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Contextualização e conceito do trabalho escravo contemporâneo

2 TERMINOLOGIA E CONCEITUAÇÃO

2.3 Contextualização e conceito do trabalho escravo contemporâneo

A escravidão não é mais justa nem necessária, como entendiam os povos antigos. Não se vive mais na Antiguidade Clássica, na Idade Média, nem no período de colonização. Vivesse, sim, na era dos direitos, ou seja, dos Estados Democráticos, que desenvolvem suas políticas sob a égide da lei, na busca pela diminuição das desigualdades sociais, preservando os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Mas a escravidão, como terrível forma de degradação do ser humano, torna difícil o pleno exercício desses direitos.

O fim da escravidão, que antes era legalmente permitida, deveria realmente significar um marco na história das conquistas do ser humano, já que todos os homens, por serem iguais, devem respeitar uns aos outros, e não explorá-los. No entanto, verifica-se que, independente da sua abolição no campo jurídico (término do direito de propriedade sobre o homem), na prática a referida exploração ainda pode ser constatada.

A exploração hodiernamente tem como vítimas aqueles seres humanos que geralmente vivem em precárias condições, sejam materiais, sociais ou culturais. São pessoas que partem em busca de trabalho e acabam por se submeter às condições equivalentes à de escravo. Atualmente o trabalho escravo se configura quando direitos mínimos que visam preservar a dignidade do ser humano trabalhador são violados, quando um indivíduo se vê privado de sua liberdade de forma compulsória, seja em decorrência da retenção de documentos, pela violência ou grave ameaça, ou em razão de dívidas ilegalmente impostas.

O trabalho escravo tem sua dinâmica desenhada desde o século XV, tomando novas formas de práticas degradantes até os dias de hoje. Os dados da Organização

Internacional do Trabalho – OIT sobre a escravidão laboral revelam o âmbito global do problema, que afeta praticamente todos os países e todos os tipos de economias.

Como explicar que ainda exista trabalho escravo no século XXI? A natureza da escravidão é dinâmica, de acordo com a cultura e o momento histórico vivido. Desta forma, o conceito de trabalho escravo sofreu alterações durante os anos. Segundo Xavier Plassat (2008, p.73), essa questão do "ainda” é complexa e simples ao mesmo tempo: lucrar é a razão derradeira que move o escravagista. Esse motor é cego e não tem época: somente encontra mais ou menos freios na lei, no Estado, na sociedade.

Durante as primeiras décadas do século XX, a escravidão, abolida no século XIX, não vinha sendo discutida abertamente no contexto internacional. A maior preocupação da Sociedade das Nações e da OIT era quanto a novas formas de trabalho imposto; resquício da escravidão colonial. Este foi motivo da edição da Convenção sobre a Escravidão, em 1926, seguida da Convenção 29 sobre trabalho forçado, em 1930. Estas convenções não impediram que, ao longo das duas guerras mundiais, um grande número de serviços obrigatórios fosse imposto, principalmente a pessoas confinadas em campos de trabalho, e também, em colônias europeias onde se apropriavam de mão de obra escrava. A partir de 1950 este problema é novamente posto junto à comunidade internacional que resultou na reafirmação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” de 1948: “ninguém será mantido em escravidão ou servidão, assim como o direito à livre escolha do emprego”.

No presente século, a escravidão ainda é verificada, no entanto, esta se dá de uma maneira diferente daquela que se deu no século XVIII, pois em 1888, o escravismo era assegurado pela lei e aceito pelos costumes da época, de forma que o negro era considerado uma mercadoria. Já na escravidão contemporânea, o peão pode ou não ser uma mercadoria. Entretanto, entre essas duas formas de escravidão, há semelhanças, como, por exemplo, a privação de cidadãos e de seus direitos, retirando-lhes a garantia à dignidade humana.

