentais, com fito de dirimir os conflitos e as desigualdades sociais.

21 É interessante observar que, segundo Marilena Chauí, "do ponto de vista simbólico, as grandes viagens são vistas como um alargamento das fronteiras do visível e um deslocamento das fronteiras do invisível para chegar a regiões que a tradição dizia impossíveis (como a dos antípodas) ou mortais (como a zona tórrida)" (CHAUI, 2006. p.58).

As relações instituídas no próprio esquema da escravidão colonial do novo mundo acentuavam suas peculiaridades em relação à escravidão africana, por exemplo, assim como se incluíam dentro do sistema moderno que se instaurava no mundo.

Portugal contribuiu sobremaneira com a escravidão no Novo Mundo, pois os portugueses desenvolveram uma fonte de fornecimento de escravos sem similar para a época. Com bases nisso, o século XVI, após os descobrimentos, inaugurou a escravidão moderna onde “a escravidão do negro foi a fórmula encontrada pelos colonizadores para explorar as terras descobertas” (COSTA, 1982, p. XIII), ante a fracassada escravização dos índios nativos das novas terras.

Paul E. Lovejoy (2002, p.29-30), analisando a escravidão africana, pondera que:

Suas características específicas incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor; que eles não tinham o direito à sua própria sexualidade e, por extensão, às suas próprias capacidades reprodutivas; e que a condição de escravo era herdada, a não ser que fosse tomada alguma medida para modificar essa situação.

As sociedades americanas foram fundadas na exploração de povos por outros povos, e para justificar e facilitar essa exploração, foi utilizada como estratégia a negação dos africanos enquanto povos com culturas particulares e historicamente constituídas.

Segundo Robin Blackburn (2003, p. 166-167):

A escravidão africana e o comércio atlântico de escravos acabaram dando contribuição expressiva para a fórmula imperial espanhola. A introdução de escravos africanos no Novo Mundo tinha dois aspectos positivos, do ponto de vista das autoridades metropolitanas. Em primeiro lugar, a venda de licenças para a entrada de africanos gerava dinheiro para o tesouro real – sempre uma preocupação importante. Em segundo lugar, ajudava o poder colonizador a fornecer mão-de-obra aos centros urbanos e aos novos empreendimentos numa época em que a população nativa já tinha sido dizimada.

Como a escravização dos índios não deu certo e os colonos espanhóis tinham dinheiro para comprar escravos negros, a taxa de importação de africanos foi aumentando gradativamente, fato que estimulou o contrabando de escravos para

trabalharem nas plantations açucareiras, já que esse empreendimento era altamente lucrativo. Estima-se, segundo registros oficiais, que entre 1550 e 1595 apenas 36.300 escravos africanos foram importados pela América espanhola, números esses infinitamente baixos em relação ao verdadeiro número de escravos que havia no continente.

Ao contrário dos demais países, os ingleses recebiam pouco ou nenhum incentivo real ou apoio financeiro para realizar a colonização do novo mundo e, dada a imensa procura dos produtos produzidos nas colônias, era comum explorar o máximo possível seus servos, fossem eles contratados ou escravos. Em 1636 o governador Hawley anunciou que todos os servos levados para a ilha, juntamente com seus filhos seriam tratados como simples escravos. Tal decisão deixou várias questões para serem decididas.

Os ingleses, dada à sua avidez pelo lucro e seu ímpeto capitalista, incorporaram uma noção racial à escravidão e mantinham em relação a seus escravos uma imensa severidade22, privando-os de todos os direitos individuais, familiares, de propriedade, bem como de poder político. Além disso, o Estado barrava o caminho dos escravos à educação, à livre movimentação ou à emancipação, o que fazia observar que tanto os franceses quantos os países da Península Ibérica eram melhores no tratamento de seus escravos. Tal fato acaba por justificar o movimento anti-escravocata ter se iniciado na Grã-Bretanha e na América Inglesa.

a escravidão na América inglesa tinha pouco em comum com a formas anteriores de servidão e era bem mais severa do que a escravidão do negro na América Latina tinha pouco em comum com as formas anteriores de servidão e costumes e as instituições do Velho Mundo preservaram uma forma de escravidão mais tradicional [...] um senhor podia considerar seus escravos como animais subumanos e, ainda assim, prover-lhes meios de subsistência suficientes. Por outro lado, não seria realista traçar uma linha tão definida entre status moral e tratamento físico. É difícil imaginar como uma sociedade podia ter muito respeito pelo valor dos escravos como pessoas humanas, se sancionava sua tortura e mutilação, a venda de seus filhos pequenos, a dura exploração de seu trabalho e o drástico encurtamento de suas vidas devido ao excesso de trabalho e à alimentação inadequada. (DAVIS, 2001, p. 47).

22 A crueldade permeou todas as relações de trabalho que conferiram a força econômica da burguesia comercial, que por mais diversificada que fosse sua gama de produtos, de uma forma ou de outra dependeu do tráfico escravocrata para o seu sustento, porém de maneira verdadeiramente dialética, visto que a prosperidade econômica não poderia de modo algum garantir a estabilidade social. Essa é uma característica histórica dos sistemas escravocratas, dada a necessidade de coerção e violência para transformar um homem em um escravo, uma “coisa”, a violência ocupa posição central na sociedade colonial.

Já os franceses, iniciaram sua colonização nas Antilhas, mas comparada aos ingleses, o fluxo de imigrantes franceses foi muito pequeno. Talvez porque na primeira metade do século XVII as autoridades reais estavam mais preocupadas em fortalecer o monarca, que deu pouco apoio ao projeto de colonização, o qual ficou nas mãos de aventureiros e missionários.

No início do século XVIII os sistemas coloniais francês e inglês apoiavam- se na divisão de trabalho e os proprietários de navios e plantações eram considerados agentes econômicos, sendo que a competitividade econômica dava vantagens aos ingleses de maneira que a organização colonial francesa foi abrigada a abandonar o domínio de suas companhias e a permitir elementos de competição comercial mercantilista.

Foi com o expansionismo mercantilista, que a humanidade conheceu os primeiros efeitos globais de relações econômicas, políticas e socioculturais, tendo em vista as bases das grandes companhias comerciais inglesas e holandesas, além da companhia das índias, de nacionalidade portuguesa, controladas por corporações de ofícios.

A escravidão foi uma instituição central no processo de exploração econômica na colonização do Brasil. Perdurou por quase quatro séculos, ultrapassou o marco da independência do país e foi a mais longa do continente americano23.