Assim, podemos afirmar que, pela existência de uma ligação entre a ideia de dignidade da pessoa individual com o princípio da liberdade de cada cidadão, a escravidão, antes de se configurar como crime contra a liberdade da pessoa, torna-se um crime contra a própria dignidade humana. Todavia, existem inúmeras formas de se escravizar um ser humano, contudo, será dada ênfase, nessa pesquisa, somente à

escravidão no meio urbano, já foi detectada também uma ampla diversidade de sujeição de pessoas à condição análoga à de escravo no meio urbano, ou seja, em casas, oficinas, na indústria etc.:

O trabalho escravo urbano, existente desde as grandes colonizações urbanas, por ocasião do êxodo rural, transfere-se para a área urbana. Deste modo, o fenômeno parece estar associado mais à localização do fenômeno do que à forma como se desenvolve. Também o trabalho escravo na área urbana configura ofensa ao principio da dignidade da pessoa humana. “Nos grandes centros urbanos, a violação da dignidade da pessoa humana e a prestação de serviços em condições análogas à de escravo também se faz presente, trata-se da exploração da mão-de-obra dos trabalhadores latinos, geralmente bolivianos e paraguaios que são aliciados em seus países de origem e ingressam irregularmente no Brasil com promessas de bom salário e passam a trabalhar, sem qualquer reconhecimento do seu trabalho, para proprietários de oficinas de costuras onde residem em condições degradantes, recebendo alimentação insuficiente e ao final do mês, após o pagamento das despesas que lhes são apresentadas pela moradia e alimentação, nada lhes resta, a não ser continuar a trabalhar sob a ameaça de expulsão do país, por meio de denúncias às autoridades competentes. (CARLOS, VELLOSO, FAVA, 2006, p. 282).

A denominação de algo/alguma coisa opera uma síntese repleta de significados, que se inserem dentro de uma determinada realidade histórica. A sua determinação, então, é construída com base nos valores formulados historicamente ao seu redor.

Ocorre que a importância da denominação de um(a) instituto/categoria vincula- se aos próprios símbolos que ela – a denominação – evoca na (in)consciência de quem a observa ou por ela é atingida. Com relação à expressão trabalho escravo, neste passo, sua readequação ao presente importa, num primeiro momento, romper com a tradição histórica do escravismo. E, assim, se apresenta como um obstáculo que, ao menos, deveria ser melhor ponderado.

É importante esclarecer que não há um consenso no conceito11, nem mesmo nos critérios a serem utilizados para caracterização do trabalho escravo contemporâneo. Por isso, há uma variação12 enorme de elementos na sua conceituação, assim como há uma

11 “Neo-escravidão”, “escravidão branca”, “trabalho forçado”, “trabalho escravo”; “semiescravidão”, ”superexploração do trabalho”; “forma degradante de trabalho”, “trabalho escravo contemporâneo”; “trabalho em condições análogas à de escravo”, além de outras, são expressões utilizadas para fazer referência àquela modalidade de exploração da força de trabalho humana ocorrente na atualidade, na qual a sua prestação se dá de forma involuntária, e que é advinda de coerção amparada em pretensa existência de dívida, predominantemente ocorrente no âmbito do trabalho rural. (FÁVERO FILHO, 2010, p. 260). 12“Mas a multiplicidade de palavras e expressões (que em parte reflete as disputas, as indefinições e as mudanças conceituais referidas) obscurece, às vezes, a compreensão do problema, deixando o observador num impasse: São os termos utilizados sinônimos entre si e, então, as situações referidas devem ser pensadas como sendo do mesmo tipo, ou, como sugere uma observação mais atenta, as situações diferem

multiplicidade de termos usados pelos juristas para se referir a este tipo de exploração da mão-de-obra do trabalhador.

Justamente por isso, hoje diversas são as modalidades de escravidão contemporânea praticadas no mundo, sendo que o termo abrange tanto aquelas formas de trabalho que privam o ser humano de liberdade, mas também, todas as demais, que de uma forma ou de outra o priva de dignidade, em que se encaixam exemplificativamente, o trabalho infanto-juvenil, urbano ou rural, com ou sem exploração sexual; a servidão por dívida, exercidas nas cidades ou no campo; a exploração sexual de homens e mulheres, adultos ou crianças; o tráfico de pessoas, dentre outras situações em que o ser humano é privado do exercício de um trabalho digno.

Para fins didáticos, pinçamos um conceito de trabalho escravo contemporâneo, conforme dispõe SCHWARZ (2008, p. 117-118):

O estado ou a condição de um indivíduo que é constrangido à prestação de trabalho, em condições destinadas à frustração de direito assegurado pela legislação do trabalho, permanecendo vinculado, de forma compulsória, ao contrato de trabalho mediante fraude, violência ou grave ameaça, inclusive mediante a retenção de documentos pessoais ou contratuais ou em virtude de dívida contraída junto ao empregador ou pessoa com ele relacionada13.

Para Bales, Trodd e Williamson (2009, p.33) o dinamismo da escravidão contemporânea apresenta-se através de quatro modalidades com fins de exploração econômica, assumindo formas que atingem a dignidade humana, como o cerceamento da liberdade, e a jornada exaustiva.

a) Escravidão de posse: é a mais parecida com a escravidão colonial porque o tempo da servidão vai de geração a geração. É aquela em que o trabalhador sob captura nasceu na escravidão ou é vendido para outro escravista sob regime de servidão. Essa modalidade é mais encontrada no norte e oeste da África.

b) Escravidão por dívida: o trabalhador é cerceado de sua liberdade sob ameaça psicológica, moral ou armada, sendo obrigado a pagar a dívida fabricada pelo escravista, que foi originada por adiantamentos em dinheiro no ato do aliciamento do entre si? E, neste caso, qual o significado das generalizações que têm sido feitas? Qual a importância de recuperar a particularidade de cada caso?” (ESTERCI, 1994, p. 16).

trabalhador, e cuja quitação é dificultada pelo acréscimo de despesas adicionais como comida e aluguel. Desta forma o trabalhador mal tem acesso ao salário ao qual teria direito. O endividamento é condição estabelecida pelo recrutador para a obtenção do trabalho, sem alternativa para o trabalhador. O Esta modalidade é encontrada no Brasil, no sul da Ásia na Índia, Nepal e Paquistão.

c) Contrato de escravidão: é aquela que se apresenta através de contratos de trabalho entre o recrutador ou empreiteiro ou “gato” e o trabalhador, por meio de falsas promessas. O trabalhador chegando ao local de trabalho percebe que o que foi acordado não é cumprido e que sua liberdade foi cerceada, muitas vezes por métodos violentos. Existem grandes incidências no sudeste da Ásia, Brasil, Arábia Saudita e algumas partes da Índia.

d) Trabalho forçado: o termo é utilizado quando um grupo escravocrata ou o governo escravocrata alicia pessoas para uma determinada empreitada com salários pífios ou nenhum salário, sem nenhuma escolha. Por exemplo: o Uzbequistão, na Ásia Central, envia para campos de algodão estudantes que são obrigados a trabalhar, sem direito de escolha.

Segundo Schwarz (2008, p.118), a escravidão contemporânea configura-se no trabalho degradante, com o cerceamento da liberdade e frustração de diversos direitos assegurados pela legislação do trabalho, e está claramente associado à praxis do sistema semi-servil, sobretudo aquele a que eram submetidos os “cules” e os primeiros colonos europeus, que inclui a migração, e que, sucedendo o escravismo negro de origem transatlântica, tratou de perpetuar o sistema territorial e agrícola em que a escravidão negra se inseria. A migração é um componente intrínseco da exploração: são geralmente migrantes que se expõem mais facilmente ao esquema vicioso da contratação irregular. Empresas florestais, grandes plantações ou culturas de extensão prestam-se com maior frequência à exploração de trabalho forçado. O trabalhador é conduzido, e muitas vezes reconduzido, à condição de escravo em face das suas condições de extrema pobreza.

No artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o Brasil adotou o conceito de “trabalho análogo ao de escravo”, que tem um caráter mais amplo que o conceito de trabalho forçado estabelecido nas normas da OIT sobre o assunto. O conceito do Código Penal brasileiro inclui também, em sua tipificação, o trabalho em condições degradantes e a jornada exaustiva, mesmo quando não existe evidência de cerceamento da liberdade.

2.4 Apresentação de um conceito geral de trabalho escravo de acordo com os